Apocalipse 7.9-17

Auxílio Homilético

05/11/1978

Prédica: Apocalipse 7.9-17
Autor: Edson Edilio Streck
Data Litúrgica: 24º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 05/11/1978
Proclamar Libertação - Volume: III


I - Preliminares

O maior problema que existe em relação ao último livro do Novo Testamento é o problema de sua interpretação. Durante quase todos os últimos dezoito séculos de nossa História, o Apocalipse de João foi visto, comentado, rejeitado, mal-encarado e lido como um livro que prevê toda a história do mundo e/ou da Igreja. Quem o fez e ainda teima em fazê-lo (Testemunhas de Jeová, etc.) tem se complicado bastante e viu frustradas suas tentativas de interpretação do Apocalipse. Além de expor-se ao ridículo, viu-se na obrigação de reformular, recalcular suas previsões.

O Apocalipse de João somente passou a ser entendido a partir do momento em que se passou a estudá-lo dentro de sua época. Lido fora do seu contexto bem especial e muito particular, até mesmo pastores se assustam ao ter que pregar sobre uma passagem deste livro. Para entendê-lo é necessário quebrar muitos preconceitos que cada um de nós, membro ou pastor, tem sobre o Apoca1ipse.

Sendo assim, retornemos aos anos 90 a 100 d. C., época em que alguém chamado João escreveu este livro. É longa a discussão em torno do autor (se é o discípulo de Jesus, ou o gnóstico Cerinto, ou um João presbítero em Éfeso, se é o mesmo autor do Evangelho e das epístolas joaninas). Para nós basta sabermos que não se trata de um joão-ninguém, mas de uma pessoa muito conhecida entre os cristãos da Ásia Menor (a quem se dirige em especial), que conhece muito bem a situação em que vivem os cristãos de seu tempo, que ele está preso pelo fato de ser um cristão autêntico e declarado (Ap 1.9).

Sua prisão se deve ao fato de ele ser cristão. Nesta época governa no Império Romano o imperador Domiciano (81 a 96 d.C.), o primeiro imperador que oficialmente exige ser chamado de Deus e Senhor. O culto ao imperador chega ao seu auge. Já em tempos anteriores alguns imperadores perseguiram cristãos (Nero, por exemplo), mas sob Domiciano ela se alastra, tornando-se geral e total. Pois os cristãos autênticos de forma alguma reconhecem e adoram o imperador como um Deus. O seu Deus é único e insubstituível. É o único Senhor de toda a História, de todos os povos .

Neste clima de perseguição aos cristãos, João escreve, da prisão, palavras de estímulo aos irmãos na fé. Ap 6.9-11 nos abre uma pequena fresta para vermos o que acontece: pessoas mortas por causa da Palavra de Deus e do testemunho que dela tinham prestado. João é levado a escrever aos cristãos que perguntam, como aqui: Até quando, Senhor, tardarás para fazer justiça, vingando o nosso sangue...? A eles João deve multiplicar a coragem, a esperança, a fé. E ele o faz, dizendo-lhes que Deus tem o destino do mundo e dos homens nas suas mãos, que é necessário que eles passem por esta grande tribulação, que receberão a coroa da vida todos os que permanecerem fiéis a Deus até à morte (Ap 2.10).

E para que seu livro pudesse ser lido e circular sem censura, João usou símbolos e palavras tomados do apocalipsismo judeu (que nasceu, cresceu e viveu em situações idênticas: de perseguição, alguns séculos antes e também depois de Cristo). Eram, portanto, palavras conhecidas pelos cristãos, pois eles tinham a chave, que infelizmente hoje nós não temos, nem a tinham as autoridades daquela época, para desvendar sua linguagem simbólica. Eles sabiam, portanto, que atrás de palavras como besta, dragão, etc., dever-se-ia entender as autoridades constituídas da sua época.

A partir deste muito breve, mas totalmente necessário retrospecto, poderemos analisar mais de perto, e com outros olhos, oxalá, o texto para a prédica: Ap 7.9-17.

II - Texto

A tradução, em si, não oferece grandes problemas. Acho ótima a tradução apresentada pela Bíblia de Jerusalém. Também as traduções de Almeida e da Bíblia na Linguagem de Hoje podem ser usadas. Apenas em relação ao v.l5b há algumas diferenças: aquele que se assenta no trono estenderá sobre eles o seu tabernáculo (Almeida), ... estenderá uma tenda sobre eles (Bíblia de Jerusalém), ... os protegerá com sua presença (Bíblia na Linguagem de Hoje). Essa última versão creio ser livre demais. Ficaria mais claro e mais fiel ao texto atualizar: Deus habitará com eles.

Ap 7.9-11 está incluído na parte mais extensa do livro, que relata as visões proféticas, a descrição do que há de vir. De Ap 4.1 a 8.1 são apresentadas sete visões (dos sete selos). Entre o sexto e o sétimo selos é introduzida a visão dos 144 mil glorificados. Logo após o nosso texto, é aberto o sétimo selo e dá-se início a um novo ciclo de visões: das sete trombetas.

A delimitação é bastante clara. Em todo o ca p. 7 João descreve a visão dos glorificados no céu. Eles são contados e estão todos presentes (Ap 7.4-8). Pode ter início então o que narra o nosso texto. O final do texto tem sua delimitação bem mais clara, pois a partir de 8.1 dá-se a abertura do sétimo selo.

Já no início do texto, v.9, surge um pequeno problema: João relata que viu uma grande multidão que ninguém podia contar, quando nos versículos anteriores (vv.4-6) são enumerados os 144 mil marcados. E sua contagem cai na vista, pois são enumeradas uma após a outra todas as 12 tribos de Israel, cada qual tendo 12 mil marcados. Mas há uma tentativa de interpretação, bastante provável e que procura sanar esta dúvida. O número 12 representa as 12 tribos, quando Israel era o povo predileto de Deus. Também representa os 12 apóstolos de Jesus, isto é, o povo de Deus no Novo Testamento. Ao multiplicarmos 12 x 12, teremos o número 144: o povo dos dois Testamentos. 10, por sua vez, é o numero que se considera completo. 10x10= 1.000, o símbolo que espelha o número mais completo possível. O número 144.000 representaria, então, todos os filhos de Deus em toda a história humana, a Igreja completa de Jesus Cristo. Este número é, portanto, um número simbólico e quer dar a entender que a Igreja está completa. Esta interpretação é reforçada, e não rebatida, como parece, pelo fato de João dizer que viu uma multidão que ninguém podia contar. Além disso, quem conta os presentes em 7.4-6 é um anjo, quem vê a multidão reunida em 7.9 é João, um homem. Logo: homens não são capazes de contar o número dos eleitos. Sendo assim, os versículos anteriores têm sua continuação em 7.9ss. Estão reunidos todos os que deveriam estar presentes. Não falta ninguém. Pode, então, ter início o culto. Estes selados, ou marcados na fronte (v.3) são de todas as nações, tribos, povos e línguas, o que destaca a universalidade da Igreja em sua composição. Também reforça a tese de o número 144 mil ser simbólico, pois se quisermos levar este número ao pé da letra, então teremos que fazer o mesmo com as 12 tribos de Israel que são enumeradas. Isso faria com que apenas um povo, o povo de Israel , estaria entre os eleitos.

Os marcados aparecem vestidos com roupas brancas e com palmas nas mãos. No v.l4 vemos o acontecimento que tornou suas vestes brancas: elas foram tornadas brancas no sangue de Cristo durante a grande tribulação. O sangue de Cristo purifica. A vestimenta não tem por finalidade exclusiva proteger e cobrir o homem: ela também o descobre, isto é, o revela (J.J. von Allmen, Vocabulário Bíblico, p.439). Neste caso específico deixa de valer o velho ditado: o hábito não faz o monge. Aqui, pelo contrário, a roupa revela o estado interior da pessoa que a veste. A unidade entre a vestimenta e a pessoa que a usa manifesta-se ainda pelo fato tão frequentemente atestado que para purificar-se inteiramente é preciso também lavar as vestes” -
id., p.440).

As palmas que os marcados levam nas mãos indicam que com eles está a vitória, pois agora eles são a Igreja glorificada nos céus, os que passaram pela grande tribulação sem negar a Cristo. E a mesma profissão de fé que eles seguiram na terra, pagando para tal com a sua vida, é renovada no v.10: A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro. E não ao imperador ou a qualquer outro governo que pretenda exigir a adoração dos homens. Após a queda do dragão (12.10) e da Babilônia (19.1) este canto é repetido. Já agora este canto pode ser entoado, de tão certa que é a vitória final. Já agora a Igreja glorificada canta hinos ao nosso Deus, o único que terá a vitória. Os coros celestiais respondem com outro hino, reforçando e ampliando o hino da Igreja glorificada. Seu hino inicia e termina com Amém. Assim cada um que o entoa faz suas, próprias, as palavras nele contidas. Em 5.11 este hino é praticamente repetido, também entoado por anjos, animais e anciãos (seu número era de milhões de milhões e milhares de milhares).

E um destes anciãos se dirige a João, com a clara intenção de explicar-lhe quem são as pessoas trajadas com vestes brancas. Ele formula a pergunta, e João permite que ele mesmo a responda: Estes são os que vêm da grande tribulação (= perseguição): lavaram suas vestes e alvejaram-nas no sangue do Cordeiro.

Torna-se bem visível que as palavras ditas pelo ancião são dirigidas diretamente aos que no tempo de João sofrem perseguição por causa de Cristo. Com a nítida intenção de reerguer e fortalecer o ânimo dos cristãos. Aqueles que forem fiéis até à morte é garantida a presença na Igreja glorificada. Eles estarão diante do trono de Deus, sempre, durante o dia e à noite. Deus habitará com eles (v.15). Nunca mais sentirão fome nem sede, nada os afligirá. As torturas que agora sofrem são passageiras (v.16). Jesus mesmo estará com eles, será o seu pastor, conduzi-los-á as fontes da água da vida. E as lágrimas que eles agora choram, ao perderem bens, familiares, amigos, a própria vida, estas lágrimas serão enxugadas por Deus(v.l7).

Não há prédica, não existem palavras que consigam inspirar tanta coragem como as contidas nos vv.15-17. Elas são claras, evidentes, não necessitam de maiores explicações.

III - Meditação

Partindo de uma afirmação comumente repetida nas introduções ao Apocalipse de João, afirmação de que este livro foi escrito com lágrimas e só pode ser lido e entendido com lágrimas, não se tornam estranhos o abuso e a má interpretação deste livro que cavalgam pelo mundo todo. Cristãos de barriga cheia, cristãos que andam de mãos dadas e brincam de ciranda cirandinha com todos os deuses e poderes que exigem adoração e dedicação integral, cristãos que não confessam com lágrimas e sofrimento sua fé unicamente em Cristo, cristãos mornos (Ap 3.16) não podem realmente entender este livro, não vêem nele valor a não ser para marcar datas para o fim do mundo. Como então atualizar e ler este livro, se a igreja não so-fre atualmente como sofria na época de João? Usá-lo apenas para garantir a pessoas enfermas, a pessoas que vêem a morte se aproximando, que elas terão um lugar no céu, que lá Deus enxugará as lágrimas de seus olhos? Ou lê-lo para pessoas que apenas sobrevivem, que vegetam, enquanto poucos repartem entre si o bolo da fartura, querendo encorajá-las a suportar a miséria em que se encontram, abrindo-lhes uma fresta para um paraíso celestial onde ninguém passará fome nem sede? Não está aí um fator do sucesso de tantas seitas e correntes dentro da Igreja, que conseguem manter alienada e conformada com a realidade uma grande parte do povo que mais sofre injustiças? Este livro, ao contrário do que possa parecer, não pede conformismo, uma mera resignação com os fatos. Exige ação, assim como João atuou, foi preso, e mesmo em cadeias não calou, mas continuou agindo. E agiu de maneira vigorosa e corajosa ao escrever o Apocalipse. Sonhar? Sim! Porém não só sonhar com um mundo novo, mas já e acima de tudo agir neste mundo, professando Cristo como Senhor absoluto. E tal confissão de fé não pode ficar apenas em palavras, mas deve ser demonstrada também por nós em ação, assim como foi demonstrada pelos cristãos a quem se destina este livro. Caso não o fizermos, eliminemos para sempre este e tantos outros livros da Bíblia, que de maneira tão clara exigem de nos coerência entre nossa confissão de fé e nossa ação.

Vejo que aqui entra em jogo todo o nosso culto dominical, de maneira especial a liturgia. Pois este texto está prenhe de palavras que falamos e cantamos em nossos cultos: A salvação pertence ao nosso Deus (v.l0b); O nosso socorro vem do Senhor que fez o céu e a terra; O louvor, a glória, a sabedoria, a ação de graças, a honra, o poder e a força pertencem ao nosso Deus pelos séculos dos séculos. Amém (v.l2) ; Glória seja ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. Como no princípio era, agora e sempre e por todos os séculos. Amém; Glória a Deus nas alturas....

Há, contudo, uma diferença muito grande entre os cristãos de João e nós. Talvez a liturgia que cantamos seja idêntica, talvez nossa confissão de fé seja idêntica, talvez a absolvição que nos é transmitida após a confissão dos pecados seja um pouco idêntica. Um ponto, entretanto, em nós é bem maior: a confissão de pecados! Isto se torna claro quando comparamos nossa época com o fim do século l, quando comparamos quem canta hoje com quem cantou naquela época uma liturgia aparente e exteriormente bem parecida. Nós a cantamos e falamos sem termos uma espada às nossas costas, nós não vemos tão claramente a opção entre Cristo e imperador. Não vemos toda a importância das palavras contidas nos vv.15-17, porque não passamos fome e sede por causa de Cristo, porque não sofremos torturas por causa de Cristo, porque pouco ou quase nada choramos por Cristo, porque talvez tenhamos medo de que Deus habite conosco, porque talvez achemos monótono servir a Deus durante todo o dia e toda a noite.

IV - Prédica

Caso a grande maioria dos membros da comunidade tenha a ideia fixa de que o Apocalipse de João seja o livro que fala apenas em fim de mundo, bestas, dragões, etc., creio que se faz urgente e absolutamente necessária uma Introdução ao Apocalipse de João. Isso deve acontecer para que o livro todo e, de maneira especial, esse texto possam ser compreendidos como devem, mesmo que boa parte da prédica seja dedicada a uma explicação sobre todo o contexto em que o livro surgiu. Devem ser comparadas as, duas situações: a nossa e a dos cristãos perseguidos; o que o texto diz a nós e o que disse a eles. E deixar no ar perguntas, inquietantes: numa situação idêntica que faríamos nós? Será um fruto de nossa inoperância o fato de não sermos hoje perseguidos por causa de Cristo?

Há, também, a possibilidade de uma outra prédica, que possa comentar mais detalhadamente a liturgia em nossos cultos. Este assunto por si só é suficiente para a prédica. Mas também aqui ela deve atingir o ponto de nos deixar inquietos em nossa comodidade, deve despertar em nós toda a profundidade que está contida na liturgia e deve fazer com que as palavras que cantamos e falamos em nossos cultos sejam realmente um espelho de nossa vida diária.
 


Autor(a): Edson Edilio Streck
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 25º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Apocalipse / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 9 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1978 / Volume: 3
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 18175
REDE DE RECURSOS
+
Ele, Deus, é a minha rocha e a minha fortaleza, o meu abrigo e o meu libertador. Ele me defende como um escudo, e eu confio na sua proteção.
Salmo 144.2
© Copyright 2024 - Todos os Direitos Reservados - IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Portal Luteranos - www.luteranos.com.br