Gálatas 3.23-29

Auxílio Homilético

23/06/2013

Prédica: Gálatas 3.23-29
Leituras: Isaías 65.1-9 e Lucas 8.26-39
Autor: Nilo Orlando Christmann
Data Litúrgica: 5º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23/06/2013
Proclamar Libertação - Volume: XXXVII

1. Introdução

Isaías 65.1-9 descreve a ira de Deus com aqueles que vivem a vida de seu próprio jeito. O profeta denuncia a rebeldia e a hipocrisia: não buscam a Deus e ainda se consideram mais santos do que as outras pessoas. Por isso pagarão por seu pecado. Ainda assim, há espaço para a misericórdia de Deus. A figura é emblemática: mesmo o suco de algumas poucas uvas é sinal de bênção. A ira de Deus não promete destruição total. O propósito de Deus de ter um povo fiel e que experimente suas bênçãos continua inalterado.

Em Lucas, a cura do endemoninhado geraseno é uma das passagens mais extraordinárias dos evangelhos. Os demônios são de tal ordem, que são uma “multidão”. Se em Isaías há clemência para parte do povo de Deus, aqui há misericórdia com um estrangeiro, que recobra sua integridade e seu juízo. Já o destino dos demônios são o abismo e a morte.

Que relação pode ser feita entre esses textos e Gálatas 3.23-29?

a – O relato de Isaías testemunha a dificuldade do ser humano em cumprir a lei. O texto de Gálatas é retrato da nova aliança a partir da fé em Jesus Cristo.

b – O Deus misericordioso que se manifesta em Isaías 65.8-9 é o mesmo que envia o próprio Filho. Na cura do endemoninhado de Gerasa está caracterizado um novo tempo: o mal, a morte e o diabo estão com os dias contados. “Exorcismo é sempre sinal de libertação” (Brakemeier).

c – A cura de um estrangeiro anuncia que a vinda do Filho de Deus rompe com as diferenças de raça, gênero e condição social. É justamente dessa nova realidade que trata o texto da pregação.

2. Considerações exegéticas

Paulo escreve aos gálatas entre os anos 53 e 55 d.C. Os gálatas são fruto de uma das viagens missionárias de Paulo à Ásia Menor. A origem dos destinatários da carta é pagã (4.8-9). O que leva Paulo a escrever é a informação de que chegaram pessoas – judeu-cristãos – à comunidade para perturbar e perverter o evangelho de Cristo (1.6-7), questionando a legitimidade do apóstolo Paulo e tentando convencer a comunidade da necessidade da circuncisão e do apego às obras da lei.

A carta é escrita com uma boa dose de decepção e indignação, tanto assim que Paulo se afasta de sua característica ao iniciar a epístola. Deixa de lado maiores saudações e agradecimentos para ir direto ao ponto. Em sua indignação chama os gálatas de insensatos (3.1) e recomenda a mutilação (castração) aos perturbadores (5.12).

O assunto que perpassa os seis capítulos é a relação entre a lei, a fé em Jesus Cristo, as obras e a liberdade. O apóstolo escreve na convicção de que seus argumentos demoverão a jovem comunidade de dar ouvidos aos que não pregam o verdadeiro evangelho de Jesus Cristo (5.10), o que a colocava sob risco de nova escravidão (5.1). Uma das partes mais densas da argumentação de Paulo está em 3.23-29. Nas versões bíblicas consultadas, não há grandes variações de tradução, incluindo a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH). A tarefa maior consiste em entender o conteúdo do texto.

O v. 23 está em estreita relação com os v. 21 e 22. Para que a promessa de Deus pudesse se cumprir em Jesus Cristo, era necessário que todos estivessem encerrados sob o pecado. A lei escancara essa condição, deixando o ser humano prisioneiro por não conseguir cumpri-la. A lei, por um lado, mostra a vontade de Deus e, por outro, não tem em si mesma a força necessária para dar vida, para justificar. O que faltava foi resolvido em Jesus Cristo. É a fé nele que coloca os que creem em uma nova relação com Deus (e também com a lei). Os gálatas, como não judeus, não são conhecedores de tudo o que diz respeito à tradição veterotestamentária da lei de Deus. O pressuposto é o conhecimento natural de todo ser humano a respeito do certo e do errado, aquilo que Deus inscreveu no coração das pessoas.

V. 24 – A lei (nomos) serviu de paidagogos para conduzir as pessoas a Cristo. A tradução de paidagogos é diferente nas diversas traduções: “aio” (Almeida), “pedagogo” (Bíblia de Jerusalém) e “tomar conta” (NTLH). Cada tradução tenta aproximar o sentido do texto ao grego. Importa entender quem era um
paidagogos naquele tempo: o escravo que tinha a tarefa de levar a criança/jovem ao mestre; essa tarefa incluía a vigilância e a correção. Assim, a lei serviu apenas de meio – ficou tomando conta – para conduzir à fé em Jesus Cristo (o mestre). Se fosse cumpridor da lei, o ser humano teria mérito diante de Deus. A sua obra seria a credencial. Mas esse não é o caso. Foi a ação de Deus que fez com que fôssemos justificados (passivo). A parte “ativa” do ser humano é a fé, é o crer. Em última análise, no entanto, também o crer é dádiva, para que ninguém tenha do que se orgulhar (Ef 2.8).

V. 25 – O novo tempo, o tempo da fé em Jesus Cristo, coloca os cristãos sob novo senhorio. O senhorio não é mais do paidagogos, da lei. Já não é ela que toma conta da comunidade cristã. O senhorio é do próprio Jesus, porque nele se cumpre toda a lei. A mediação, via cumprimento da lei, foi substituída pela mediação da cruz. Agora a relação com a lei já não é de quem toma conta, e sim de liberdade em cumpri-la.

V. 26-27 – O caminho que Deus percorre em favor do ser humano na cruz retira-o da condição de escravo e prisioneiro da lei para colocá-lo na condição de filho de Deus. Esse é o evangelho verdadeiro. Essa é a pérola preciosa que Paulo não quer que os gálatas percam após havê-la encontrado. Aqui se entende a indignação do apóstolo: como podem os gálatas querer abrir mão das prerrogativas de filhos de Deus (4.6-7) para retornar à condição de escravos? O sinal visível da filiação é o Batismo. Ser batizado em Cristo equivale a ser revestido por ele. No linguajar paulino, “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (2.20)

V. 28 – De escravos para a condição de filhos de Deus! Disso resulta a igualdade. No passado, todos estavam encerrados no pecado. Agora, pela fé, são feitos filhos e filhas do Pai. Como a graça de Deus não faz distinção, a igualdade está declarada. Caem por terra todas as razões que se possam arquitetar para que alguém se entenda mais merecedor daquilo que Deus tem a oferecer. A unidade na comunidade dos cristãos está assegurada, pois ali se reúnem pessoas igualmente agraciadas com a salvação que não mereciam.

V. 29 – O sacrifício de Cristo na cruz tem abrangência universal, inclui todos. Portanto pertencer a Cristo é também ser herdeiro das promessas feitas a Abraão, assim como fora dito em Gênesis 22.18. Ser da família de Deus deixa de ser uma questão de linhagem. A filiação, o pertencimento, dá-se pela fé em Jesus Cristo.

3. Meditação

Há uma diferença considerável entre os cristãos da pós-modernidade e os gálatas da Ásia Menor no início do primeiro século. A distância não é apenas cronológica. Aquelas comunidades estavam recentemente constituídas. Como o cânone bíblico ainda não estava formatado, as informações que tinham sobre a nova fé não iam muito além do que conseguiram apreender com a passagem do apóstolo Paulo. O Espírito Santo agiu, e muito, para que essas comunidades sobrevivessem. A ruptura com as crenças anteriores havia acontecido. No entanto, o entorno não era cristão. Podem-se deduzir tentações de toda ordem.

Como se não bastasse essa fragilidade conjuntural, os gálatas recebem a visita de outros cristãos, de ênfase judaizante, que começam a semear dúvidas sobre as bases de sua fé. É o tal do “fogo amigo”. A carta do apóstolo Paulo é sinal de seu amor e comprometimento com os gálatas. As explicações, os argumentos e os apelos têm a intenção de evitar que os gálatas percam a liberdade conquistada a partir da fé em Jesus Cristo. Para dentro dessa situação vivencial, o texto da pregação sublinha alguns pontos fundamentais. O primeiro deles é deixar claro que a função pedagógica da lei é ajudar o ser humano a perceber toda a sua miséria para, então, com o advento da fé em Jesus Cristo, poder experimentar a grandeza da obra que Deus faz em seu favor. Lutero diz, em seu comentário a Gálatas, que a lei humilha e faz gemer e que, na humilhação, a pessoa busca “a mão do Mediador, cuja graça e misericórdia tornam tudo muito agradável”. Em seguida, o reformador afirma que “não se lembrará do doce aquele que jamais experimentou o amargo”.

As crianças/meninos não gostavam do paidagogos. Em suas mãos, as crianças tinham vida equivalente à de escravos, mesmo que o pai soubesse que esse era um caminho necessário para que o menino fosse um adulto digno de receber a herança. Por isso, em segundo lugar, deixar de ser prisioneiro da lei, para
experimentar a filiação divina oferecida em Jesus Cristo, constitui uma dádiva sem igual. Eis o verdadeiro evangelho a ser proclamado. De fato, não é compreensível que, tendo experimentado esse presente e a liberdade que dele decorre, alguém possa querer voltar atrás.

Em terceiro lugar, lembremos que os judeus – assim também Paulo antes de sua conversão – oravam pela manhã agradecendo a Deus por não ser gentios/pagãos, escravos e mulheres. Essa oração dá a dimensão da afirmação de que, a partir da fé e do batismo, já não existe diferença entre judeus e não judeus, entre escravos e livres, entre homens e mulheres. Essa lista poderia continuar e afirmar que já não há diferença entre crianças e adultos, entre agricultores e desembargadores, entre patrões e empregados... Não obstante, a enorme diferença entre os gálatas e as pessoas de nosso tempo; há, sim, pontos em comum. O ser humano carrega consigo a condição de por si próprio não fazer o que agrada a Deus. Somos todos “farinha do mesmo saco”. Ao mesmo tempo, carregamos conosco a contínua tentação de achar que podemos fazer alguma coisa para resolver o problema do nosso pecado. Por mais ilógico que seja, o ser humano adere e inventa deuses de toda ordem, prostrando-se em seguida diante deles. Isso lembra a frase escrita com giz em uma calçada: “Liberdade é pouco; o que queremos ainda não tem nome”.

Declarar a ausência de diferenças entre as pessoas é tão extraordinário, que parece ser coisa de ficção. A igualdade decorre da fé em Cristo. Não se trata de uma igualdade que torna todos os cristãos cópia um do outro. Em outras cartas (Rm, 1Co e Ef), o mesmo Paulo usa a figura do corpo para descrever a diversidade presente na comunidade cristã. Tampouco a intenção é anular a diferença entre homem e mulher, pois se complementam mutuamente. Ao mesmo tempo, porém, a igualdade em Cristo não quer induzir à mera espiritualização.

Onde as pessoas experimentam a fé libertadora e salvadora em Jesus Cristo, as diferenças contrárias à vontade de Deus perdem espaço, vão encolhendo.
Isso vale para os machismos e os feminismos, vale para as injustiças de toda ordem, vale para as discrepâncias sociais, vale para as discriminações sejam quais forem. A fé em Jesus Cristo é fermento de unidade, pois as outras pessoas são alvos do mesmo amor com o qual fui agraciado. A comunidade cristã e seu testemunho, de algum modo, hão de apontar para a realidade do reino de Deus.

Gálatas 3.23-29 toca em pontos centrais da teologia paulina e luterana. Por isso mesmo, ajuda a olhar-nos no espelho e ver a absoluta dependência da misericórdia e da graça de Deus. Ao mesmo tempo, nesse texto, o evangelho pulsa com toda a sua força, sublinhando a ação de Deus em Cristo a nosso favor. Os desafios, por sua vez, estão implícitos. É palavra a ser lembrada a cada dia e por toda a vida, pois a vida de fé não se resume a um antes e um depois, mas pede a conversão diária.

4. Imagens para a prédica

a – Os gálatas estavam se deixando seduzir. O risco era voltar à escravidão: primeiro dos deuses pagãos, agora no apego à lei. O que seduz as pessoas na pós-modernidade? A função do paidagogos era tomar conta. É interessante refletir sobre quem e o que toma conta de nós. O que liberta e o que aprisiona?

b – Lutero diz que a gente somente consegue apreciar a doçura do doce se antes experimentamos o amargor do amargo. O amargo, para Lutero, é o desespero que decorre do pecado. Foi sua luta pessoal. Em nosso tempo, tornou-se pecado sentir qualquer tipo de culpa/pecado; baixa a autoestima. Quem gosta de usar algo mais concreto na pregação pode usar algum elemento amargo – losna, pau-amargo, bálsamo alemão – e um pote de mel.

c – A imagem da filiação é muito especial nesse texto. Naturalmente, várias pessoas têm experiência negativa com os pais. Mas isso não deveria impedir de sublinharmos essa grande dádiva de ser feitos filhos de Deus a partir de Jesus Cristo. Sem contribuir para tanto e sem mérito algum, Deus nos faz herdeiros de sua promessa. Eis a boa-nova, o evangelho, o mel a ser saboreado. O Batismo (mencionado no texto) e também a Ceia são a expressão viva desse amor.

d – Nos dias em que escrevo este auxílio homilético, noticia-se que o passageiro de um avião ficou contrariado e deixou de viajar quando percebeu que o avião seria pilotado por uma mulher. O apóstolo Paulo usa diversas vezes a figura do corpo para falar da diversidade do corpo de Cristo. Ou seja, há uma diversidade que soma e agrega, que aponta para o Reino. Por outro lado, existem também preconceitos que discriminam e excluem. Essa ponderação ajuda as pessoas individualmente e a comunidade no desafio da unidade.

5. Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados:

Considerando o texto da pregação, a confissão de pecados deveria incluir a nossa tendência a querer barganhar com Deus para dele merecer alguma recompensa. Assim também pedir perdão quando deixamos de agradecer pelo presente da filiação que Deus nos concede em Jesus Cristo. Incluir ainda a dificuldade que temos para tirar os preconceitos dos nossos olhos, da nossa mente, do nosso coração.

Hinos:

O Salmo 119 está em forma de hino no HPD 2, nº 383. Nesse hino cantamos: “A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma...”. Uma sugestão seria cantar esse hino antes da pregação. Ele poderia servir de ponte para falar sobre o texto. A lei é perfeita? Em que sentido? A sua perfeição está em ser o caminho escolhido por Deus para conduzir à fé em Jesus Cristo.

Um hino que expressa a nova realidade em Cristo é o 328 do HPD 2: “Um só rebanho, um só pastor”. Poderia ser cantado depois da pregação.

Bibliografia

BARCLAY, William. Comentario al NuevoTestamento. Tomo 10 – Galatas y Efesios. Buenos Aires: Editorial Aurora, 1973.
LUTERO, Martim. Commentarius in Epistolam ad Galatas. – WA 40/I,33-688. Tradução: Paulo F. Flor. O texto original dos capítulos 5 e 6 encontra-se em WA 40/II,1-184.


Autor(a): Nilo Orlando Christmann
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 5º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Gálatas / Capitulo: 3 / Versículo Inicial: 23 / Versículo Final: 29
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2012 / Volume: 37
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 25424
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