Todos sob um mesmo Cristo

Posicionamento da Comissão Mista Internacional Católico-Luterana sobre a Confissão de Augsburgo

23/02/1980

Todos sob um mesmo Cristo

Posicionamento da Comissão Mista Internacional Católico-Luterana sobre a Confissão de Augsburgo

Prefácio

A Comissão Mista Internacional Católico-Romana/Evangélico-Luterana, constituída, por uma parte, pelo Secretariado romano para a Unidade dos Cristãos e, por outra, pela Federação Luterana Mundial, elaborou um posicionamento sobre a Confessio Augustana (Confissão de Augsburgo). Ele foi aprovado unanimemente pelos membros da Comissão. Esperamos que a comunhão que se expressa neste documento nos leve mais perto da unidade esperada pelas nossas Igrejas.

Augsburgo, 23 de fevereiro de 1980.

Hans L. Martensen Bispo de Copenhague Dinamarca
George A. Lindbeck Professor da Universidade de Yale, New Haven, EUA
(Co-presidentes da Comissão)

I

1. Ao olharmos, católicos e luteranos, atualmente para a Confissão de Augsburgo (CA), fazemo-lo numa situação profundamente modificada em comparação à de 1530.

2. Verdade é que, naquela época, a unidade da Igreja ocidental estava gravemente ameaçada, mas ainda não quebrada. Os «partidos religiosos» daquele tempo, mesmo em meio às disputas e às diversidades de suas convicções, sentiam-se ainda «sob o mesmo Cristo», comprometidos com aquela unidade eclesial.1

3. A evolução posterior, porém, trouxe tanto uma polarização polêmica nas relações mútuas, quanto um agravamento das divergências na doutrina, nas práticas de piedade, nas estruturas eclesiais e no modo de cumprir a missão do Senhor crucificado e ressuscitado, e de testemunhar o seu Evangelho perante os homens. Também fatores extra-eclesiais contribuíram para o crescente alheamento e a acentuação das diferenças. Estas tensões e esses antagonismos foram exportados, nos tempos subsequentes e através da atividade missionária de nossas Igrejas, para outros países e continentes.

4. Sentimo-nos conjuntamente culpados pelo fato de que estas diferenças tenham separado as nossas Igrejas e de que essa separação tenha descredenciado nosso testemunho de Cristo, causando sofrimentos a pessoas e povos.

5. Por isso mesmo, experimentamos com gratidão a maneira pela qual o Espírito Santo nos integra mais e mais na unidade do Filho com o Pai (Jo 17,21s), ajudando-nos a chegar a uma nova comunhão entre nós. 

6. Sobretudo desde o Concílio Vaticano II, as nossas Igrejas se encontram num diálogo fraterno em muitos países e lugares. Foram alcançadas aproximações notáveis e constatadas concordâncias em importantes questões controvertidas. A convivência das comunidades e dos membros de nossas Igrejas levou a múltiplas formas de colaboração e de comunhão vivida. Não poucas diferenças entre nós começam a perder seu caráter divisório. Mesmo quando temos que enfrentar-nos uns aos outros, por amor à verdade, muitas das diferenças que permanecem estão sendo reconhecidas e experimentadas, cada vez mais, como fonte de mútuo enriquecimento e correção. Após séculos de crescente alheamento, surge de novo entre nós a consciência de «estarmos sob um mesmo Cristo».

7. O diálogo dos últimos anos, os acordos teológicos por ele alcançados e o grau de comunhão vivenciada reconduzem-nos naturalmente para a cidade e a Confissão de Augsburgo. De fato, esta Confissão, base e ponto de referência dos demais escritos confessionais luteranos, reflete no seu conteúdo e na sua estrutura, como nenhuma outra, a vontade ecumênica e a intenção católica da Reforma.

8. Neste contexto, é de grande importância que essa vontade ecumênica e essa intenção católica se expressem num documento confessional que, ainda hoje — sob e junto à Sagrada Escritura — continua a ser o fundamento doutrinário das Igrejas luteranas e possui, para elas, um caráter normativo. Este fato é de significação especial, justamente para a fase atual de entendimento e aproximação entre as nossas Igrejas, pois o diálogo pós-conciliar, como está sendo levado a cabo, por exemplo, em nossa Comissão Mista Católico-Luterana, desde 1967, não tem mais o caráter de encontros privados e sem compromisso. Realiza-se antes por incumbência oficial de nossas Igrejas.

Na medida em que esse diálogo oficial conseguiu atingir aproximações e concordâncias em questões fundamentais,2 impulsiona à recepção oficial de seus resultados em nossas Igrejas, confrontando-as com a questão da realização da comunhão eclesial.

9. A esta dinâmica de um diálogo, pelo qual as Igrejas se responsabilizam e que tende à realização de comunhão eclesial, condiz essencialmente que a confissão normativa para a vida, a doutrina e a comunhão da Igreja chegue a ser objeto de atenção especial e de trabalho comum.

II

10. A intenção declarada da Confissão de Augsburgo é testemunhar a Igreja una, santa, católica e apostólica. Não se trata de doutrinas particulares, menos ainda da fundação de uma nova Igreja (CA 7,1), mas, pelo contrário, da preservação e renovação da fé cristã, em concordância com a Igreja antiga, inclusive com a «Igreja romana» e de acordo com o testemunho da Sagrada Escritura.3 Esta intenção expressa da Confessio Augustana conserva sua importância também para a compreensão dos escritos confessionais luteranos do tempo posterior. 

11. Pesquisas comuns de teólogos católicos e luteranos4 chegaram à conclusão de que, no seu conteúdo, as afirmações da Confissão de Augsburgo correspondem, em alto grau, a esta intenção, podendo, desse modo, ser consideradas como uma expressão da fé comum.

12. Este resultado se deve novamente a uma série de estudos e pesquisas mais recentes, realizados também parcialmente em conjunto :

— Estudos exegéticos e patrísticos nos conscientizaram da riqueza da herança da fé comum; assim podemos agora avaliar melhor, até que ponto os argumentos da Escritura e da Tradição, alegados nas controvérsias da época, eram válidos ou precisam de correção;

— Estudos históricos lançaram nova luz sobre a situação eclesial, social e econômica no tempo da Reforma e nos fizeram ver, em que medida fatores políticos e econômicos contribuíram também para o alheamento recíproco e a separação;

— Pesquisas histórico-dogmáticas sobre a Idade Média, a Reforma e, não em último lugar, sobre a Confutatio — a réplica à Confessio Augustana, elaborada em nome do Imperador — e sobre as negociações em vista da unidade, realizadas em 1530, em Augsburgo, levaram a uma avaliação capaz de localizar, com mais naturalidade, as controvérsias passadas, no seu devido lugar, abrandando condenações mútuas e revalidando consensos já obtidos naquela época.

13. Tendo como pano de fundo estes documentos e pesquisas, na consideração da Confissão de Augsburgo, resulta para nós o seguinte: — Juntos confessamos a fé comum de toda a Cristandade no Deus Uno e Trino e na ação salvífica de Deus, por intermédio de Cristo, no Espírito Santo (CA 1 e 3). Cristãos luteranos e católicos, através de todas as disputas e diferenças do século XVI, permaneceram unidos nesta verdade central e mais importante da fé cristã.

14. Na doutrina da justificação, que para a Reforma era de importância decisiva (CA 4), delineia-se um amplo consenso:

Somente pela graça e na fé na ação salvífica de Cristo, não baseados em nosso mérito, é que somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que renova nossos corações e nos capacita e chama à prática de boas obras.5

15. Juntos testemunhamos que, na proclamação do Evangelho e nos santos sacramentos, é doada e eficazmente conferida às pessoas, pelo Espírito Santo, a salvação obtida por Cristo em sua morte e ressurreição (CA 5).

16. Também no que diz respeito à compreensão da Igreja, que no passado causou graves controvérsias entre nós, constatamos hoje uma comunhão fundamental, embora ainda incompleta. Igreja é a comunhão daqueles que Deus reúne no Espírito Santo, pela pregação do Evangelho e a administração dos sacramentos, bem como pelo ministério instituído por Ele para este fim. Embora abranja sempre pecadores, em virtude da promessa e da fidelidade de Deus, ela é a Igreja una, santa, católica e apostólica, que permanecerá para sempre (CA 7 e 8).

17. Assim, refletindo sobre a Confissão de Augsburgo, tornaram-se manifestas, a católicos e luteranos, verdades básicas da fé, que convergem para Jesus Cristo, o centro vivo da nossa fé.

18. Esse consenso fundamental encontra também sua expressão e confirmação nos documentos do diálogo católico-luterano oficial da atualidade:
— nas afirmações comuns sobre a relação entre Evangelho e Igreja6;
— numa compreensão largamente comum da Eucaristia7;
— no consenso de que um ministério especial, transmitido pela ordenação, é constitutivo para a Igreja e não faz parte daquilo que a Confissão de Augsburgo declara «não necessário».8

19. Quanto à segunda parte da Confissão de Augsburgo, onde se toma uma atitude parcialmente muito polêmica, contra os abusos existentes no seio da Igreja daquela época, processaram-se mudanças na vida e no julgamento de nossas Igrejas, acerca de pontos lá mencionados, mudanças que tornam essencialmente sem conteúdo a crítica severa exprimida na Confissão de Augsburgo.

Nesta segunda parte, também são abordadas importantes questões de fé. Embora certos problemas necessitem ainda de elucidação, alcançou-se um amplo consenso, inclusive nas doutrinas da fé abordadas nesta segunda parte.

20. A respeito da missa e da Eucaristia (CA 22 e 24), essa mudança na doutrina e na prática ficou comprovada sobretudo em nosso diálogo sobre a Ceia do Senhor. Ainda nos restam assuntos de interesse mútuo, interrogações reciprocas e tarefas comuns.9 Contudo, estas estão envolvidas por uma profunda comunhão no testemunho da Ceia do Senhor e também, em grande medida, na sua celebração litúrgica.10

21. Quanto ao monaquismo e à vida religiosa (CA 27), o juízo severo da Confissão de Augsburgo não é mais sustentável em face da compreensão predominante e da práxis da vida monástica na Igreja católico-romana.11 Teológica e praticamente12 formas monásticas de vida em comum, como maneira de uma prática radical do Evangelho, constituem uma possibilidade legítima para católicos e luteranos, embora no atual estágio do diálogo continue aberta a interpretação de certos pormenores, inclusive no seio do luteranismo.

22. Também em relação à questão do ministério episcopal, é preciso assinalar que a Confessio Augustana manifestou expressamente o desejo de conservar, em conformidade com a Igreja até então existente, a estrutura episcopal. Pressuposto disso era que a reta pregação do Evangelho fosse promovida e não impedida por esse ministério. A Confessio Augustana considerava um serviço de unidade e governo — colocado acima dos ministérios locais — (CA 28) Como algo essencial para a Igreja, ainda que a forma concreta a ser dada a este ministério permaneça como uma questão aberta.

23. Faz parte da sinceridade do diálogo sobre a Confissão de Augsburgo admitir também que ainda restam questões abertas e problemas não superados, entre os quais podemos citar os seguintes :

— Na Confessio Augustana, falta um posicionamento acerca do número dos sacramentos, do papado e de certos aspectos da estrutura episcopal e do magistério da Igreja. 

— A Confessio Augustana, naturalmente, não se manifesta sobre dogmas que só foram enunciados posteriormente: o primado de jurisdição e a infalibilidade do Papa (1870); a preservação gratuita de Maria do «pecado original» (1854) e a sua assunção corporal ao céu (1950).

24. Estas questões devem ser objeto de diálogo ulterior. Nele deverá ser avaliada a importância que as divergências ainda existentes têm para a aproximação de nossas Igrejas. Além disso, deverá examinar-se a importância que se deve dar ao fato de que algumas questões só adquiriram a sua relevância hodierna nos últimos séculos.

25. A nossa concordância redescoberta, sobre verdades centrais da fé cristã, nos dá a esperança justificada de que, à luz deste consenso fundamental, seja igualmente possível dar às questões e problemas ainda abertos respostas suficientemente comuns, a ponto de fazer progredir decisivamente nossas Igrejas, do estágio de Igrejas separadas, para o de Igrejas irmãs.

26. O Concílio Vaticano II conclamou os católicos a «reconhecer com alegria os bens verdadeiramente cristãos procedentes do patrimônio comum», que se encontram entre os cristãos de outras Igrejas.13 É motivo de alegria e gratidão que ambos, católicos e luteranos, tenham progredido significativamente neste caminho, através do estudo comum da Confissão de Augsburgo.

III

27. O que reconhecemos ser, na Confissão de Augsburgo, fé comum pode ajudar-nos a confessar juntos, de forma nova, esta fé, também no nosso tempo. Essa é a missão confiada pelo Senhor glorificado às nossas Igrejas e é isto que elas estão devendo ao mundo e à humanidade. Isso corresponde também à intenção da Confissão de Augsburgo, que não só tencionava guardar a unidade eclesial mas, simultaneamente queria testemunhar a verdade do Evangelho, no seu tempo e no seu mundo.

28. Em face dos novos problemas, desafios e chances de nossa realidade atual, não podemos contentar-nos com repetir a Confissão de 1530, ou com referir-nos simplesmente a ela. Aquilo que redescobrimos como expressão de nossa fé comum exige ser expressado em formas novas. Isso mostrará o caminho para uma profissão de fé, aqui e agora, em que católicos e luteranos, não mais separados ou opostos, mas conjuntamente testemunhem a mensagem da salvação do mundo em Jesus Cristo, proclamando-a como uma oferta renovada da graça de Deus.

Este documento foi assinado por todos os membros efetivos Comissão Mista Internacional Católico-Luterana. (Seus nomes encontram-se na p. 178).

Notas:

1. Isto é acentuado na convocação imperial para a Dieta de Augsburgo (1530) e é assumido no prefácio da Confessio Augustana (cf. O Livro da Concórdia. Escritos confessionais da Igreja Evangélica Luterana. Editora Sinodal, São Leopoldo, 1980).

2. O diálogo oficial luterano-católico nos Estados Unidos: A Eucaristia (1967), Eucaristia e Ministério (1970), Ministério e Igreja Universal (1974), Autoridade Magisterial e Infalibilidade na Igreja (1978). O diálogo oficial católico-luterano em nível mundial: Relatório da Comissão de Estudos Evangélico-Luterana/Católico-Romana: O Evangelho e a Igreja. Relatório de Malta (1972), A Ceia do Senhor (1978). Estas duas publicações foram editadas, em português, pela Comissão Mista Nacional Católico-Luterana do Brasil.

3. Cf. a conclusão da Primeira Parte da CA. 

4. Confessio Augustana Bekenntnis des einen Glaubens. Gemeinsame Untersuchung katholischer und Iutherischer Theolo gen. Ed. por H. Meyer e H. Schütte, em colaboração com E. Iserloh, W. Kasper, G. Kretschmar, W. Lohff, G. W. Forell, J. McCue. Frankfurt-Paderborn 1980. 

5. CA 4,6 e 20; cf. Relatório de Malta, n. 26 e 48. 

6. Cf. Relatório de Malta, n. 18s e 48s. 

7. Cf. A Ceia do Senhor. 

8. CA 7; cf. Relatório de Malta n. 47s. 

9. Cf. A Ceia do Senhor, n. 46 e 76. 

10. A Ceia do Senhor, n. 1-45; n. 76; cf. o anexo àquele documento A Celebração Litúrgica da Ceia do Senhor.

11. Cf sobretudo o Vaticano II, Decreto sobre a Renovação e Adaptação da Vida Religiosa (Perfectae Caritatis).

12. Cf o fenômeno dos grupos comunitários evangélicos e das comunidades semelhantes à ordens religiosas católicas. 

13. Concílio Vaticano II, Decreto sobre o Ecumenismo Unitatis Redintegratio, n. 4

 

[ Publicado originalmente em: Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 42, fasc. 165, Março de 1982.]


 

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