A Morte e o Morrer na Bíblia (subsídios para o rito do sepultamento)

Artigo

05/02/1988

A MORTE E O MORRER NA BÍBLIA

(subsídios para o rito do sepultamento)

Gottfried Brakemeier

I — Preliminares

Toda teologia que silenciar com respeito à morte fica em débito com o essencial da mensagem cristã. Pois a notícia de Páscoa é o suporte de todo o Evangelho. Tragada foi a morte pela vitória (1 Co 15.54). E: Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos (1 Pe 1.3). Em tais palavras a primeira cristandade expressava seu júbilo. E realmente, sem a superação da morte não há esperança verdadeira. Sem a libertação da morte, todas as demais libertações permanecem parciais, ambíguas, fadadas a reverterem novamente em escravidão. É verdade?

Ora, a morte é o problema dos problemas, a causa última das agressões e frustrações humanas. Há quem queira insinuar ser a morte nada mais do que um fenômeno muito natural. Seria uma lei da natureza a ser encarada sem a costumeira dramatização. Sob a perspectiva científica, de fato, o morrer se resume num mero processo químico. É o colapso de um organismo, comparável ao estrago de uma máquina. Não há nenhum segredo nisto. Tudo é explicável, tudo muito natural. E todavia, essa tese não funciona. É insatisfatória, superficial. Não resolve o problema.

Pois em verdade, ninguém quer morrer. Nem mesmo o suicida o quer. Se prefere a morte, é porque a vida se lhe deteriorou ao ponto de supostamente não mais lhe oferecer perspectivas. Mas no fundo, também ele quer viver. Muitas tentativas de suicídio não passam de um insistente grito de socorro. A morte sempre causa pavor. Ninguém sabe o que vem depois, ninguém consegue imaginar o que é estar morto. Temos medo, inclusive do morrer, isto é do processo que precede a morte e nela desemboca. Pode ser um período de grave doença, de muito sofrimento e dor em que inexoravelmente somos reduzidos a nada, a lixo, a um cadáver fedorento. O que a morte faz conosco é brutal. É revoltante. Não há nada pior. E ninguém pode fugir. Essa perspectiva lança suas sombras sobre toda a vida e a prejudica:

1. A morte fere o orgulho humano. O que resta de nós no fim da vida é um saco de vermes. Como se ajusta isto à nossa dignidade? Além disto, o morrer nos lança à mercê de outras pessoas. Faz-nos vergonhosamente dependentes. Toda nossa glória se dissolve em nada. A morte nos ofende. É por que o sepultamento religioso se reveste de tão alta importância: Atesta que a pessoa não é enterrada como um cachorro. Resguarda a dignidade humana mesmo na situação de tão flagrante humilhação.

2. A morte questiona o sentido da vida. Qual é o valor da vida, se hoje somos e amanhã já não seremos mais? Que é o ser humano, se tudo o que realizou um dia será esquecido e já não mais existe? Em vista da morte, a vida passa a ser lúgubre interlúdio sem maior importância. Periga tornar-se absurda. É o que expressam muito bem os termos de uma canção brasileira, dizendo:

A vida é essa:
Mal se começa,
com esperanças de melhor sorte,
vem logo a morte,
sem coração,
provar que a vida é uma ilusão.

3. A morte corta impiedosamente as relações humanas.Não só a minha própria morte é dolorosa. Também o é a morte de pessoas amadas, ligadas a mim, pertencentes a uma comunhão. A morte do filho, da esposa, do pai — isto é motivo de profunda tristeza, a não ser em caso de apatia total. Quanto mais amamos as pessoas, tanto mais sofremos sob a sua morte. Somos jogados por ela no abandono, talvez também em sentimentos de culpa, em profunda crise. Não raro, a morte de pessoas amadas é sentida como verdadeiro crime.

4. A morte exige de nós a entrega de nós mesmos, portanto um ato de total desprendimento. A isto, porém, resistimos. Dele temos medo. Consideramo-nos donos de vida. Julgamos ser ela nossa propriedade. Mas a morte nos desapropria de modo radical. Tira o que é supostamente nosso. É sentida como roubo.

Caracteriza-se o problema da morte pelo fato de não ser delegável. Todos devem trabalhá-lo, todos enfrentá-lo. Aliás, não se trata de um assunto meramente individual. Pois a maneira de eu encarar a morte terá incisivas consequências para outros. A morte é problema individual e social. As posturas assumidas inevitavelmente repercutem no todo do convívio humano, razão para dedicar-lhe maior atenção do que normalmente acontece. O que observamos é profundamente contraditório:

5. Tentativas humanas de enfrentar a morte:

a. Prevalece em ampla escala a tentativa de suprimir o pensamento da morte. Todos sabem que deverão morrer, mas procura-se ignorá-lo enquanto possível. Evita-se o contato com a morte e mantê-la à distância, banindo os moribundos ao abandono nos hospitais, fugindo do sofrimento dos doentes e excluindo o tema morte da agenda diária. As consequências são catastróficas. Consistem no despreparo das pessoas para o morrer, redundando em desespero na hora do desengano. Torna-se inclusive crítico o processo do envelhecer. Falta solidariedade aos moribundos. Sobretudo, porém, é prejudicada a aprendizagem daquela sabedoria que resulta do conhecimento da necessidade de morrer e que faz as pessoas distinguirem entre as coisas importantes e fúteis da vida. A supressão da morte favorece uma vida em perigosas ficções.

b. Verifica-se uma notória incapacidade de aceitar a morte. Dela é fruto a supressão, da qual antes falamos. Mas esta é possível apenas até certo ponto. A realidade da morte se impõe de modo irreversível. Toda doença é sinal dela, assim como o são as demais ameaças a que vivemos expostos. Basta mencionar o trânsito, a violência nas cidades, os conflitos nacionais e internacionais, bem como a destruição do meio-ambiente e as vicissitudes climáticas. Existe uma consciência muito clara da morte. Mas a incapacidade de aceitá-la conduz a um desesperado apego à vida e a uma busca de garantias da mesma. O que vemos em nosso mundo é uma brutal luta por sobrevivência em que os fortes monopolizam os meios de vida, ou seja, os recursos da medicina, os alimentos, a tecnologia e outros. Excessivo apego à vida paradoxalmente colabora com a morte.

c. É porque, de outro lado, se instalou um estranho conformismo com a morte, aliás desde que não seja a minha. Notícias de terríveis catástrofes, massacres, assassinatos nos chegam todos os dias, mas não mais nos abalam. Que haja vítimas na luta pela sobrevivência aparentemente é tido como algo natural. Se assim não fosse, como poderíamos conformar-nos em nosso país com a fome, com o alto índice de mortalidade infantil, com a morte de milhares de brasileiros dia após dia em razão de pobreza e miséria? Somente o conformismo explica também um outro enigma: Como se justifica que somas astronômicas são investidas em alta tecnologia medicinal em benefício de apenas pouquíssimas pessoas, enquanto com uma fração daquele dinheiro populações inteiras poderiam ser curadas de moléstias endêmicas?

d. Mas não é apenas a sobrevivência física que o ser humano quer ver assegurada. Ele quer qualidade de vida, quer consumir e aproveitar. Mais ainda, ele quer poder de mando, quer ser chefe, dono de si e de outros. Isto o ameaça de tornar-se assassino. Nada melhor do que o sabor da vitória. Provém daí a atração de filmes do tipo Rambo. Permitem ao espectador a identificação com o vencedor. É por que também as armas exercem tamanho fascínio. Alimentam a sensação de poder e superioridade. A morte é temida, mas a violência festeja triunfos.

O quadro, portanto, é paradoxal. Em sua fuga da morte, as pessoas dela se tornam cúmplices. Em seu apego à vida, não sabem repartir. Pois o repartir de quaisquer bens sempre equivale a um repartir de vida. O medo da morte, porém, não o permite. Produz antes a concentração dos recursos. A morte mata já bem antes do fim da vida. Sua perspectiva faz as pessoas cruéis, tira-lhes o bom senso e os lança em desespero. É um mundo desesperado em que vivemos, com todas as características da loucura que o desespero tem.

O pastor deve pregar na sepultura. Em sua comunidade inevitavelmente se defronta com o tema morte. Que deverá dizer? Dependerá do caso, sem dúvida. E no entanto, todos os casos, de uma forma ou outra, estão ligados ao que é comum e característico da visão da morte em nossos dias. De qualquer maneira, a fé cristã tem uma palavra importante a dizer.

II. Aspectos bíblicos

As afirmações bíblicas sobre a morte e o morrer não são propriamente uniformes. As vozes são diversas e devem ser distinguidas. Ainda assim, cristaliza-se uma linha surpreendentemente convergente. Devemos limitar-nos a algumas breves colocações:

1. A morte na visão do Antigo Testamento

É comum de todo o Antigo Testamento apregoar a vida como o supremo bem. É por que tudo quanto o homem tem, dará pela sua vida (Jó 2.4). Vida é prometida aos que buscam a Deus (Am 5.4). Vida longa é sinal de graça (SI 21.4), vida é por excelência a dádiva do Deus da vida (SI 36.9). Se porém, a vida está em tão alta conceituação, a morte necessariamente aparece como algo negativo. Não podem harmonizar uma com a outra. Qualquer valorização da morte obrigatoriamente vai em detrimento do valor da vida. O AT não se vê em condições de aí fazer qualquer concessão. Conseqüentemente, vida é sinônimo de bênção, morte de maldição (Dt 30.19). Na base desta premissa comum, observam-se, ainda assim, algumas concepções peculiares, dignas de registro:

a) De certa forma, o morrer faz parte da vida. É o seu fim natural, assim como o é a colheita depois de um longo processo de maturação. Morrer velho e farto de vida (Gn 35.29; Jó 42.17; etc.), isto não tem nada de espantoso. É o desfecho orgânico da vida. Não a morte na velhice, mas sim a morte prematura horroriza. É sinal de juízo, é morte má. Afirma-se, pois, que a morte atemoriza somente, enquanto não estiver esgotada a vida — uma concepção que o próprio AT não conseguiu sustentar. Na verdade, não só a morte prematura, também a morte na velhice confronta com sérios problemas. E todavia, há um elemento muito correto nesta concepção a que voltaremos abaixo.

b) Quão fortemente estavam distintas as esferas da vida e da morte no AT pode-se depreender do fato de que tudo o que se relacionava com a morte era considerado impuro, distante de Deus. A morte não tinha nada de sagrado ou místico. Muito pelo contrário, quem morria estava fora da relação com Deus. Diz o cântico de Ezequias: A sepultura não te pode louvar nem a morte glorificar-te (Is 38.18; cf SI 88.10; etc.). Ainda desconhece o AT, em suas porções mais antigas, a fé na ressurreição. As pessoas, depois de terem morrido, desceriam à SHEOL, um lugar sinistro, tenebroso, sem alegria e vida. A morte exclui do mundo dos vivos, exclui por isto também da comunidade cultural e da esfera dos benefícios de Deus (cf SI 6.6; 88.4s; etc.). Reside aí um dos principais motivos da amargura dos moribundos. Passam para a esfera do impuro, do rejeitado por Deus. Vida e morte são alternativas radicais, sem nenhuma possibilidade de reconciliação.

c) Mas não só no fim da vida a morte se apresenta horrorosa. Era sentida como poder agressivo, ameaçando todas as fases da vida. Doenças e situações emergenciais pré-anunciam a morte. São suas manifestações precursoras (cf Ex 10.17; 2 Sm 22.5s; etc.). Cura e libertação são sinônimos de salvação da morte, pelo que os oradores agradecem a Deus (SI 56.13; 103.3s; etc.). Especialmente lá, onde Deus se retira das pessoas e as joga ao abandono, tem início a morte, mesmo que a pessoa ainda viva por algum tempo. Ilustra-o o exemplo de Saul (1 Sm 15s). Portanto, o poder da morte se faz sentir em meio à vida.

d) Essa observação, aliás, é válida ainda em outro sentido. Também em Israel houve quem sentisse o quanto a realidade da morte é capaz de aniquilar o sentido da vida humana. Morrem os homens assim como morrem os animais. Por isto o autor de Eclesiastes conclui ser tudo vaidade (Ec 3.19). Pensamentos semelhantes encontramos em Is 40.6s.; SI 103.14 ou no SI 90.3s.: O ser humano é como flor do campo que hoje floresce e amanhã murcha. Deus reduz os homens a pó e lhes estabelece o número de anos que acabam como um breve pensamento. A morte, pois, relativiza a vida e lhe diminui o valor. Ainda que outros não concordassem com o autor de Eclesiastes no que respeita a vaidade de todas as coisas, importa, ainda assim, saber contar os nossos dias para que alcancemos coração sábio (SI 90.12). A morte imprime seus caracteres na vida humana e cruelmente destrói as ilusões.

e) Bem à margem do AT, em suas partes mais recentes, aparece finalmente a fé na ressurreição dos mortos. O movimento apocalíptico, tão significativo para o Novo Testamento e o próprio Jesus, pela primeira vez articula uma esperança para além da morte em termos expressos. Encontramo-la em Daniel e no bloco apocalíptico dos capítulos 24 a 27, inserido posteriormente no livro do profeta l saías (cf. Dn 12.1 s.; Is 26.19). Não precisamos demorar-nos na pergunta pela origem dessa esperança. Certamente deverão ser apontadas influências externas bem como situações históricas específicas. Mas não é isto o essencial. Decisiva é a observação que a própria fé no Deus de Israel, se pensada de maneira consequente, exigia a afirmação da ressurreição. Jamais a morte tinha sido entendida como poder paralelo de Deus, independente dele. Deus mesmo a impunha como castigo ou como simples limite da vida. Se, porém, Deus é o Senhor da morte assim como ele o é da vida, como então pode terminar a comunhão com ele quando a pessoa morre? Israel, em sua história aprendeu serem os laços da comunhão com Deus mais resistentes do que o poder aniquilador da morte. Dessa certeza dão testemunho comovente uma série de textos, ainda que não falem expressamente em ressurreição (cf. SI 16.9s.; 73; 139.7s.; Jó 19.25ss.). A fé na ressurreição dos mortos, portanto, não é uma mera ideia introduzida em Israel como novidade, mas sim é uma implicação legítima da confiança no poder e na fidelidade de Deus. Esta convicção muda o aspecto da vida e da morte, como o Novo Testamento bem o evidencia.

Em retrospecto ao AT, pois, constatamos uma variedade de perspectivas, complexas em si e não isentas de certa ambivalência. O NT aprofunda a visão da morte e, em assimilação crítica dos elementos vétero-testamentários, proclama a derrota deste mortal inimigo do ser humano. Como acontece isto?

2. A morte na visão do Novo Testamento

O que o NT tem a dizer com respeito à morte (e à vida) pode ser muito bem desdobrado a partir da palavra de Jesus, dizendo: Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho, salva-la-á (Mc 8.35). Esta palavra, evidentemente tem seu lugar vivencial numa situação histórica concreta que é a da perseguição aos discípulos de Jesus. Seu sentido, porém, é abrangente e praticamente resume o enigma da morte bem como sua solução. Vejamos.

a) Jesus, e por conseguinte a fé cristã, não nega ser o anseio humano por vida algo muito legítimo. Vida é por excelência o dom de Deus (Rm 6.23). Nisto são unânimes o Novo e o Antigo Testamento. É o que Jesus traz: Vida em abundância (Jo 10.10), vida eterna (Jo 5.24). Conseqüentemente, a morte é o grande inimigo (1 Co 15.26), o adversário do ser humano e do próprio Deus, com cuja realidade não há como conformar-se.

b) Desgraçadamente, porém, o ser humano, em sua busca por vida, torna-se colaborador da morte, vítima e réu da mesma. Não reconhece a vida como dádiva, pela qual compete pedir e agradecer. Antes dela se apodera como que de um roubo (cf. Fl 2.6s.) e procura potenciá-la apoiando-a em coisas vãs, em flagrante desrespeito à vontade de Deus em culto a deuses autofabricados (cf. Rm 1.18 ss.). Tornam-se pecadores todos ao quererem, a qualquer custo, salvar a sua vida, matando inclusive a vida de outros. Atraem assim o juízo de Deus sobre si, caem em maldição e, conseqüentemente, perdem a vida que tanto pretendem salvar. Promessa de vida tem apenas quem sabe respeitá-la como dom gratuito de Deus e quem sempre de novo a recebe.

c) É por isso que o apóstolo Paulo pode dizer ser a morte o salário do pecado (Rm 6,23). Já o AT afirmara que Deus castiga o pecado com a morte má ou prematura. Mas o NT amplia a afirmação e a aplica à morte em geral. De que morte se trata? Ora, é a morte-mal-dição (E. Jüngel), é a aniquilação da pessoa, é a sua tão temida redução ao nada. Esta é o salário do pecado. Não o é o morrer como tal. Pois existe um morrer que não desemboca em aniquilação e morte, mas sim em vida eterna. É a morte pavorosa, a morte perdição, a morte sem perspectivas que é o castigo do pecado e nele tem sua origem (cf. Rm 5.12s.). Enquanto isso, o fim físico do ser humano não é castigo. É simplesmente decorrência e implicação do fato de sermos criaturas. O morrer deixará de ser maldição no momento em que Deus perdoar os pecados e despertar a esperança por vida para além dos limites da morte. Então, mas somente então, o morrer voltará a ser algo natural.

d) Para salvar a sua vida, pois, é necessário sabor entregá-la e dela se desprender. A vida é dom de Deus. Mas ela permanece sendo dom unicamente, se formos capazes de também devolvê-la. Devemos devolver este presente às mãos de Deus e o podemos por causa de Jesus Cristo e do evangelho. Em Cristo temos a promessa de vermos face a face (1 Co 13.12) e da definitiva comunhão com nosso Senhor (Fl 123).

Portanto, defrontamos-nos com uma dialética muito profunda: Para fugir da morte é preciso saber morrer e não ficar preso a esta vida. Isto significa que a morte permanece sendo o inimigo a combater. Doença, assassínio, desespero, fome, opressão, ódio —tudo isto destro! o precioso dom de Deus que é a vida. Existe um radical compromisso de preservar a vida, de mordomia boa e fiel. Isto inclui a preservação do meio-ambiente, o zelo por paz e justiça, a necessidade do trabalho. Por ser dom de Deus, vida é santa. Cai sob o juízo quem a destruir. Paradoxalmente, porém, o objetivo será alcançado somente, se o ser humano for capaz de humilhar-se diante de Deus, devolvendo-lhe o que é dele, sendo portanto, fundamental a fé. Conseqüentemente devem ser adequadamente conjugadas a oposições à morte e a aprendizagem do morrer. Nesta dialética consiste o mistério de morte e vida.

É exatamente isto o que a morte do próprio Jesus ensina. Jesus não queria morrer. Experimentou a morte em toda a sua brutalidade e maldição. Em Getsêmani luta com seu destino (cf. Mc 14.32s.). Está sendo tomado de pavor e angústia, pedindo a Deus: Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice. E na cruz ele grita: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? (Mc 15.34). Jesus se opôs à morte, tanto à sua própria quanto à de outros. Simultaneamente, porém, Jesus sabe dar a sua vida. Deu-a em nosso favor (Rm 5.8). Não foge da morte, não se prende à sua vida. Devolve-a às mãos de Deus, dizendo: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23.46). Pelo que Deus também o exaltou sobremaneira... (Fl 2.9), ressuscitando-o dos mortos, dando-lhe nova vida, vencendo a morte.

Sem dúvida alguma, a morte continua sendo realidade. Sua maldição é experimentada por todas as pessoas de uma ou de outra forma. E no entanto, já está vencida. Perdeu a morte o seu poder... (Hinos do Povo de Deus, n: 58). Pela graça de Deus um morrer natural, cheio de esperança se tornou possível. É um dos aspectos centrais do Evangelho.

III - Reflexões pastorais

O pastor deve pregar junto à sepultura. Mas não é apenas nestas ocasiões que a morte se impõe como assunto inevitável. O tema está embutido em toda pregação do Evangelho e se coloca implicitamente sempre que contemplamos a vida. Importa não ignorar a necessidade da aprendizagem do morrer como exigência e possibilidade evangélica. O Sepultamento não permite ser visto como acontecimento isolado na biografia das pessoas e na prática pastoral. É por isso que finalizo, apresentando algumas considerações de ordem mais geral e outras de ordem mais específica.

1. Vivemos num mundo em que prolifera o assassínio. Pessoas vitimadas pela violência física, pela privação do pão de cada dia, pela intoxicação dos alimentos, pelas condições de vida sub-humanas impostas pela sociedade. Fazem vítimas o trânsito, as drogas, a falta de atendimento previdenciário. A prédica cristã não pode atribuir à vontade divina o que , na verdade, é pecado humano. Deve chamar a atenção aos mecanismos da morte tão flagrantemente instalados entre nós. Assassínio é atentado contra o próprio Deus. Se a morte nos assusta, então isto em boa medida não deixa de ser fruto de culpa humana. As pessoas se matam mutuamente, sendo vítimas especialmente os fracos.

2. Esses triunfos da morte têm uma de suas principais causas numa concepção errônea de vida. Queremos vida, sim! Mas cultuamos uma visão consumista. Achamos que vida se consegue mediante o atendimento do que julgamos ser as nossas necessidades. Evidentemente, existem necessidades a serem atendidas. Mas não sabemos dar, repartir e renunciar. É o que promove a morte. Conduz a um mundo assassino e a uma vida que em meio ao luxo continua frustrada. A este nosso mundo certamente não falta ciência. Falta a sabedoria.

3. A denúncia do assassínio e de uma falsa concepção do vida, porém, ainda não são o Evangelho. A morte continua nos afligindo como problemas nosso inevitável. Causa sofrimento. Atinge-nos cruelmente como morte de pessoas achegadas e como destino a ser por nós mesmos enfrentado. Experimentamos a maldição da morte, problematizando nossa vida, lançando-nos em crises e angústias, ameaçando-nos do desespero. A denúncia aqui nada adianta. É preciso que a pregação desperte a fé. Caso contrário, jamais serão destruídos o tabu da morte, as ficções em que as pessoas se refugiam e a brutal luta por sobrevivência pelo menos temporária.

4. O Evangelho consiste fundamentalmente no anúncio da ressurreição dos mortos —não como simples ideia ou especulação, mas sim como possibilidade aberta por Jesus de Nazaré e sua ressurreição. Quem diz ser esta pregação alienante, nada compreendeu. Não negamos a possibilidade do abuso desta fé, manifesto sempre que a perspectiva do além for usada como pretexto para o desprezo à vida aqui na terra. Ambas as vidas, a presente e a futura, são igualmente santas, valiosas, dons do mesmo Deus. Ressurreição significa a negação da onipotência da morte, significa a certeza de vida ainda que morramos (Jo 11.25), significa a destruição da maldição que paira sobre a vida humana. A fé no Deus que ressuscita os mortos (2 Co 1.9) é a premissa da libertação do poder da morte e é indispensável para o ato da devolução de nossa vida às mãos do Criador, ato este que recupera a possibilidade de um morrer natural. É exatamente a negação da ressurreição, explícita, que fará alienante o nosso discurso. Pois induz as pessoas a perigosas ilusões e as faz aferrar-se à vida terrestre com todas as consequências nefastas que isto tem. É preciso pregar Deus como quem ressuscita os mortos. Ele exige a vida, sim. Ele a tira. Mas ele também a dá de novo. Somente tal convicção permite o tão necessário realismo frente à morte.

5. A recuperação de um morrer natural a partir da fé, aliás, implica também o direito ao próprio morrer. Este direito está sendo ameaçado pelos modernos recursos da medicina, capazes de prolongar o processo do morrer contra a vontade do moribundo. A pessoa humana está sendo tratada como mera máquina a ser mantida em funcionamento a qualquer custo. O paciente é iludido com respeito às perspectivas de vida, submetido não raro a torturas inúteis e privado da possibilidade de assumir o seu morrer. Surgem aí perguntas muito sérias que requerem conscienciosa discussão. Certamente se proíbe a eutanásia ativa, isto é, a aceleração da morte por ação humana. Mas permanece a pergunta, se não chega o momento em que também a medicina deve aceitar o morrer do paciente sem fazer tentativas inúteis de impedi-lo. Mas este assunto precisa ser discutido em outro lugar.

6. O Sepultamento religioso é uma forma e oportunidade de testemunhar a esperança cristã. Já o rito como tal é significativo. Atesta que, mesmo diante do defunto, não precisamos permanecer mudos, ainda que estejamos profundamente tristes. Temos uma mensagem a transmitir: Deus não capitula diante da morte. Mantém também os falecidos em sua mão. Deus ama também os mortos e assegura-lhes a dignidade. É por isso que o rito do Sepultamento possui tão elevado valor para as pessoas. É de enorme força consoladora. A desconsideração deste ofício pelo pastor denuncia falta de misericórdia.

7. O que dizer no enterro, naturalmente, dependerá do caso. Cuidado com as afamadas mentiras na sepultura. Não é tarefa do pregador exaltar as qualidades (talvez inexistentes) da pessoa falecida. Importa permanecer sóbrio, sem cair, de outro lado, num palavrear puramente abstrato. Também não é tarefa do pastor julgar o falecido. O juízo cabe a Deus. Normalmente, o que nos compete como pastores, é isto: Agradecer pela vida que findou e pelos benefícios de Deus, invocar a misericórdia divina, solidarizar-se com a dor dos enlutados e simultaneamente proclamar o poder de Deus capaz de dar nova vida mesmo em meio à morte. Aliás, falamos a vivos, não ao morto, razão pela qual todos os aspectos acima apontados (e ainda outros) são suscetíveis de abordagem. Vai depender do respectivo texto bíblico e das circunstâncias. De qualquer forma, nossa fala sobre a morte, seja onde e quando for, será evangélica somente, se tiver espectro pascal. Supera então o luto e prepara para o nosso próprio morrer.

IV – Bibliografia

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RINGELIN, H. Bemerkungen zur These vom natürlichen Tod. In: Ethik vor der Sinnfrage. Gütersloh, 1980.(Siebenstern 375).

Proclamar Libertação – Suplemento 2
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Gottfried Brakemeier
Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Acompanhamento e consolação
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1988 / Volume: Suplemento 2
Natureza do Texto: Artigo
ID: 7315
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