1 Reis 17.8-16

Auxílio Homilético

10/11/1991

Prédica: 1 Reis 17.8-16
Leituras: Hebreus 9.24-28 e Marcos 12.41-44
Autor: Friedrich Erich Dobberahn
Data Litúrgica: 25º Domingo após Pentecoste
Data da Pregação: 10/11/1991
Proclamar Libertação - Volume: XVI


HISTÓRIAS QUE, NO FUNDO, SÃO UMA SÓ — E PARECEM MENTIRA

O texto previsto por Proclamar Libertação para servir de base de pregação, Mc 12.41-44, já foi trabalhado em PL VI,. 1980, pp. 138-143, por H. A. Trein. Por isto escolhi como texto de pregação a leitura do Antigo Testamento, l Rs 17.8-16.

1. História n° 1: A viúva da seca (l Rs 17.8-16)

Entende-se por viúvas da seca mulheres do Nordeste brasileiro, abandonadas pelo maridos que migram para o sul em busca de trabalho e sobrevivência e que muitas vezes não voltam para a família (Colheita de Esperança, p. 183). De uma tal viúva da seca li recentemente a seguinte história:

Há uma senhora com três filhos, cujo marido a abandonou já há tempo. Ela vai todos os dias à canteira, lá no terreno baldio para procurar pedras quebradas. Ajunta-as e as vende. O maravilhoso é que nunca faltou comida aos filhos. Mas isso não é nada. Ela que é tudo em sua casinha, ainda se lembra sempre de seus irmãos e irmãs na Comunidade. Vem sempre deixar-nos coisas para os que necessitam, ou que são mais pobres do que eles. O incrível é que se lembre e faça isso aos outros. Até dá esmolas. Ajuda aos outros. Quantas vezes levou irmãos daqui para comer em sua casa! Parece mentira que uma mulher que não tem nada, ainda consiga coisas para seus filhos e as dê também a outros. Gestos assim são comuns aqui. Não sei se nos bairros ricos, os vizinhos que têm de tudo, fazem a milésima parte do que faz essa mulher. Ela é solidária, isso vem-lhe do coração. Não sei se foi a Comunidade que a ajudou a formar esse coração tão grande.

Esta história não é nenhuma lorota, nem um conto de fadas! Aconteceu realmente! Como disse, li-a na Colheita de Esperança (pp. 119s.). Lembrei-me da história veterotestamentária sobre a viúva de Sarepta (l Rs 17.8-16) e da história parecida no Novo Testamento sobre a oferta da viúva pobre (Mc 12.41-44). Acontecem, obviamente, tais coisas em nosso mundo. Ocupei-me com a pergunta levantada na Colheita de Esperança: o que, afinal, tinha levado esta senhora a tornar seu coração tão grande? Foi a comunidade? Ou quem (ou o que) foi? Também a versão bíblica não diz nada a respeito da razão pela qual, aproximando-se da morte, a viúva de Sarepta foi motivada a repartir até seus últimos víveres.

Será que foi apenas um ato de desespero? Ou, antes, um ato de convicção? Ou, quem sabe, as duas coisas ao mesmo tempo? Em favor de um ato de desespero poderia falar o fato de que a viúva de Sarepta, definitivamente, corria o risco de morrer de fome (e alguns comentaristas neotestamentários pressupõem também o mesmo a respeito da viúva pobre em Mc 12.41-44). Mas, comer pão para morrer? Que binômio sem sentido seria este! Por trás do agir da viúva deve haver outro motivo!

Tenho quase certeza de que não foi à toa que esta viúva deu abrigo e comida a um profeta que precisava fugir, por causa de sua profecia subversiva, para o território da cidade-estado fenícia de Sidom. Jezabel, a esposa de Acabe (l Rs 16.31), seguidora das divindades tírias Baal Melcart e Asera, encabeçava um movimento que pretendia instaurar o culto a Baal, deus da chuva e da fertilidade, como religião oficial. Recorria a medidas drásticas quando alguém ousava opor-se a ela (l Rs 18.4,13). Elias, porém, tinha destituído publicamente o poder de Baal sobre a natureza (l Rs 17.1).

Abrigar e dar comida a fugitivos e revolucionários era sempre perigoso. Os países palestinenses de então tinham feito um acordo sobre a entrega mútua de fugitivos e desertores (PRU, IV, n° 17. 138; Heltzer, pp. 4s). A prontidão espontânea da viúva de repartir também o último punhado de farinha, o último resto de azeite estava, a meu ver, no contexto de um raciocínio crítico frente à estrutura de sua sociedade; seu raciocínio poderia ter sido mais ou menos este:

Não existe nenhuma carestia cujos efeitos catastróficos afetem da mesma maneira o rei, o nobre, o alto funcionário e o assalariado. Teria sempre o suficiente para todos, se todos fossem iguais! (Veerkamp, p. 25.)

Como sabemos da documentação veterotestamentária e cuneiforme (Ugarit e Alalaque), as sociedades classistas na Palestina tinham a seguinte composição: Existia uma diminuta classe alta de pessoas bem abastadas:

a) o rei e os seus familiares (cf. 2 Sm 7.12ss.; SI 2.7; 89.37-40);

b) a aristocracia, guerreiros de elite e latifundiários = 'am-ha-aräs (cf. 2 Rs 11.20; 14.19ss.; 21.24);

c) os sacerdotes e altos funcionários (cf. l Rs 4.1ss.,7ss.; 20.14ss.; Am 7.17).

Ao lado deles estava a grande maioria das pessoas de escassos recursos:

d) uma camada de agricultores livres, em estado de dissolução (cf. Rs 5.5; Mq2.2; 4.4; Zc 3.10);

e) os pobres; entre eles aparecem também os comerciantes (cf., porém, l Rs 10.28; 2 Cr 1.16;
9.14), os artesãos (cf. 2 Rs 24.14,16), os pequenos arrendatários e diaristas (cf. 2 Rs 25.12; 2 Cr 26.10; Am 5.16; Is 61.5; Jr 52.16);

f) os estrangeiros, trabalhadores forçados, escravos, viúvas e órfãos (cf. Êx 21.2,6,20s.,32; 22.20ss.; 23.3,6ss.,9; Dt 15.17; 27.19; l Sm 12.31; l Rs 5.27ss.; 9.15,21ss.; 2 Rs 4.1; 2 Cr 8.8; Is 1.17; Zc 7.10);

g) os 'apiru' = foras-da-lei, socialmente desenraizados, fugitivos e desertores (cf. Jz 9.4; 11.3; l Sm 22.2; Jó 30.1ss.).

Devido a este sistema se explicam as constantes denúncias sociais, articuladas sobretudo pelo profetas do séc. VIII a.C., contra

— o acúmulo ilegítimo de bens e terras (cf. Is 3.13ss.; 5.8-24; Am 5.lis.; Mq2.1ss.; 3.1ss.);

— a vida frívola dos ricos às custas dos pobres (cf. Am 4.1ss. 6.4ss.; Mq 3.1ss.);

— a infração da lei pelo poderosos (cf. Is 1.21ss.; 10.1ss.; 28.17; Am 3.14s.; 5.7,10,12; 6.12ss.; 8.4ss.; Mq 3.9ss.).

Com isto, estes profetas zelaram pelo direitos dos

— idosos, deficientes, menores (Zc 8.3ss.),

— pobres, miseráveis, violentados (Sl 12.6; 14.6),

— sem-terra (Mq 4.4) e

— viúvas, órfãos e fugitivos (Is 10.2; Jr 7.6; 22.3; Ez 22.7).

É, por conseguinte, bem significativo que o rei Acabe, durante a carestia geral que assolava seu país, preocupava-se antes com o bem-estar de seus cavalos (cf. l Rs 10.26) e mulas (cf. 2 Sm 13.29; 18.9; l Rs 1.33,38,44; 10.25) do que com a sobre¬vivência de seu povo faminto no campo (l Rs 18.5)!

Acredito que a viúva de Sarepta, até diante da morte, não estava a fim de desistir de sua convicção: o princípio da igualdade entre os pobres — quer em Sarepta, nas periferias de Sidom, quer em outros lugares — colocava principalmente as prioridades de maneira diferente do que era costume nos bairros mais nobres das grandes metrópoles fenícias. É uma opção pela vida — apesar de tudo! Parece mentira.

Pois bem. Mas o que faz Elias nesta história? Seu papel certamente não é um papel de comparsa. Chama a atenção que a versão moderna desta história na Colheita de Esperança não conta nada de um Elias, mas pressupõe igualmente o milagre da panela de farinha e da botija de azeite: Parece mentira que uma mulher que não tem nada, ainda consiga coisas para seus filhos e as dê para outros. Creio que transparece por esta última frase que está no poder humano a possibilidade de produzir em nosso cotidiano algo como o evangelho; pelo menos considero possível desenhá-lo programaticamente, anunciá-lo pela práxis do amor, um evangelho cujo rosto Casaldáliga descreve assim (Cuia de Gedeão, pp. 58s.):

Donde hay Pan
allí está Dios...
La tierra
es un plato
gigantesco
de arroz,
un Pan inmerso y nuestro,
para el hambre de Todos.

A função de Elias é, portanto, confirmar que este evangelho praticado pela viúva tem a ver, de fato, com a realidade do reino de Deus. O milagre acontece por causa disto. Quer dizer: Onde está Javé, lá não tem falta. (Cf. Dt 2.7; SI 145.15s.) lhe devolverá a vida em toda a sua riqueza (cf. Am 5.4,6,14). Sob esta promessa de ler conquistado um pedaço de nossa realidade para o reino de Deus está também a versão acima citada da viúva da seca. Há nesta versão ainda uma frase que IMO impressionou: Gestos assim são comuns aqui.

Parece que, do encontro com esta mulher, todo o mundo saiu fortalecido, feliz e consolado. O que ela fez era contagioso! Eram nada menos do que milagres que tornaram-se comuns na vila desta viúva da seca! Não é este um sinal da chegada do reino de Deus (cf. Sl 146.7-9; Is 61.Is.; Lc 4.18s.)? Somente ouvindo esta história a gente já recebe uma força interior, uma vitalidade, uma convicção renovada... e se junta à luta!

Assuntos para uma entrevista imaginária com a viúva:

Pergunta n° 1: Senhora! O milagre faz parte de seu cotidiano? Ou aconteceu-lhe uma coisa bem estranha (17.15s.)?

A viúva poderia responder, mais ou menos, que este milagre da multiplicação do pão não está tão distante de sua realidade como se pensa. Isto mostram também outras experiências semelhantes à experiência exemplar acima citada. A viúva: Quem vive como nós já experimentou muitos 'milagres'. Temos que nos conscientizar do poder que a fé, presenteada por Deus, nos possibilita! (Cf. Mt 17.20; 21.21s; Lc 17.6; l Co 13.2.)

Pergunta n° 2: Senhora! A luta pela justiça melhor, ou seja, pelo menos por um 'patamar' indispensável para viver — precisa ou não de milagres?

Acredito que a viúva de Sarepta poderia ter respondido que a luta pelo melhoramento das condições sociais e a manifestação do reino de Deus na história não são princípios excludentes. O milagre de l Rs 17.15s. era a resposta positiva de Deus a seu próprio empenho pela justiça melhor do Reino. É claro, contudo, que nem sempre acontece assim!

Pergunta n° 3: Senhora! Nós temos grandes dificuldades de entender os milagres do tempo bíblico; como é que poderíamos contar e trabalhar com eles?

A viúva: Não acreditamos que a misericórdia de Deus, a realidade da mesma, tenha diminuído! Uma garantia para milagres não existe. No entanto, não quero retirar a palavra 'milagre' da discussão, se bem que pense, às vezes, que praticar uma nova realidade é o que vocês chamam de 'milagres'.

2. História n° 2: a viúva da seca e o revolucionário (l Rs 17.1-16)

Outra possibilidade de anunciar o Pai Nosso — Pão Nosso de nossa perícope vejo na tematização do confronto político entre a fé em Javé dos pobres e a religião estatal na capital de Samaria (l Rs 16.29ss.; 18.4,13). Assim, a prédica focalizaria as implicações sócio-políticas da ruptura religioso-ideológica na estratégia libertadora de Elias (cf. Maduro, pp. 179ss.): como demitizar a divinização das macroestruturas e mecanismos económicos, para poder iniciar uma transformação de nossa sociedade?

O segredo do mundo, afinal, está na não-existência dos seus deuses. Já bastam as lágrimas e o sangue que o mundo precisa derramar por ficar negando esse segredo, povoando de deuses a natureza e a história; a razão do seu desassossego está em sua negativa de professar sua profanidade. A Igreja sabe desse segredo do mundo. Nenhuma crítica, nenhuma acusação deveria torná-la insegura nesse ponto. (Barth, p. 189.)

No inverno de 1971/72 ocorreram na Europa Oriental temperaturas excepcionalmente baixas. Uma das consequências foi que 1/3 do trigo hibernal foi destruído pelo frio na União Soviética. Apesar disto, na primavera subsequente, a área plantada com trigo não foi aumentada — talvez por incompetência de algum funcionário ou escritório de planejamento? O resultado foi a falta de trigo na União Soviética em 1972. Para suprir o déficit de trigo, a União Soviética tomou um crédito dos Estados Unidos, comprando, com ele, uma parte das reservas deste país. Um primeiro resultado foi que nos Estados Unidos e no mercado internacional o preço do trigo duplicou. No mesmo ano, devido a variações da monção, a índia teve quebra nas suas safras. Acrescentaram-se secas na China e na África Central. A China, dotada de melhor poder aquisitivo, adquiriu as sobras das reservas de trigo. Para as outras regiões não havia mais recursos. Centenas de milhares de pessoas morreram na África Central e na índia. Um único erro de um departamento de planejamento que deixou de adaptar os planos de plantio teve consequências em todos os continentes, incluindo protestos de donas de casa contra a alta do custo de vida nos Estados Unidos e inúmeras mortes na África e na Índia. (Kliewer, pp. 31s.)

Foram estes os textos que me levaram a uma re-leitura de l Rs 17.1-16.

O capítulo l Rs 17, em seu todo, nos transfere para uma época da história israelita em que ainda reinava o rei Acabe (871/0-852/1 a.C.). Adorava-se, naquele tempo, em Israel, ao lado de Javé, o deus Baal, a divindade cananeia da vegetação e da fertilidade. Na época de Acabe, os israelitas praticavam a religião javista apenas superficialmente. A maioria da população do Estado israelita era de origem cananeia, e os antigos nómades, após a tomada da terra, a sedentarização e o surgimento da realeza, tinham-se misturado com eles, tornando-se agricultores. Havia a ameaça de uma apostasia geral de Javé (v. Rad, pp. 19s.; da Silva, pp. 34s.), pois os interesses dos agricultores não coincidiam mais com a teologia de um deus do deserto. Javé sobrevivia apenas em tradições históricas bem antigas. Segundo estas, Ele libertara o povo israelita da escravidão no Egito e o conduzira pelo deserto para a terra prometida. Mas, a despeito desta importante mensagem libertadora do Êxodo, havia uma perda de consciência entre os camponeses livres (cf. já 2 Sm 19.10s.,42ss.; 20.13ss.,21s.). Em benefício de interesses materialistas, acreditava-se em Baal, no deus da religião oficial e da aristocracia cananeia, e sacralizava-se, assim, o ritmo e a estrutura sócio-econômicos do Estado.

Cito, a seguir, alguns versículos dos cultos oficiais a Baal que cantavam-se naquele tempo. Afirmavam que era Baal que determinava o momento em que o ano econômico tinha de começar:

Ya que así podrá almacenar su lluvia Ba'lu,
hacer acopio de abundancia de nieve.
Y podrá dar su voz desde las nubes,
fulminando a la tierra sus rayos.
(UT, 51, V, 68ss.; Olmo Lete, p. 202.)

E, de modo igual, havia estrofes onde se diz que Baal protegia a colheita do ressequimento e garantia, com isto, não apenas crescimento económico, mas tam¬bém ordem, estabilidade e segurança:

[Venga] a la tierra la lluvia de Ba'lu,
y al campo la lluvia del Altísimo.
Una delicia es para la tierra la lluvia de Ba'lu,
y para el campo la lluvia del Altísimo.
Una delicia es para el trigo en el surco,
en la arada [es] como un perfume,
sobre el otero es como una diadema (?
). (UT, 126, III, 5ss.; Olmo Lete, p. 315.)

Por outro lado, as árvores e os campos ressecavam quando Baal morria e entrava no mundo inferior. Assim, ele era um deus que não conseguia evitar crises periódicas, e sim sacralizava, afinal, a existência delas. Tal ordem do mundo tinha que ser aceita de maneira fatalista:

[Si pone Môtu (= o deus da morte) un lábio en] la tierra y otro en el cielo,
[si extiende] su lengua a las estrellas,
entrará [Ba'lu] en sus entrarias,
en su boca caerá cuando [se] agoste el olivo,
el producto de la tierra y la fruta de los árboles.

(UT, 67, II, 3ss.; Olmo Lete, p. 216.)

Isto acontecia quando, em abril e maio, o vento oriental, o scirocco, soprava. Junto com ele, repentinamente, todas as flores do campo desapareciam (cf. Is 40.6-8; SI 103.15s.) e iniciava a época de um plano verão. O sistema se desestabilizava. Os camponeses, obrigados a entregar ao Estado uma alta quota de sua colheita, corriam o permanente risco do endividamento, enquanto Baal era levado para o interior da terra:

Escuchó la Luminária de los dioses, Sapsu (= a deusa solar), alzó a Ba'lu, el Victorioso,
a hombros de 'Anatu (= a virgem guerreira, deusa da vida e fecundidade), si, lo puso.
Lo subió ella a las cumbres de Sapanu (= alturas montanhosas no Norte),
le lloró y le sepulto,
le puso en la caverna de los dioses de la tierra.

(UT, 62, 15ss.; Olmo Lete, p. 224.)

Quando, porém, Baal, o ressuscitado, voltava no início da época da chuva (em outubro), quando os campos e as pastagens tornavam-se verdes, todas as promessas bem como todas as esperanças renovavam-se. Por ocasião da festa da ascensão ao trono (cf. Sl 93; 97; 99) esperava-se realmente por uma nova época, uma era dourada:

Pero si está vivo Ba'lu, el Victorioso,
y si está en su ser el Príncipe, Senor de la tierra...
los cielos aceite lluevan,
los torrentes fluyan con miel.

(UT, 49, III, 2ss.,6ss.; Olmo Lete, p. 228.)

Pois bem. Por que cito todas estas estrofes? Paciência! Parece mentira, mas — certo dia — o incrível e inexplicável aconteceu: Baal, o deus da religião estatal, não voltou mais do mundo inferior! Houve um erro fatal no departamento econômico de Baal! Uma força maior o reteve nas profundezas da terra, onde ficou preso. Magia nenhuma ajudava. Os efeitos na face da terra foram terríveis: uma seca mortífera c sem precedentes! Até o antigo escritor Flávio Josefo recordou-se dela, quando, por volta do século I d.C., escreveu suas Antiquitates (VIII.13,2; Fohrer, pp. 64s.). Aos poucos, os poços se esgotaram e os arroios secaram; todas as plantas feneceram e o gado morreu de sede. O Estado de Acabe, que não conhecia o sistema da justa distribuição da renda, caiu na mais profunda crise de abastecimento de sua história. Abriu-se o imenso fosso que existia entre os privilegiados de uma classe social e os desvalidos da outra. O clima tornou-se tenso, pronto para explodir (cf. Pixley, pp. 44ss.). Houve agitações proféticas entre os trabalhadores agrícolas desem-pregados, revoltas de fome na capital; o povo gritou:

Ba'lu está muerto! Qué va a ser del pueblo?
El hijo de Daganu (= trigo)! Qué será de la multitud?
En pos de Ba'lu hemos de bajar a la tierra.

(UT, 67, VI, 23ss.; Olmo Lete, p. 223.)

Neste instante Elias anunciou que não é Baal, o deus da aristocracia cananeia, quem dá orvalho e chuva, mas, sim, Javé (Os 2.10). Ele, o Deus vivo da libertação dos escravos, mantinha preso a Baal para demitizar e deslegitimar o vigor absoluto das leis económicas. Desmoronou, assim, o sistema opressor de Acabe:

Pela vida de Javé, o Deus de Israel, a quem sirvo: Não haverá nestes anos nem orvalho nem chuva, a não ser quando eu o ordenar. (l Rs 17.1.)

Deste modo, houve um desmantelamento da superestrutura divinizada do Esta¬do de Acabe que favoreceu a má distribuição dos bens. A seca catastrófica levou à crise de abastecimento e tornou urgentes novos princípios económicos, uma nova ordem na qual se podia cumprir a vontade de Javé.

Assuntos para uma entrevista imaginária:

Pergunta n° 4: Senhora! Vivenciamos hoje uma situação semelhante. Também o nosso povão tem de submeter-se de modo fatalístico a leis mercadológicas. Diz-se que o mercado deve seguir as suas próprias leis, nas quais não se pode mexer. Assim, divinizamos o mercado livre, o crescimento econômico, projetos ambiciosos, privilégios, todo o sistema (cf. de Santa Ana, pp. 33ss.). No entanto, cresce entre nós a consciência de que a responsabilidade sócio-política de nossa fé em Deus é justamente destronar estas 'falsas divindades', ou seja, demitizar aquelas leis económicas que não trazem bênção e salvação, mas, sim, injustiça e miséria. Parece mentira, mas estas leis 'férreas' podem falhar e falham, e, por isto, devem ser controladas ou até substituídas. Com a adoração destes 'ídolos' nada funciona mais em nossa terra. Não ajuda magia nenhuma! Eles perderam a sua validade e, caindo, deslegitimam a estrutura em vigor, exigindo novos princípios éticos da economia...

A viúva: Deus realizou em Sarepta, entre nós que estávamos acostumados a repartir até os últimos recursos, o milagre e se revelou a nós, pobres, como o poder doador da vida. A este amor ao próximo, a esta 'lei' economicamente louca (louca neste sentido de que ela não visa um crescimento económico em prejuízo de outros) Javé proporcionou a vitória. Nesta economia informal, questionante e dissidente, estabelecemos um novo modelo da sociedade, mais adequado à vontade de Deus. Gestos tornaram-se milagres e milagres tornaram-se gestos.

3. História n° 3: a viúva da seca e a tradição libertadora (l Rs 17.8-16)

Uma terceira possibilidade de pregação é focalizar os acontecimentos em Sarepta mesmo e tematizar o aspecto histórico-salvífico do texto (cf. Croatto, pp. 37ss.).

Em Sarepta, uma viúva deu abrigo e comida a um revolucionário. Deu literalmente o último que tinha: repartiu a última ração de farinha e azeite entre Elias, seu filho e si mesma.

Farinha e azeite! — foram estas as palavras-chaves através das quais Elias, de repente lembrou-se de uma canção popular muito antiga. O seu povo a tinha cantado por ocasião da entrada na terra prometida, quando Javé o salvara da carestia e da fome (Veerkamp, p. 25):

A vasilha de farinha não se esvaziará,
e a jarra de azeite não acabará,
até o dia em que Javé enviar
a chuva sobre a face da terra.
(l Rs 17.14.)

O povo israelita era rico de tais canções populares que o lembravam de seus eventos salvíficos na história junto com Javé. Algumas destas canções populares ainda encontramos na Bíblia Hebraica: uma canção sobre a busca bem-sucedida de água no deserto (Nm 21.16ss.), uma outra sobre a tomada da terra e a colonização de Canaã (Nm 10.35s.), mais uma sobre a penúria e ameaça militar na terra cultivada (Jz 5.8), além de outras mais. Casaldáliga (p. 38) diz:

O Povo

         tem nas mãos

                  as roupas,

                 as bandeiras,

                 úmidas de sereno

                e de sangue.
 

E — a respeito de tais tradições histórico-populares — dever-se-ia continuar ainda com:

Não  falta-lhe o varal

             da memória 

                   histórica

                          das lutas.

Chamamos tais poesias hoje de históricas, porque surgem — até hoje — em situações históricas de crise e representam, portanto, muito mais do que meramente contos de fada. Também o motivo do Tischlein-deck-dich surgiu lá onde a realidade da fome imperava.

Pois bem. Esta canção popular que relaciona a vontade de Javé com uma tradição libertadora que fala de salvação em tempos de penúria e de fome, o profeta Elias a tomou, agora, como ponto de partida para identificar o agir da viúva como acontecimento da história da salvação. A Bíblia não diz que foi Elias que realizou o milagre, mas diz que foi Javé que citou a canção popular. Parece mentira, mas assim as tradições libertadoras funcionam como matriz de uma superação dialética do negativo que já foi definida e estabelecida por Deus de modo salvífico na história de muitos povos. O que importa é a consequente práxis do amor que recarrega justamente aquilo que Deus já definiu e estabeleceu historicamente. A viúva não sa¬bia da história salvífica do povo israelita, mas já praticava uma tradição libertadora que falava dEle (cf. Am 9.7)!

Assuntos para uma entrevista imaginária:

Pergunta n° 5: Senhora! Acredita que existem religiões e ideologias que são capazes de chegar a uma ordem justa da sociedade?

Penso que a viúva de Sarepta responderia que tinha aprendido de Elias o seguinte: o critério decisivo seria como tais máximas religiosas ou ideológicas se relacionam com as tradições libertadoras da história humana. Através delas a condição fundamental da vida humana, a igualdade, estabeleceu-se na história bem como na memória. A viúva: É de suma importância a virulência de tais tradições libertadoras na boca do povo, as quais sempre deveriam ser praticadas! Existia uma época em que os antigos israelitas já começaram com este tipo de transmissão no culto doméstico (cf. Êx 13.16; Dt 4.9; 6.7,9; 11.19ss.). Ela continua: Não foi mero acaso que Elias tenha se referido às tradições libertadoras quando citou esta canção popular bem antiga (l Rs 17.14).

Casaldáliga (p. 35) diz:

O gado

e o Povo


— sabidos, teimosos —

pastam

contra o Vento.


As razões para isto têm a ver com a memória desta gente; ela, às vezes, está curta, mas sempre ressurge. Parece mentira, mas não é!

4. Subsídios litúrgicos

Hino inicial: HPD n° 124,1-4 (ou: Quero cantar l, p. 21).
Intróito: SI 146.5-10.
Confissão de culpa: Sl 51.3-6.
Anúncio da graça: Am 5.4,6a, 14.
Oração de coleta: Sl 124 ou 126.
Hino antes da prédica: HPD n° 190.1-6 (ou: Quero cantar l, . 44).
Hino depois da prédica:HPD n° 88.1-3 (Ou: Quero cantar 3, p.18).
Ideias para uma oração final:

Comparamos o Reino de Deus
como uma Igreja,
que sendo rica se fez pobre
e se dá aos mais pobres.

Se todas as igrejas promovessem justiça social,
não haveria uma só criança descalça e com fome,
nem uma só mulher maltratada, explorada,
nem um só homem sem terras para cultivar.
É essa a Igreja que queremos ser!

Compreender a Igreja e seu verdadeiro papel na sociedade,
é crer que o Reino de Deus chegou até nós.
Ser membro de uma sociedade em luta,
é aprender a partilhar o meu com o teu,
providenciando para que a Igreja use a prática apostólica.
(Colheita de Esperança, vol. I, pp. 252s.)

Hino final: HPD n° 95.1-3 (ou: Quero cantar l, p. 26).


5. Literatura

- K. HARTH, Dádiva e Louvor (TS 10), São Leopoldo, Sinodal, 1986.
- Dom P. CASALDÁLIGA, A Cuia de Gedeão, Petrópolis, Vozes, 1982.
- J. S. CROATTO, Êxodo — uma Hermenêutica da Liberdade. São Paulo, ep, 1981.
- G. FOHRER, Elia (ThANT 53), Zürich, Zwingli Verlag, 1968.
- M. HELTZER, The Rural Community in Ancient Ugarit, Wiesbaden, Dr. L. Reicher Verlag, 1976.

- G. U. KLIEWER, O Deus criador e o homem consumidor, in: EstTeol 20:29-40, 1980.
- O. MADURO, Religião e Luta de Classes. Petrópolis, Vozes, 1983.
- G. del OLMO LETE, Mitos y Leyendas de Canaan, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1981.
- J. PIXLEY, A História de Israel a partir dos Pobres. Petrópolis, Vozes, 1989.
- G. v. RAD, Teologia do Antigo Testamento, v. 2. São Paulo, ASTE, 1986.
- J. de SANTA ANA, Custo social e sacrifício aos ídolos, in: Dívida Externa e Igrejas. Rio de Janeiro/São Paulo, CEDI, 1989, pp. 73-91.
- M. A. V. da Silva, Elias — O Juízo sobre a Monarquia ou a Desfeita de Baal, in: EstBibl 4, Petrópolis, Vozes, 1985/6, pp. 33-40.
- T. VEERKAMP, Die Vernichtung des Baal. Stuttgart, Alektor Verlag, 1963.
- VV. AA., Colheita de Esperança, v. l, São Paulo, CLAI, 1988.

 


Autor(a): Friedrich Erich Dobberahn
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 25º Domingo após Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Reis I / Capitulo: 17 / Versículo Inicial: 8 / Versículo Final: 16
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1990 / Volume: 16
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13880
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Anunciarei o amor de Deus, o Senhor, e darei graças por tudo o que Ele tem feito.
Isaías 63.7
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