Efésios 4.17-24

Auxílio homilético

03/08/1997

Prédica: Efésios 4.17-24
Leituras: Êxodo 16.1-5(6-11) 12-21 (22-30) e João 6.(22-23) 24-35
Autor: Nilo Orlando Christmann
Data Litúrgica: 11º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 03/08/1997
Proclamar Libertação - Volume: XXII

1. Primeira Impressão

Vivemos um tempo em que, talvez mais do que nunca, um número signi¬ficativo de igrejas cristãs está revendo a sua forma de lidar com outras expressões religiosas. Percebe-se a intensificação da busca de diálogo. A postura da simples crítica e condenação, tão presente no passado, cede lugar a uma atitude de respeito, de também saber ouvir e, inclusive, de aprender aspectos positivos com aqueles que não têm a mesma forma de crer e pensar. Não se trata de perder a identidade cristã; antes, é uma forma de afirmá-la, uma vez que o amor ao próximo é mandamento básico e reiterado enfaticamente por Jesus.

Sob esta ótica, uma primeira leitura de Ef 4.17-24 pode nos deixar perplexos. Para qualificar — melhor seria dizer: desqualificar — os gentios/pagãos (vv. 17-19) o autor desfia um repertório de adjetivos que, mesmo nas mais diversas traduções, são contundentes e de difícil digestão. Diante disso, se torna ainda mais necessário compreender o texto a partir do conjunto da Carta aos Efésios. É o caminho a seguir para procurar entender o que o autor de fato estava querendo transmitir.

2. A Carta aos Efésios

Mesmo não havendo unanimidade sobre o assunto, há fortes evidências de que a Carta aos Efésios não é de autoria do apóstolo Paulo. O provável autor é um discípulo de Paulo intimamente comprometido com a herança paulina (Comblin, p. 17). Ainda mais evidente é o fato de que a carta não se dirige de forma específica a uma comunidade — no caso, Efeso. Não há referências a questões concretas de uma comunidade. É aceito que se trata de uma instrução dirigida a um conjunto de comunidades da Ásia Menor, por volta do ano de 90 d.C. Ressalte-se ainda a forte interdependência entre a Carta aos Efésios e a Carta aos Colossenses.

3. Questões de Estrutura e Delimitação


Efésios se divide cm dois grandes blocos. Os caps. 1-3 são de caráter doutrinário, enquanto que os caps. 4-6 trazem uma exortação, falam da ética. É neste segundo bloco que se insere o texto previsto. Chama a atenção o fato de que em Proclamar Libertação, vol. V, p. 235ss., é feita uma abordagem de Ef 4.20-32 (aliás, é importante considerá-la na preparação!). Entendemos que a delimitação agora proposta, ou seja, vv. 17-24, é mais correta; o conjunto fica melhor composto. O meio didático usado pelo autor para comunicar o que pensa é justamente a contraposição entre os vv. 17-19 e os vv. 20-24. Isto, contudo, não impede que de algum modo se considerem os vv. 25ss., uma vez que ali constam as questões práticas relativas à nova vida proposta em 20-24. A conjunção por isso, que introduz o v. 25, é sugestiva neste sentido.

4. O Texto

A preocupação maior do autor de Efésios não é a missão da Igreja. A ênfase está mais na manutenção/preservação das comunidades. A fase de formação das comunidades, tão latente nos escritos paulinos, já ficou para trás. Agora é necessário pensar na unidade da Igreja num sentido mais amplo, para além da comunidade local (2.17s.). É necessário tornar o edifício (Igreja) sólido e o corpo (Igreja) bem ajustado (4.4; 4.15ss.). Para que esse objetivo seja alcançado, os membros do corpo devem estar firmes na sua fé em Cristo e também no seu amor (3.16-19). Deve haver maturidade (4.13,15).

Transparece ao longo de Efésios certa crise de identidade por parte dos cristãos. No passado eles foram pagãos (2.1-3). Depois foram alcançados pela misericórdia de Deus e tiveram as suas vidas transformadas (2.4-7). No entanto, o entusiasmo já não é o mesmo dos primeiros tempos da vida cristã. Existe o perigo de voltar aos costumes antigos (4.14). Existe o perigo de não ter a firmeza e o discernimento suficientes para permanecer na fé em Cristo e, consequentemente, na comunidade/Igreja.

Esses pressupostos constituem o pano de fundo para o portanto com o qual o texto inicia (v. 17). São os argumentos que justificam a exortação. Os destinatários agora são lembrados, de forma enfática, das diferenças entre os pagãos e os cristãos. A vida daqueles carece de sentido, é vazia e conduz à prática das mais diversas formas de pecado. O v. 18 permite entender que os pagãos tiveram a sua chance de levar a sua vida conforme a vontade de Deus. Não o fizeram por causa da ignorância e da dureza dos seus corações (veja também Rm 1.21). O texto não deixa brechas para tentar enxergar os que não crêem como vítimas ou desavisados. Eles são responsabilizados pelo seu modo de viver.

Contudo, e isto é agora pedagogicamente importante, esta caracterização dos pagãos não está sendo dita a eles. Está sendo dita àqueles que já viveram daquela forma, mas que tiveram a oportunidade de conhecer o evangelho e que agora professam a sua fé em Jesus Cristo. Estes não deveriam ter dúvidas de que a forma de vida anterior não conduz o ser humano a lugar algum, a não ser ao vazio de sentido e ao pecado. Os destinatários são lembrados de que lhes foi ensinada a verdade que se encontra em Jesus (Eu sou o caminho, a verdade...), na qual está implícita uma nova forma de viver e pensar, o abandono das práticas anteriores, do ceder espaço aos maus desejos, pensamentos e intenções.

E possível que a referência ao despojar-se do velho homem esteja associada à catequese batismal (4.5!), a exemplo do que encontramos em Rm 6.1ss. Em todo caso, fica claro que o viver em Cristo implica ser uma nova pessoa (veja também 2 Co 5.17), implica estar revestido de uma nova natureza, que é a de Cristo (Gl 3.27). É através dessa nova forma de viver que o ser humano passa a estar novamente integrado no projeto inicial de Deus, qual seja, ser a imagem e semelhança do Criador (Gn 1.27). Essa mudança de vida, contudo, não acontece de uma vez e com validade para todo o sempre. O texto paralelo de Cl 3.10 é mais completo neste ponto ao ressaltar que a obra de Deus no ser humano é processo permanente. Mais do que isso, o presente que Deus concede por seu amor (Ef 1.4ss.), dando oportunidade de uma vida renovada por causa de Jesus Cristo, não tem um fim em si mesmo. Não somos salvos para ficarmos contemplando o que Deus fez por nós. Somos salvos para podermos nos dedicar a Ele e para sermos úteis às outras pessoas (v. 24). E aí é importante a referência aos vv. 25ss., pois encontramos neles os exemplos práticos, do dia-a-dia, de como o novo viver em Cristo se manifesta no convívio das pessoas.

É latente em Ef 4.17-24 o problema da perseverança na fé cristã. A dificuldade está em viver a nova vida em Cristo de forma coerente num mundo onde o comum é viver longe de Deus. No caso específico daquelas comunidades da Ásia Menor: como permanecer fiel a Jesus Cristo e aos ensinamentos transmitidos em meio às pressões do Império Romano e em meio às diferentes expressões religiosas? Como evitar que os pagãos convertidos sejam atingidos pelo desânimo e pela insegurança e retornem ao modo de vida anterior? Como proceder para superar a tentação de ter novamente uma vida fácil, ao invés de continuar comprometido com o evangelho? A resposta que o texto dá a essas perguntas é a de lembrar os membros das comunidades de que a vida anterior conduz ao vazio, ao nada, ao pecado; e a exortação é de que lembrem o que aprenderam, ou seja, que se agarrem a Cristo com todas as forças, vivendo conforme a vontade de Deus e com todas as consequências éticas decorrentes.

5. Textos para Leitura

Os textos previstos formam um bom conjunto e oferecem oportunidade para serem mencionados durante a pregação. No texto de Êxodo sobressai a saudade que o povo de Israel passou a ter do Egito quando sentiram a realidade do deserto. Já no texto de João, Jesus se define como o pão da vida; quem se achegar a ele nunca mais terá fome e quem crer nele nunca mais terá sede (v. 35).

6. Reflexões com vistas à Pregação

Evidentemente há diferenças significativas entre as comunidades da Ásia Menor dos tempos da Epístola aos Efésios e as comunidades da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) neste final de milênio. Naquela época as comunidades cristãs eram jovens e diminutas em meio a um ambiente panteísta (veja, p. ex., a referência à deusa Diana em At 19). Hoje somos minoria enquanto IECLB, mas isso dentro de um país tido como predominantemente cristão, apesar de todo o sincretismo. A maioria de nós não tem como referência anterior uma religião pagã, mas já nasceu em famílias integradas em comunidades cristãs. Essas diferenças, porém, não diminuem a importância do texto; ao contrário, sua temática é atualíssima. Destacamos alguns pontos.

a) Para quem vive a partir do amor manifesto por Deus em Jesus Cristo, os demais deuses são dispensáveis, não fazem mais sentido. A libertação de que precisávamos foi conquistada para nós na cruz. O primeiro mandamento deixa de ser um fardo difícil de ser carregado, para se tornar uma confissão de fé que pode ser feita com alegria: De fato, não preciso de outros deuses! Através da fé em Jesus Cristo somos libertados do egoísmo e da idolatria e podemos servir ao nosso próximo. Este caminho, básico em termos de identidade cristã e luterana, não pode ser negligenciado e colocado em segundo plano.

b) Contudo, Ef 4.17-24 expõe a realidade humana. O conflito entre o velho e o novo é uma constante. Lutero experimentou e expressou esse conflito em toda a sua dimensão. Primeiro, a luta inútil para se livrar do pecado que o atormentava e, depois, a descoberta da justificação por graça e fé. Mas ele viu também que a justificação não elimina o pecado, o que o levou a cunhar a expressão de que somos simultaneamente justos e pecadores. O conflito do ser humano, entre seguir a Jesus Cristo e os seus próprios caminhos, não deixou de existir, apenas passou a ser encarado sob outro ponto de vista: a possibilidade de servir a Deus e ao próximo não está centrada em nosso próprio esforço, mas em deixar que Deus faça a sua obra em nós. Ter os corações e mentes renovados (v. 23) significa reintegrar-se diariamente nas mãos de Deus, confiando que ele sabe o que nos convém e permitindo a sua orientação.

c) Não existem nem cristãos nem comunidades perfeitos. Graças a Deus!
O que não é a mesma coisa que dizer: Tanto faz! para tudo. A preocupação que o texto traz subjacente é a da coerência. As comunidades não existem para estarem sem problemas. A pergunta que o evangelho faz é se nessas comunida¬des se procura encaminhar os problemas a partir do exemplo de Jesus Cristo. De algum modo, na comunidade onde o evangelho é confessado precisa transparecer uma prática correspondente. E esta é uma das pedras mais incômodas nos sapatos dos cristãos através dos tempos. O texto é um convite a nos perguntarmos com mais constância e insistência de que forma os outros nos vêem, não para refor¬çarmos a máscara e a fachada, mas para percebermos que a fé implica uma ética condizente.

d) O povo de Israel, quando chegou no deserto, ficou com saudade da comida que tivera no Egito. Entre os cristãos aos quais se dirige a Carta aos Efésios havia aqueles que estavam voltando ao modo de vida anterior. Também na IECLB há membros que procuram e participam de centros espíritas, terreiros de umbanda, maçonaria e por aí afora. Contudo, existem ainda outros cultos, típicos dos tempos modernos e não menos preocupantes: o consumismo, o tradicionalismo, o modelo de sociedade piramidal, a competitividade, etc. A simples aceitação desses valores também traz o perigo de conduzir os cristãos de hoje ao vazio de sentido, ao nada. Opõe-se ao convívio comunitário, ao partilhar, à solidariedade.

e) Por fim, não deveríamos procurar ignorar uma das grandes dificuldades que temos como Igreja histórica. Tornamo-nos membros das comunidades via Batismo e Confirmação. Evidentemente esse caminho é muitas vezes insuficiente para aperceber-se do amor de Deus e para passar a ter um compromisso com o evangelho. Neste caso, a busca de outros deuses não significa saudade do passado, mas manifesta a necessidade de ainda chegar ao novo. Por isso, Ef 4.17-24 convida para expormos às comunidades a alegria e a libertação que podemos sentir a partir daquele que é o pão da vida. É a partir dele que renovamos as nossas mentes e corações. É o caminho para vivenciarmos um mínimo de coerência ética a fim de sermos comunidade solidária, acolhedora e missionária.

7. Passos para a Pregação

Uma forma de abordar o texto seria a seguinte:

a) Colocar para a comunidade as informações mínimas necessárias acerca do tempo da Carta aos Efésios; esclarecer o que levou o autor a escrever essas palavras.

b) Identificar, talvez com a ajuda da comunidade, os deuses que em nosso tempo afastam as pessoas de Jesus Cristo e do convívio da comunidade; mostrar que eles conduzem ao nada, à falta de sentido na vida.

c) Apontar para a questão da coerência; tornar clara a incompatibilidade entre o novo viver em Cristo e o servir a outros deuses; a exortação se dirige prioritariamente a nós; precisamos nos deixar questionar por ela e evitar o risco de logo aplicá-la aos outros.

d) O anúncio: Eu sou o pão da vida; é em Cristo que está a possibilidade do dizermos: não precisamos de outros deuses! Ê dele que vêm a graça da salvação e o convite para o comprometimento com o próximo.

8. Bibliografia

COMBLIN, José. Epístola aos Efésios. Petrópolis, Vozes; São Leopoldo, Sinodal; São Bernardo do Campo, Imprensa Metodista, 1987.
FOULKES, Francis. Efésios—Introdução e Comentário. São Paulo, Vida Nova, 1993. (Cultura Bíblica).


Autor(a): Nilo Orlando Christmann
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 11º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Efésios / Capitulo: 4 / Versículo Inicial: 17 / Versículo Final: 24
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1996 / Volume: 22
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13070
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