Marcos 12.41-44

Auxílio Homilético

08/11/2009

Prédica: Marcos 12.41-44
Leituras: 1 Reis 17.8-16 e Hebreus 9.24-28
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 23º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 08 de novembro de 2009
Proclamar Libertação - Volume: XXXIII

1. A título de introdução: Olhando os textos

A combinação desses três textos bíblicos acima indicados foi, de fato, muito feliz. Eles têm vários aspectos em comum. Todos os três apresentam, de algum modo, uma completa inversão de valores. O que é importante aos olhos do mundo é insignificante para Deus. E o que nada é justamente é valorizado por ele.

Encontramos nos textos, também como algo comum a todos eles, a vivência em abnegada entrega. Isso, por sua vez, é expressão de total confiança no doador e mantenedor da vida. Concretamente, isso aparece da seguinte maneira: No caso da viúva de Sarepta, a confiança expressa-se no fato de ela entregar o último punhado de farinha e o resto de azeite ao hóspede estranho. Era tudo o que tinha e quis prepará-lo para si e seu filho: “...comê-lo-emos e morreremos”. Confiou na palavra de Elias: “Não temas (...) porque assim diz o Senhor, Deus de Israel: a farinha da tua panela não se acabará, e o azeite da tua botija não faltará...” Em espírito de confiança ela sacrifica tudo.

Também na narrativa do Evangelho de Marcos encontramos uma po- bre viúva. No templo, ela deu sua oferta, como era costume. O detalhe, porém, é que ela “da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento”. De novo se trata de uma entrega abnegada, total, mas que indica firme esperança no poder que sustenta a vida.

A Epístola aos Hebreus também fala de entrega confiante e de sacrifício. Exatamente na entrega de Jesus e em sua ressurreição dentre os mortos se cumpriram as Escrituras. No centro da mensagem da carta, que é muito mais um tratado teológico, está, pois, a morte de Cristo na cruz. Essa entrega supera toda sorte de sacrifícios e é única e válida para sempre. Havia a lei de Moisés e o culto da antiga aliança com tudo o que ele implicava em termos de cerimonial complicado e de sacrifícios. Cristo, porém, sacrifica seu próprio corpo, a si mesmo, como oferta feita ef hápax. Essa morte na cruz é resultado de uma doação extrema, de uma obediência perfeita a Deus e de uma solidariedade incondicional com o ser humano. De certa forma, tal entrega e disposição para servir já estão prefiguradas nas atitudes das viúvas.

2. Auscultando o texto da pregação

É de domínio comum a constatação de que o relato pormenorizado da paixão de Jesus é uma característica do Evangelho de Marcos. Antecede-o uma longa introdução, na qual se destaca a confissão de Pedro. Na mesma encontra-se também a pergunta que, desde a primeira aparição pública de Jesus, acompanha o leitor, a saber: “Todos ficaram tão espantados que se perguntavam uns aos outros: Que é isso? Eis um ensinamento novo, cheio de autoridade”. O relato da paixão responde a essa pergunta. O ensinamento novo, a verdade, somente será reconhecido na humilhação da cruz. Até lá permanece o que se convencionou chamar de “segredo messiânico”.

Mas em tudo isso se percebe a radical inversão de valores inaugurada por Jesus. Os seres humanos buscam segurança, orientam-se por calculismo e previsão de lucro. O caminho de Jesus, porém, é outro. É marcado justamente por insegurança, desprendimento, humilhação e sacrifício. É assim que se dá a vitória sobre a morte. Dessa forma, o relato da paixão adquire uma impressionante dramaticidade.

O capítulo 12 de Marcos, do qual é extraído nosso texto de pregação, praticamente ilustra essa inversão de valores à qual nos referimos. A parábola dos vinhateiros conclui com a constatação: “A pedra que os construtores rejeitaram, foi ela que se tornou pedra angular”. À pergunta capciosa de alguns fariseus e de alguns herodianos se “será permitido, sim ou não, pagar o tributo a César?” ele responde com: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E à astuta argumentação de que a ressurreição dentre os mortos seria inconcebível Jesus responde que Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos. Em todas essas questões, que, no fundo, tematizam a relação entre Deus e as pessoas, Jesus aponta para a radical simplicidade da vontade divina. Basta amá-lo, mesmo que isso não nos pareça ser suficiente. Isso se opõe frontalmente à nossa ânsia por segurança e por poder. Mas permanece: Decisivo mesmo é temer e amar a Deus acima de tudo. Esse é o contexto em que se localiza a narrativa de Marcos 12.41-44.

Algumas observações ainda sobre o texto e sobre detalhes do mesmo: A narrativa é composta de duas partes, a saber: a descrição de uma situação (v. 41s) e a interpretação da mesma por Jesus (v. 43s). Aqui não vem ao caso se temos diante de nós um fato histórico ou não. Bultmann afirma, em sua afamada obra ”História da Tradição Sinótica”, tratar-se cla- ramente de uma cena ideal em que, de maneira plástica e figurativa, se expõe um pensamento que tem valor de um princípio. Aqui se trata da afirmação de que a pequena oferta do pobre agrada mais a Deus do que a opulenta oferta do rico. Lembra ainda que, no mundo antigo, bem como na reflexão rabínica, pode-se encontrar esse mesmo pensamento, e lá também já em roupagem de cena ideal.

Dissemos que não importa se a cena que é narrada tenha acontecido tal qual é transmitida. Mas temos que concordar que ela é histórica, ou seja, verdadeira em outro sentido. Ela capta de modo profundo o espírito do que realmente foram a proclamação e a vida de Jesus.

Ainda um outro tipo de questão: as várias versões em português do texto bíblico traduzem de modo diverso o termo grego gazofilakeion do v. 41. Almeida mantém “gazofilácio”. A Tradução Ecumênica da Bíblia, a TEB, circunscreve-o com a expressão “cofre das esmolas”. Usa-se também a tradução “câmara do tesouro”. Mas do que se trata? O termo grego designa não um pequeno recipiente, mas um recinto. O mesmo ficava no pátio das mulheres, a parte do templo à qual todas as pessoas tinham livre acesso. Na câmara do tesouro havia 13 recipientes estrategicamente distribuídos. Neles eram colocados os tributos e as ofertas. Quando uma quantia maior era entre- gue ao sacerdote de plantão, soava uma trombeta (cf. Mt 6.2). O sacerdote recebia as ofertas, examinava-as, perguntava para que se destinavam e então as depositava no recipiente correspondente. Jesus estava, pois, sentado no pátio das mulheres, de onde podia ver o movimento no gazofilácio (na “câmara do tesouro”) e, assim, pôde também perceber o que se passava com a oferta da viúva pobre.

O v. 42 descreve a oferta da viúva. Ela dá dois leptá (lepton é a expressão grega para a menor moeda judaica, o peruta). Mas Marcos já atualiza para leitores romanos e compara. Seria o equivalente a um quadrante (a menor moeda romana). Talvez a tradução da TEB seria a indicada para nossa realida- de: “Veio uma viúva pobre que depositou duas moedinhas, alguns centavos”.

É significativo que a viúva dá duas moedas. Isso serve para destacar que ela entrega mesmo tudo o que possui. Ela poderia perfeitamente ter en- tregue apenas uma moeda e ficado com a outra para si. Aqui já se abre o caminho para a avaliação que Jesus faz em seguida. Ele compara a oferta da viúva à opulenta doação dos ricos. Ela deu infinitamente mais. Jesus diz expressamente: “da sua pobreza deu tudo quanto possuía” (v. 44). Ainda segue uma expressão que alguns intérpretes consideram um acréscimo posterior: “todo o seu sustento”. Mas, observando a intenção da mensagem central da narrativa, esse reforço pode perfeitamente fazer parte do original. A viúva não somente deu mais na proporção. Duas moedas para ela pesam muito mais do que aquilo que provém das sobras de um rico. A questão aqui é mais radical. A viúva dá “tudo quanto possuía”, “todo o seu sustento”. Isso quer dizer que ela colocou toda a sua vida nas mãos de Deus. Com isso ela representa a atitude da fé de total entrega confiante a Deus.

Mencionamos acima que a máxima de que para Deus a oferta do pobre vale mais do que a doação do rico pode ser encontrada também na literatura judaica (rabínica), greco-romana e mesmo em outras culturas. Não se trataria, pois, de algo especificamente cristão. Deve ser observado, porém, que no contexto da mensagem do evangelho essa afirmação de princípio recebe acento próprio. Aqui não se apela apenas a uma valorização mais justa dos pobres em geral. O pronunciamento solene de Jesus “Em verdade vos digo” indica que aqui se dá algo ainda mais profundo. Deparamo-nos com a proclamação escatológica do juízo definitivo de Deus sobre a atitude da viúva.

3. Considerações pastorais

Impõe-se a pergunta se a ação da viúva não poderia ser entendida como boa obra, assunto tão calorosamente discutido na Reforma. Verdade é que a mulher não é aceita por ser pobre, mas por sua ação, pela dádiva. Aqui é preciso diferenciar cuidadosamente. Não se trata de uma ação que visa ao merecimento. Não há qualquer reivindicação para que Deus, de alguma forma, retribua o gesto, a “boa obra”. A viúva age em expressão natural da fé, em abnegado espírito de entrega. É um agir espontâneo. Jesus simplesmente indica que tal atitude de sacrifício existe. Essa confiança incondicional em Deus é possível. Vejam o caso da viúva. Somos convidados a perceber que a liberdade de agir de maneira tão desinteressada, como em nossa narrativa, é dádiva de Deus. É graça poder viver e agir de modo tão despretensioso e tão abnegado.

Liberdade cristã para uma atitude radical, sem duvida, é parte da men- sagem central do texto para o 23º Domingo após Pentecostes. Mas também faz parte dela o reconhecimento de que diante de Deus todas as pessoas têm o mesmo valor. Dito de modo diferente: Deus não faz acepção de pessoas. Ele não avalia segundo as posses, a influência e o poder que alguém possa ostentar. Ele não se orienta por esses critérios próprios do mundo. Riqueza para ele não determina o valor de uma pessoa. Isso nos parece tão convincente. Mas a questão é mais complexa.

Vivemos neste mundo e não podemos fugir dele. Não podemos ignorar que nele valem outros critérios. Não podemos fazer de conta que eles não existem. A comunidade cristã não se encontra fora do mundo e, até certo ponto, estará sempre sujeita às leis que o regem. E, olhando bem, damo-nos conta de que necessitamos de ofertas generosas para a manutenção de um mínimo de estrutura necessária na igreja. Certo é, porém, que na vida e ação da comunida- de deve estar muito claro que diante de Deus todas as pessoas são iguais.

Quando estudei esse texto de Marcos para escrever a presente reflexão, percebi que se pode correr um sério risco, qual seja: transformar a mensagem em afirmações legalistas. Com facilidade se tende a condenar genericamente os ricos. Por outro lado, existe a tentação de exigir que todos sigam à risca o exemplo da viúva pobre. Em ambos os casos, o evangelho estaria sendo transformado em lei. Por isso há de se ter muito cuidado ao atualizar para os nossos dias essa belíssima narrativa da viúva pobre.

4. Sugestões para a prédica

A própria narrativa sugere que, na prédica, se aborde a questão da coleta dominical. Ela, porém, não se presta para apelos no sentido de angariar contribuições maiores para o trabalho da comunidade. Não cabe o apelo de que é necessário dar mais, muito mais. E o destaque está justamente na pe- quena oferta que vem de uma pessoa pobre. Isso, aliás, parece não represen-tar nenhum problema para a compreensão. Todas as pessoas presentes no culto saberão valorizar as pequenas ofertas. Até saberão contar histórias comoventes a respeito. Concordarão também com Jesus que diante de Deus todos são iguais, que não há da parte dele acepção de pessoas.

Não é a quantia que importa, mas a intenção com que é doada. Quem não se emociona quando observa a alegria de crianças ao colocar sua moedinha na coleta do culto infantil? O que conta é exatamente essa alegria. Algum tempo atrás, participei de um culto em que o pastor recebeu das crianças uma porção de cofrinhos feitos de latinhas de refrigerante vazias. Em volta delas estava colado um rótulo colorido, que indicava a finalidade da coleta. Durante um determinado período, as crianças haviam colocado nelas suas moedas. Foi uma verdadeira festa a entrega dessa “poupança”. Não é a quantia que importa, mas a intenção com que se oferta.

Até aqui tudo bem. Mas é necessário também dizer que, no mundo em que vivemos, não é possível ignorar que existem diferenças entre as pessoas. Há pessoas com melhores condições financeiras do que outras, e necessitamos de suas contribuições. Se o telhado do templo precisa ser restaurado, por exemplo, vamos ter que enfrentar um orçamento que apresenta elevadas somas. Mas permanece sempre válido que Deus não avalia o doador conforme a quantia doada.

Após essas reflexões, poder-se-ia lançar a pergunta pelos pobres na comunidade. Como estão? Como estão sendo cuidados? Comunidade cristã, por natureza, é comunidade inclusiva. Como tal ela se preocupa de modo especial com os membros pobres, com aquelas pessoas que, conforme os critérios do mundo, não têm valor. Recentemente, assisti a um documentário com o título “A arte bruta de Moacir”. Trata-se de um pintor autodidata, de quarenta e poucos anos, que vive com seus pais num recanto do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Ele se expressa através de uma arte primitiva e vigorosa. Diz ele: “Tem muita gente que não gosta de gente. Se a gente não tem qualquer coisa, eles não gostam da gente. Agora se não tiver nada, ninguém gosta. Se a gente tiver qualquer coisa, aí o povo gosta da gente e quer amizade. Quer amizade, mas só por isso. Quando a pessoa não tem nada, é pobre. O povo vira as costas”. Pobre não tem valor. Não é assim na comunidade de Jesus Cristo. Por “pobres” se entendem todas as pessoas excluídas da sociedade, independente dos motivos da exclusão.

Por fim, e até como um ponto alto da pregação, é possível retomar a oferta da viúva pobre e meditar sobre o que significa que ela deu “tudo quanto possuía”. À primeira vista, esse gesto parece até ser um ato de irresponsabilidade. Mas, na verdade, é uma atitude de irrestrita confiança em Deus. Só que, como dissemos acima nas considerações pastorais, deve-se ter todo o cuidado para não pregar a lei, mas sim o puro evangelho, a libertadora boa-nova. Para isso, é indispensável destacar que seguidamente alguma irmã ou irmão nosso se sentirão chamados a doar tudo o que têm. A viúva pobre deu “todo o seu sustento”. Jesus mesmo fez entrega total, deu sua vida em resgate por muitos. E no seu discipulado tem que se contar com que alguém dê tudo o que possui.

5. Subsídios litúrgicos

Oração de coleta:
Santo Deus, a ti nos abandonamos. Que a tua vontade se faça em nós. Entregamos nossa vida em tuas mãos, assim como fez a viúva pobre. Senhor, abre nossos corações e nossa mente para que te possamos amar acima de todas as coisas. Amém.

Oração comunitária:
– Pedir a Deus que guarde a sua igreja e lhe dê fiéis servidores, que, por uma necessidade de amor, se entreguem em suas mãos sem medida.
– Interceder pelos governantes de nosso país. Que Deus lhes dê sabedoria para governar de tal modo que tenham sempre especial cuidado com as populações mais vulneráveis.
– Incluir na oração de intercessão questões locais (que podem antes ter sido coletadas junto à comunidade reunida).

Invocação:

Será que
Deus vai me ouvir?
Sou pobre e indigente,
como me achegar ao Deus da Vida?

Invoquei o teu Deus, Jesus, e aguardei.
Nada se passou por muito tempo até que a alegria, devagar, renasceu em minha casa
E minha alma desesperada se aquietou. Que sucedera?

Javé inclinou-se para mim
E respondeu ao meu chamado.
Tu tiveste piedade de mim,
E eu me senti livre outra vez.
Tu és bom e és um Deus que perdoa.
Ensina-me o caminho da justiça
e andarei nele,
ainda que isso me custe.
Dá força ao teu filho,
alenta a tua filha,
e saberão que tu és Deus,
que derrubas do trono os poderosos
e exaltas os pobres.
Sim, Javé, eu creio em ti.
(E. Zwetsch. Vigília – Salmos para tempos de incerteza)

Bibliografia

BULTMANN, Rudolf. Die Geschichte der Synoptischen Tradition. 7. ed. Vandenhoeck/Ruprecht, 1967.
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelum nach Markus. 8. ed. Zwickau: Volksdruckerei, 1980.
RAISER, Konrad. Prédica sobre Marcos 12.41-44. In: Hoffen auf Gerechtigkeit und Versoehnung. Stuttgart: Kohlhammer, 2002. p.86ss.
SPERB, Ulrico. Marcos 12.41-44. In: Proclamar Libertação. v. 22. São Leopoldo: Sinodal, 1996. p. 281ss.








 


Autor(a): Ervino Schmidt
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 23º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 12 / Versículo Inicial: 41 / Versículo Final: 44
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2008 / Volume: 33
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 20110
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