João 6.1-15

20/08/2000

Prédica: João 6.1-15
Leituras: Êxodo 24.3-11 e Efésios 4.1-7,11-16
Autor: Marga Ströher e Valdemar Schultz
Data Litúrgica: 10° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/08/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Pentecostes


1. Texto e contexto

A redação do Evangelho de João deve ter ocorrido no final do séc. l ou no início do séc. 2. A comunidade joanina é formada por uma mescla de gente: judeus ligados às sinagogas e judeus antitemplo, cristãos e gentios que foram expulsos das sinagogas após a destruição do Templo e também com uma forte presença de samaritanos.

No Evangelho de João é central a busca pela vida: a palavra vida aparece 47 vezes (13 vezes em Mt, 8 em Mc e 14 em Lc). A comunidade tem como desafio inúmeras pessoas enfermas, cegas, coxas e paralíticas (5.1-9). O parodoxo ou oposição fome/morte e comer/comida/vida perpassa todo o cap. 6. E há a promessa escatológica de não haver mais fome (v. 35). Há indícios de carência e escassez, o que indica uma realidade de pobreza. As declarações de Jesus como o pão da vida (vv. 22-59) se dirigem às pessoas que têm carência de pão. Jesus dá sinais de sua presença efetiva a partir da situação de escassez.

A multiplicação dos pães é o único milagre do ministério público de Jesus presente nos quatro evangelhos, sendo que Mateus e Marcos trazem uma segunda narrativa. Em Jo 6.1-15 aparecem elementos tanto da primeira como da segunda narrativa dos sinóticos. Apesar dos aspectos semelhantes, não se pode afirmar que haja uma dependência direta do relato de João em relação aos seus paralelos.

No Evangelho de João, a nossa perícope situa-se na seção que tem como tema a auto-revelação de Cristo (5.1-10.21). O cap. 6 apresenta um momento crucial para a fé dos discípulos. Ele está assim distribuído: 1-15: multiplicação dos pães; 16-21: Jesus caminha sobre o lago; 22-59: discurso sobre o pão; 60-71: crise de fé entre os discípulos.

A perícope começa com a travessia de Jesus para o outro lado do mar e n subida para o monte, com a referência de que a Páscoa está próxima (6.1-4). A multidão se aproxima, o que dá ocasião para o diálogo de Jesus com Filipe sobre a possibilidade de dar-lhes de comer. Então vem a intervenção de André que apresenta o escasso recurso disponível, nas mãos de uma criança (6.5- 10a). Segue a ação de Jesus, que transforma a escassez em abundância a ponto de haver sobras (6.10b-13). A multidão e os discípulos reagem ao fato, mas nem o título de profeta nem o de rei interessam a Jesus (6.14-15). Diferentemente dos paralelos sinóticos, Jesus mesmo faz a distribuição dos pães e do peixe.

2. Releitura criativa da tradição do êxodo e do deserto

João 6 vale-se das tradições do êxodo e do deserto. O autor reconhece a tradição em torno de Moisés, intimamente ligada à Lei e profundamente arraigada na memória coletiva judaica. A atuação de Jesus é anunciada, a partir deste contexto religioso, como um acontecimento totalmente novo. A figura protagônica de Moisés na história de Israel é relida criativamente em função de Jesus. Esta é a intenção querigmática de João: centrar a fé em Jesus como o verdadeiro enviado de Deus que dá a vida ao mundo. Seus sinais, também a multiplicação dos pães, têm este objetivo: que creiais (6.29).

Certos detalhes do texto têm uma importância significativa. Enquanto no cap. 5 Jesus está em Jerusalém, no cap. 6 encontra-se na Galiléia. A travessia do lago alude à travessia do Mar Vermelho pelo povo israelita. Jesus sobe um monte como Moisés, que intercede pelo povo. A palavra lugar (v. 10) em determinados contextos é usada para designar o Templo ou simplesmente Jerusalém, lugar de Deus (Dt 16.6,7). Jesus é o lugar onde Deus se manifesta. O lugar das pessoas livres. Na época pascal, Jerusalém atrai multidões de peregrinos. Na Galiléia, longe de Jerusalém, uma multidão vai ao encontro de Jesus. É a páscoa dos que chegam e não dos que fogem, como no êxodo.

Outros detalhes em Jo 6 podem ser relacionados com o êxodo, o deserto, com Moisés e a Lei. E mais, Jesus é reconhecido pela multidão como profeta. Confira as semelhanças e as diferenças entre Jo 6.1-15 e a história do profeta Eliseu, em 2 Rs 4.42-44. A multiplicação de pães é visivelmente ampliada na proporção de 20 pães que alimentam cem homens, em 2 Rs 4, para cinco pães e dois peixes que saciam 5 mil homens além das mulheres e das crianças, em Jo 6. li anula há sobras, as quais não podem ser desperdiçadas. Era regra judaica não desperdiçar alimento (Bekarot, 6.4). As sobras revelam a grandeza da generosidade de Deus (cf. 2 Rs 4.44; Rt 2.14; Mc 6.42) — por isso a vida deve ser partilhada.

3. A criança, pães de cevada, a comunidade pobre que serve

A palavra paidarion é usada em relação a menino ou menina, ou escrava /escravo jovem (Walter Bauer, col. 1221). Nesse texto a criança se coloca como a que tem os meios de fazer acontecer a partilha. Um paradigma novo se apresenta para a comunidade (como nos sinóticos): a criança é paradigma para o reino de Deus.

A criança ou jovem não tinha nenhuma prerrogativa ou status social, econômico ou religioso. Ela é menor, e menores não decidem nem determinam nada. Na linguagem de Fílon, em seus tratados sobre o Decálogo e sobre as Leis particulares, que representam o pensamento greco-romano vigente, fica clara a posição de uma criança ou pessoa jovem. As pessoas maiores — pais e pessoas mais velhas — gozam de preeminência sobre as mais jovens. No tratado sobre as Leis particulares, Fílon afirma que os pais pertencem à ordem superior, pois são pessoas maiores, instrutores, benfeitores, governantes e senhores, enquanto que as filhas e os filhos estão situados na ordem inferior (menores), pois são de menor idade, discípulos, beneficiados, subordinados e escravos. A criança não tem voz ativa, não pergunta, não contesta, não participa.

André tem um papel crucial nesse texto, embora a sua palavra e postura pareçam bastante tímidas. Ele vê uma possibilidade real de partilha no pouco. O que estava nas mãos da criança é indicado como oferta para saciar a fome de muitas pessoas. Essa oferta é assumida, por Jesus, para a partilha e para dar testemunho da generosidade de Deus.

4. Na comunidade comensal, partilha, libertação, solidariedade no pouco

Um aspecto importante nesse texto é a comunhão comunitária igualitária. O texto não menciona de maneira específica a presença de mulheres e crianças, como aparece em Mateus (14.21; 15.38) — em Marcos ela parece restrita a homens. Mulheres e crianças participam de forma igualitária na refeição comunitária. A criança, inclusive, participa diretamente no processo de partilha do pão. O texto afirma que uma multidão se achegou a Jesus (v. 2) e também que Jesus distribuiu o pão a toda a multidão presente, chamada a reclinar-se para a refeição (vv. 10 e 11).

O verbo usado é anapipto, específico para reclinar-se à mesa. O ato de reclinar-se à mesa para uma refeição é próprio de pessoas livres; pessoas escravas ou submissas não se reclinam à mesa, mas servem à mesa e comem em pé. Jesus serve, e o povo se reclina para comer. Um outro paradigma de relacionamento social se apresenta. Na mesma direção que o lava-pés, o Mestre se coloca a serviço de suas discípulas e seus discípulos, da comunidade.

Todas as pessoas (anthropos) presentes são chamadas a reclinar-se para a refeição (vv. 10 e 14). Apenas os homens aparecem na contagem, como tradicio¬nalmente acontecia. De fato não apenas homens participaram da refeição. A proibição, no Talmude, de mulheres se reclinarem à mesa para refeições públicas — em casamentos, por exemplo — é muito tardia para ser relevante no séc. l (K. Corley, p. 162). A restrição da partilha apenas aos homens seria um contra-senso em relação à postura de abertura do Evangelho de João para a participação das mulheres e sua liderança, em momentos cruciais da vida e do movimento de Jesus e no trabalho missionário e diaconal.

A conversa que acontece antes do ato da partilha é extremamente importante. A linguagem e a lógica do dinheiro/mercado não somente indicam que ele é insuficiente para alimentar o povo, como também mostram que através dessa lógica não há aprendizado para a partilha — ou ela pode levar a um assistencialismo descomprometido. Essa é uma ideia que entra com força no texto. A partilha acontece a partir daquilo que a comunidade tem à disposição. E, nesse caso, são cinco pães de cevada e dois peixes secos, que estão de posse de uma criança. Pão de cevada é alimento dos pobres, pois a cevada era mais barata que o trigo. Mas é também o cereal das primícias, já que é mais precoce que o trigo (Lv 9.14; 23.17; Êx 23.19). O pão de cevada passa a ser o pão ritual.

É possível vincular o texto de Jo à prática eucarística da comunidade joanina. No texto de Jo 6 aparecem termos que evocam a prática eucarística da comunidade. 6.1-15 corresponderia ao ato da Ceia: tomar, dar graças & distribuir. Em 6.53-58 comer a carne e beber o sangue evocam as palavras de Jesus na última ceia.

No testemunho de Atos (2.42 e 20.7) o partir do pão é uma das ações básicas da comunidade quando se reúne. E, segundo l Co 10.16,17, o pão é símbolo da unidade da comunidade com Cristo, o pão da vida: Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque participamos do único pão.

5. Pensando na prédica

Retomando a reflexão anterior, propomos três temas para a prédica:

1) Em Jesus se decide a fé. Da escassez, gera abundância. As sobras apontam para a plenitude do tempo messiânico, para o testemunho da generosidade de Deus e o engajamento solidário da comunidade cristã que se coloca a serviço da humanidade. Quando aclamado profeta e rei, Jesus renuncia à tentativa de amparar-se na tradição e no poder e afirma a vocação da comunidade para o serviço do amor.

2) A proposta de Igreja que se coloca a partir do paradigma da criança c a Igreja que não se justifica a partir de prerrogativas da tradição religiosa e do poder, mas que se coloca a serviço da obra de Jesus no mundo. Essa obra implica reconhecimento de Jesus como enviado de Deus e a comunhão com ele. A Igreja de Cristo é reconhecida pela partilha concreta do pão.

3) A partir da prática eucarística da comunidade joanina podemos descobrir alguns elementos desafiadores para a nossa prática eucarística e comunitária hoje: a centralidade em Cristo, a eclesiologia a partir da Igreja diaconal, o desafio da partilha, a partilha a partir do pouco de que a comunidade dispõe e, ainda, a busca pela humildade e o serviço às pessoas mais pequenas.

6. Pensando na celebração

Litania de entrada (baseada nos Salmos 145 e 146):

Exaltar-te-ei, meu Deus, bendirei o teu nome para sempre. Todos os dias te bendirei e louvarei o teu nome. Grande é Deus e digno de ser louvado.

Deus é bom e misericordioso; ele demora a ficar irado e tem sempre muito amor. Sustenta as pessoas fracas e levanta as que estão encurvadas. Nele esperam os olhos de todas as pessoas, e no tempo certo lhes dá o alimento. Abre a mão e sacia de dádivas a todos os seres vivos.

Exaltar-te-ei, meu Deus, bendirei o teu nome para sempre. Todos os dias te bendirei e louvarei o teu nome. Grande é Deus e digno de ser louvado.

Deus é justo em todos os seus caminhos, amoroso em tudo o que faz. Está perto de todas as pessoas que o invocam. Ele atende o anseio de todas as pessoas que o temem, atende o seu clamor e as salva, e guarda a todas as que o amam.

Exaltar-te-ei, meu Deus, bendirei o teu nome para sempre. Todos os dias te bendirei e louvarei o teu nome. Grande é Deus e digno de ser louvado.

Feliz quem tem Deus como ajuda e põe a sua esperança em Deus que fez o céu e a terra, o mar e tudo que existe. Deus mantém para sempre a sua Palavra; faz justiça às pessoas oprimidas, dá pão às famintas, liberta as prisioneiras.

Exaltar-te-ei, meu Deus, bendirei o teu nome para sempre. Todos os dias te bendirei e louvarei o teu nome. Grande é Deus e digno de ser louvado.

Deus abre os olhos das pessoas cegas e endireita o caminho das encurvadas, protege as pessoas estrangeiras e sustenta as órfãs e viúvas. Ama as pessoas justas, mas atrapalha o caminho das pessoas impiedosas.

Exaltar-te-ei, meu Deus, bendirei o teu nome para sempre. Todos os dias te bendirei e louvarei o teu nome. Grande é Deus e digno de ser louvado.

Senhor, dá-nos sempre desse pão!

Leituras bíblicas:

Êxodo 24.3-1 relata a aliança de Deus com Israel. O sangue aspergido sela o pacto de amor de Deus para com o povo e deste para com Deus. Na presença do Deus vivo, há abundância e comunhão: comeram e beberam'' (v. 11).

Efésios 4.1-7,11-16 convoca a comunidade a agir de modo a conservar a unidade no Espírito Santo pela humildade, delicadeza, paciência, tolerância e amor. O corpo é, ao mesmo tempo, referência ao corpo de Cristo, que se doa às pessoas, como à comunidade, que se torna também corpo de Cristo através da comunhão com ele. Na comunidade a diversidade de dons está a serviço da edificação do corpo de Cristo. A busca pela unidade requer a justa cooperação e engajamento de cada membro.

Canto: Repartir (cancioneiro O povo canta, 232)

O canto pode ser acompanhado de gestos com toda a comunidade, mas se não for possível formar um círculo, fazer com um grupo menor (crianças, jovens). A seguir, propomos uma sugestão:

— Formar um círculo. Todas as pessoas estendem os braços para a frente, deixando as palmas das mãos viradas para cima. A seguir, cada uma coloca a sua mão direita sobre a mão esquerda da pessoa que está do seu lado direito. Assim, a mão direita de cada pessoa ficará sobre a mão esquerda da outra, sempre com as palmas das mãos viradas para cima.

— Assim que o grupo começa a cantar, uma pessoa inicia os movimentos da seguinte maneira: leva a sua mão direita em direção à mão que está do lado esquerdo — esta é a mão da outra pessoa que está sobre a sua. Ela toca a mão da outra pessoa e, depois, volta para a posição anterior. A pessoa que foi tocada leva a sua mão até a outra, como a colega ao lado fez. E, assim, continua: uma pessoa tocando a mão da outra que está do seu lado.

— Quando termina a primeira estrofe do canto — na palavra amor — a última pessoa que recebeu o toque entra no círculo e vai passando na frente das outras, tocando as suas duas mãos nas duas mãos das outras pessoas. Estas, então, precisam estar com as mãos um pouco estendidas para a frente, com as palmas para cima, e não mais sobre ou embaixo das mãos dos vizinhos. A pessoa que está no meio faz isto até a frase é assim que auxiliamos a viver... — o momento em que o grupo bate palmas (duas batidinhas). Logo após as palmas a pessoa pára de tocar as outras e volta para o seu lugar.

— Depois disso, começa tudo novamente. Todas as pessoas voltam à posição de início, uma mão sobre a outra, e a pessoa que voltou para o lugar começa o movimento de tocar a sua mão na mão da pessoa que está ao lado.

Bibliografia

BAUER, Walter. Wörterbuch zu den Schriften des Neuen Testaments und der frühchistlichen Literatur. 6. Aufl. Berlin : Walter de Gruyter, 1971.
CHOURAQUI, André. A Bíblia (o Evangelho segundo João) : um novo pacto, anúncio dos quatro. Rio de Janeiro : Imago, 1997.
CORLEY, Kathleen. Private women, public meals : social conflict in the synoptic tradition. Peabody (Massachusetts) : Hendrickson, 1993.
CROATTO, Severino. Jesus à luz das tradições do Êxodo (A oposição Moisés/Jesus em Jo 6). Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n. 17, p. 27-35, 1994.
LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. v. II.
MATEOS, Juan, BARRETO, Juan. O Evangelho de São João : análise linguística e comentário exegético. São Paulo : Paulinas, 1989.
RICHARD, Pablo. Chaves para uma re-leitura histórica e libertadora (Quarto Evangelho e Cartas). Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n. 17, p. 7-26, 1994.

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Marga Ströher e Valdemar Schultz
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 10º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 6 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 15
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999 / Volume: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 12826
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