Lucas 4.14-21(22)

Auxílio homilético

22/01/1995

Prédica: Lucas 4.14-21(22)
Leituras: Isaías 61.1-6 e 1 Coríntios 12.12-21,26-27
Autor: Nilo Orlando Christmann
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 22/01/1995
Proclamar Libertação - Volume: XX

 

1. Questões introdutórias

O texto proposto é Lc 4.14-21(22). É necessário, neste caso, fazer referência à delimitação da perícope. Observa-se na maioria dos estudos sobre esta passagem a abordagem conjunta dos vv. (14,15) 16-30. Isso não deixa de ter a sua razão: a presença de Jesus em Nazaré, lugar onde foi criado (v. 16), serve de introdução para a reação dos seus conterrâneos (vv. 22ss.) diante das palavras ditas por ele na sinagoga (vv. 18-21). Contudo, a leitura que Jesus fez do profeta Isaías é material exclusivo de Lc, colocado em posição estratégica no Evangelho e com clara intenção teológica. Não se deveria, pois, perder a oportunidade de estudar o texto separadamente, mesmo porque o tema da relação de Jesus com os de sua terra merece um estudo à parte. Pelos mesmos motivos optamos não incluir o v. 22 no estudo do texto. Ademais, a inclusão do v. 22 implicaria ao menos explicar a sua aparente contradição com o diálogo que se segue e o desfecho dos vv. 28-30. E isto dificilmente seria possível numa pregação.

2. Considerações sobre o texto

O Evangelho de Lucas é fruto de cuidadosa sistematização e organização (1.1-4). Não deve por isso passar despercebida a posição que o texto ocupa. Jesus, depois de ser batizado por João Batista (3.21-22) e ser tentado pelo diabo (4.1-13), dá início ao seu ministério, a começar pela Galiléia. Mc 1.14-15 e Mt 4.17 também expressam o conteúdo do ministério de Jesus, resumindo-o no anúncio da proximidade do reino de Deus e na conclamação ao arrependimento. Já Lc, mesmo não usando a expressão reino de Deus, relata de forma explícita o específico da vinda de Jesus Cristo.

O v. 14 realça a presença da força do Espírito em Jesus. A sua missão não é iniciativa própria; faz parte do plano de Deus. O batismo de Jesus com a descida do Espírito Santo (3.21,22) o confirma. A presença de Jesus na sinagoga é frequente (4.16,33,44; 6.6, etc.), fazendo dos judeus os primeiros destinatários da sua mensagem ( p. ex. At 13.46). Os vv. 14 e 15 também deixam claro que Jesus não iniciou propriamente a sua atividade em Nazaré. A sua fama já havia se espalhado.

A leitura de uma palavra profética, bem como da Lei (Tora), era parte constitutiva do culto sinagogal (Fitzmyer, p. 432). Mas o texto lido de Isaías não foi acaso e dificilmente constituía leitura prevista. A escolha foi feita por Jesus.

O texto que Jesus leu tem por base Is 61.1-2. No entanto, está suprimida a referência à cura dos quebrantados de coração e, em seu lugar, se acrescentou a restituição da liberdade aos oprimidos, possivelmente a partir de Is 58.6. Mais significativa ainda é a não-menção do dia da vingança do nosso Deus de Is 61.2b. Entendemos que esta citação de Is constitui o centro do texto e por isso queremos estudá-la separadamente. Ainda mais que Jesus afirma no v. 21: Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir. Os vv. 14-17 e 20-21 são na verdade uma espécie de moldura para o conteúdo maior do texto.

2.1. Fundo histórico

O texto de Is 61.1-2 faz parte do chamado Trito-Isaías (aproximadamente 537-445 a.C.). Como mensagem profética, essas palavras foram dirigidas aos exilados que retornavam da Babilônia. O conteúdo do anúncio reflete de forma bem concreta a deplorável situação social em que os mais pobres se encontravam (Garlatti, p. 10). É interessante observar também que o profeta não se omite diante das causas daquela situação. São contundentes as palavras dirigidas aos exploradores. Veja-se, por exemplo, Is 58.3-4,6-7,9-10; 59.3-8. Esse referencial histórico que marca a origem do dito profético continua pulsando, mesmo quando Jesus faz suas estas palavras.

Nessa mesma direção vale lembrar que a unção no AT significava separar coisas ou pessoas para Deus. Também profetas podiam ser ungidos (l Rs 19.16). Quando Jesus diz: O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu, ele não deixa de se colocar também na linha profética. Mas, além disso, está implícita a referência ao Batismo (3.21-22; At 10.38).

2.2. Evangelizar os pobres

Quem são esses pobres? A resposta que se der a esta pergunta indicará a direção da pregação. Não há espaço aqui para aprofundar este tema. Contudo, algumas observações em nosso entender são básicas:

a) Com base no estilo de escrita hebraica, o texto se caracteriza pelo chamado paralelismo sinonímico (Garlatti, p. 4). Isto quer dizer que ¨evangelizar os pobres equivale a proclamar libertação aos cativos, restauração da vista aos cegos, pôr em liberdade os oprimidos e apregoar o ano aceitável do Senhor¨. Ou seja, cativos, cegos e oprimidos são categorias dos pobres.

b) Espiritualizar o tema pobres não condiz com a história do texto c tampouco com a teologia de Lc — veja-se, por exemplo, a contraposição de pobres e ricos em 6.20 e 6.24.

c) O termo pobres não é uma referência exclusiva à situação econômica; revela um amplo grupo que tem como característica a marginalidade e a dependência econômica: cegos, coxos, leprosos, surdos, mortos (Lc 7.22), famintos, sedentos, forasteiros, nus, presos, pequeninos (Mt 25.31-46).

2.3. O ano aceitável do Senhor

A expressão faz referência ao Ano do Jubileu previsto em Lv 25.8-55. Trata-se de uma legislação completa para prevenir a disparidade social, a exploração e a opressão. Por isso, a cada 50 anos deveriam acontecer a redistribuição das terras, o perdão das dívidas e a libertação dos escravos. Mesmo as expressões libertação aos cativos e liberdade aos oprimidos podem ser entendidas dentro das prerrogativas do Ano do Jubileu. Independentemente de que essas prescrições tenham ou não sido colocadas em prática algum dia, elas são uma profunda expressão da vontade de Deus em relação ao ser humano.

2.4. Em Jesus... o cumprimento da profecia

O que significam essas palavras de Isaías quando assumidas por Jesus 500 anos mais tarde? A profecia se cumpre. A esperança escatológica se torna presente. Não de forma nacionalista como era esperada (dia da vingança do nosso Deus!), mas na vivência concreta do amor entre os pobres e marginalizados. O programa de Jesus está colocado. O reino de Deus se faz potencialmente presente. A plenitude desse reino certamente é futura, mas por ora basta dizer que o presente é valorizado: os doentes são curados, simples pescadores se tornam discípulos, pessoas são alimentadas, marginalizados recobram o direito de integrar a sociedade. A palavra de libertação proferida em Isaías sai do rolo, deixa de ser simples escrita para se tornar experiência salvífica para o ser humano integral.

3. Reflexões a partir do texto

De onde estou sentado à escrivaninha, vejo na parede do escritório o bonito cartaz alusivo ao Encontro Continental realizado na Bolívia, em 1992, sob a iniciativa do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), pela passagem dos 500 anos de descobrimento da América. O lema do encontro, que consta no cartaz, é Martírio e Esperança. É interessante observar que a palavra Martírio foi escrita em letra minúscula e em caracteres três vezes menores que a palavra Esperança. Terá sido o martírio tão pequeno e insignificante? Certamente não! É a esperança que é maior!

O texto de Lc 4.14-21, acertadamente previsto para a época da Epifania, é um forte grito de esperança. Jesus, ao revelar a finalidade de sua missão, diz que veio para trazer uma notícia boa para os pobres. Ou seja, ele está a declarar que nem tudo está perdido, que o sofrimento pode ser menor, que a marginalização pode ser menor, que a vida concedida por Deus tem um valor que lhe é inerente. A partir de Jesus, advento do reino de Deus, existe esperança, sim. A possibilidade de ser curado, de deixar de ser oprimido e explorado é, sem dúvida, uma Boa Notícia.

Penso agora nos membros da Paróquia de Rurópolis (PA), na Transamazônica. Penso também nas outras pessoas que aqui procuram sobreviver, quase todas vindas de outros Estados na esperança de unia vida melhor, na esperança de ver perspectivas para os seus filhos. De que fornia as palavras de Jesus podem deixar de ser simples escrita para se encarnar na realidade dessas pessoas? Os doentes são carregados em redes por 20 ou 30 km ale a estrada principal para ali ficarem à espera de uma eventual condução que possa levá-los até a cidade. Ali se consultam com um médico da rede pública por cerca de dois minutos, porque se demorar mais não se consegue atender a todos que esperam na fila. As aberrações decorrentes são facilmente imagináveis. Além disso, as estradas não são conservadas e é praticamente impossível escoar a produção. O frete e os intermediários dão o tiro de misericórdia. Ir embora!? Com o quê? Para onde?

Atualizando o texto, pode-se afirmar que (ais pessoas decerto fazem parte daqueles a quem Jesus prioritariamente se dirige. No entanto, a pergunta é pelo rumo da interpretação. Adulterar as palavras de Jesus, transferindo o seu conteúdo libertador para o futuro, num plano escatológico, é heresia, é alienação. Por outro lado, enfatizar a dimensão presente sem apontar para possíveis soluções é falar de uma esperança que caminha a passos largos para o desânimo.

Entendemos, assim, que a tônica do texto deveria apontar em duas direções. A primeira é falar da esperança que podemos ter a partir da iniciativa de Jesus de opor-se a situações de opressão e sofrimento, dirigindo a sua atenção justamente para aqueles que estão na pior. A segunda é no sentido de que essa esperança é experimentada, alimentada e vivida quando de algum modo se busca alterar a realidade presente. A âncora da esperança está em Jesus, mas a possibilidade de perseverar nessa esperança vem da solidariedade, da comunhão, da luta por condições sociais mais justas, de ver que, mesmo lentamente, mudanças vão acontecendo. Esperança cristã não se reduz a conjugar verbos no futuro; implica tornar viáveis os gerúndios.

4. Pistas para a pregação

Uma realidade de comunidades/grupos menores representa uma boa oportunidade de fazer uma prédica dialogada. Em todo o caso, antes do diálogo ou durante o mesmo o dirigente deveria explicar aspectos do texto, como, por exemplo, a questão do Ano do Jubileu. Uma pergunta norteadora talvez pudesse ser a seguinte: de que forma percebemos que essas palavras de Jesus acontecem em nossa vida, na comunidade, no País?

Para uma pregação dirigida poderia-se seguir os seguintes passos:

a) Explicações sobre o texto (após a leitura):
— Origem histórica — Isaías.
— Identificação dos pobres.
— Significado do Ano do Jubileu.

b) Atualização:
— A esperança — em Jesus Cristo esta Escritura se cumpriu.
— Alusão à disparidade social e suas causas.
— Indicativos concretos e viáveis que apontem para a dignificação da vida dos seres humanos.

5. Subsídios litúrgicos

Leitura bíblica: Normalmente nos cultos é lida somente uma passagem e não duas. Neste caso, a sugestão é usar Is 61.1-6. Seria um auxílio para o texto da pregação. A simples leitura de l Co 12.12-21,26-27 poderia causar a impressão de que a aplicação do texto de Lc se reduz ao âmbito da comunidade, enquanto a sua real intenção tem caráter bem mais amplo.

Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, em Jesus Cristo mostraste todo o teu amor e carinho pela humanidade. Mas nós temos a facilidade de complicar a simplicidade da tua Palavra. Perdoa-nos, Senhor, porque teimamos em olhar apenas para nós mesmos ao invés de sermos solidários com a necessidade do próximo. Por isso, ¨tem piedade de nós, Senhor!''

Oração de coleta: Agradecer a Deus a partir dos motivos específicos da comunidade; invocar a presença do Espírito Santo; pedir para que o culto seja uma fonte de ânimo, que reforce a coragem para a ação em favor do reino de Deus.

Oração de intercessão: Levantar os motivos específicos junto à comunidade; lembrar os governantes e a nossa responsabilidade de cobrar as tarefas que lhes cabem; interceder em favor dos povos que estão em conflito.


6. Bibliografia

FITZMYER, Joseph A. El Evangelio segun Lucas. Madrid, Cristianidad, 1981. tomo II, p. 417-447.
GARLATTI, Guillermo. Evangelización y Liberación de los Pobres — Lc 4.16-21. Revista Bíblica, 25(1): 1-15, 1987.


Autor(a): Nilo Orlando Christmann
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: 3º Domingo após Epifania
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 4 / Versículo Inicial: 14 / Versículo Final: 21
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1994 / Volume: 20
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13075
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