Mateus 27.33-54

Auxílio Homilético

05/04/1996

Prédica: Mateus 27.33-54
Leituras: Salmo 22.2-12,17-20 e Hebreus 4.14-16; 5.7-9
Autor: Cláudio Molz
Data Litúrgica: Sexta-feira da Paixão
Data da Pregação: 05/04/1996
Proclamar Libertação - Volume: XXI


1. Sensibilidade entre Humanos

Depois de ter sido totalmente humilhado como ser humano pelo grupamento dos soldados, Jesus foi considerado preparado para a única alternativa que restava: matá-lo. Matar uma pessoa limpa e íntegra provocaria um grande constrangimento. Era necessário sujá-lo de sangue, fedor e indignidade. Quanto pior o estado de violentação e aviltamento, mais fácil seria evitar os sentimentos normais de piedade e de preservação com o semelhante. A violência da tortura não servia, portanto, apenas para extorquir do infortunado qualquer informação adicional, útil para combater o mal que o castigado representava, mas também para facilitar a sua eliminação. Tornando a Jesus um trapo, chegava-se à situação de poder descartá-lo como lixo. O nosso texto relata em pormenores a sequência dessa lógica de botar fora o que não presta mais, de apenas concluir a matança de quem, para os executores, já estava psicologicamente morto.

2. O Escárnio Final

Jesus não carregou a sua cruz (veja, porém, a exceção em Jo 19.17). Obrigaram o agricultor Simão Cireneu a assumir a função de seu servo, a que um rei teria direito. O destino da marcha fúnebre era a Caveira, um lugar fora do muro da cidade de Jerusalém, onde — como sugere o significado do nome em hebraico (Gólgota) — rolavam as cabeças. Deve ter sido perto de uma das saídas importantes, no lado ocidental, de modo que muita gente não tinha como evitar passar por ali. A execução tinha também a intenção pedagógica de demover outros da imitação do mesmo crime. A acusação era redigida sobre um tabuleiro que era carregado diante dele na procissão ou lhe era pendurado diretamente ao pescoço durante a caminhada. O texto dizia Rei dos Judeus. As alternativas acrescentam Jesus Nazareno. Em lugar do anestésico da compaixão, deram a Jesus vinagre com fel. Jesus se recusou a bebê-lo. Não desistiu (Ir mania a sua dignidade. Seus executores fizeram o seu trabalho. Parecem não se ler perturbado com o sofrimento. Repartiram entre si as roupas que por costume lhes locavam como despojo. Os evangelistas citam o Salmo 22, onde no v.18 já se encontra esse costume. A pretensão de Jesus de ser rei foi levada ao auge e do deboche com a crucificação de criminosos a seu lado, como a dizer: ele pode sei rei entre esses dois, mas não entre nós. Os transeuntes meneavam a cabeça. Era o sinal de desaprovação e não-entendimento. Até mesmo os dois outros conde-nados aderiram a esse escárnio desmoralizador (veja a exceção em Lc 23.39-43).

3. Quem de Fato Matou Jesus?

3.1. Indiferença ou Ceticismo Bíblico?

Esta (...) é a versão dos que manipulam os meios de comunicação: reduziram o Salvador da humanidade a um mero e efêmero rei dos judeus. (...) Eles tinham consciência de quem era e que representava o homem Jesus de Nazaré. Mas procuram esvaziar, diminuir sua importância, rotulando e definindo, a seu gosto, a tarefa de Jesus. (...) As pessoas que iam passando (v. 39) (...) sabem que Jesus é o Filho de Deus (v. 40), (...) mas eles(as) não se rebelam contra a versão dominante, aceitando-a como oficial, mas não necessariamente real. (Musskopf, 203.)

Não se pode deduzir dos textos da Bíblia que todos os líderes judeus fossem agressivamente malvados. No v. 43, p. ex., se percebe um espírito de observador entre eles. Não estavam de todo fechados à possibilidade de que Jesus fosse o Messias, mas se mantiveram na posição de espera científica, de experimentar à distância, aparentemente sem arriscar nem se comprometer com nada. Trata-se de um resguardo teológico que faz a reflexão inspirada de Gamaliel (At 5.33ss.): Não queremos lutar contra Deus. Se é ele quem move algo, não deixará de acontecer e ter o seu espaço. Fiquemos à espera de que Deus mesmo prove a sua participação nisso. Não vamos nos precipitar, julgando antecipadamente. Já morreram os revolucionários Teudas e Judas, talvez morra mais um: Jesus. Veremos. Essa reflexão procura seguir fielmente a orientação de Dt 18.22: Quando esse profeta falar, em nome do Senhor, e a palavra dele se não cumprir nem suceder, como profetizou, esta é palavra que o Senhor não disse, com soberba a falou o tal profeta: não tenhas temor dele.

3.2. Um Deus Vingador?

Deus mesmo quis a morte de Jesus? Há muitos teólogos e pregadores que o defendem em seus discursos. Supõe-se um Deus que precisa ser satisfeito em sua justiça. Como nos ama, poupou a nós; mas alguém precisava ser sacrificado. Opera-se dentro de um esquema de bode expiatório. Jesus foi então a saída, tornando-se o cordeiro imolado. É a teoria do famoso Anselmo de Cantuária (m. em 1109), na sua obra intitulada Por que Deus Se Tomou Ser Humano? (Cur deus homo?).

O verdadeiro Deus, porém, não é um Deus justiceiro e vingativo que exija sacrifícios cruentos de bodes expiatórios ou de outros seres para acalmar-se na sua ira. Poderia o Deus do amor tornar-se um Deus da vingança, do ódio, da implacável perseguição punitiva?

3.2.1. Os Sacrifícios Levíticos

De onde surgiu a expressão de que Jesus tinha que sofrer? Trata-se de uma expressão interpretativa sobre o significado da morte de Jesus. Recolhemo-la dos textos dos testemunhos bíblicos escritos 25 ou até mais de 50 anos depois dessa morte. A origem da ideia vem da prática ritual sacerdotal do Antigo Testamento.

Para eles (se. os sacerdotes levíticos), os sacrifícios cruentos eram uma concessão ao apetite humano de carne e aos instintos violentos do homem. Sua função como sacerdotes era controlar e processar essa violência tolerada por Deus. Não que Deus, por sua própria iniciativa, pedisse sacrifícios, mas que, em vista do apetite e da violência humanos, Deus controlava com sacrifícios o perigo consequente e aproveitava as virtudes do sangue derramado para limpar a Casa. O sistema levítico procurava exorcizar o perigo de cair na idolatria, postulando uma suposta violência na natureza de Deus. (Pixley, 108.)

O sistema implicava o perigo de que os ricos podiam obter o consolo de suas consciências sem verdadeiro arrependimento. Disso nos dão mostras os profetas:

Estou farto dos holocaustos de carneiros, e da gordura de animais cevados, e não me agrado do sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bodes. (Is 1.11.)

Pois misericórdia quero, e não sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos. (Os 6.6.)

A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo. (Tg 1.27.)

Se o sistema de sacrifícios teve essa conotação de concessão à fraqueza humana e, além disso, pecava por não requerer a penitência verdadeira dos ricos, não deveríamos continuar aplicando essa teologia. Já temos sacrifícios suficientes em nossas terras latino-americanas, não só de animais e de seres humanos, mas também dos vegetais.

3.2.2. Os Judeus

Também não convém insistir na tecla antijudaica de que foram os judeus que sacrificaram a Jesus. De autoridades prepotentes como as que eles tiveram naquela época nós também não temos falta hoje. Coragem de enfrentá-las com o risco da própria vida também não é o que mais abunda entre nós. E, do ponto de vista cultual, a própria História se encarregou de eliminar o sacrifício entre os judeus. Desde a destruição de templo de Jerusalém em 70 d.C. essa possibilidade acabou. Restam a paz, a fraqueza da cruz, o amor de Deus como armas para, com o nosso corpo, combater a fim de que todo sacrifício injusto seja eliminado para sempre.

3.3. A Prepotência Humana

Do ponto de vista histórico foram as próprias atividades de Jesus que o levaram à condenação. Foram causas de sua morte as suas palavras, os seus sinais diante do povo que o seguia, os seus gestos, as suas ameaças, as suas críticas. Mesmo que digamos que foi um assassinato jurídico, não conseguimos alterar essa afirmação. Jesus se tornara um personagem incômodo para as autoridades judaicas e romanas. Os romanos não costumavam ser relapsos quando se tratava de proteger o seu império contra qualquer possibilidade de ameaça. Em Jesus viram suficiente potencial de distúrbio da ordem pública. Preferiram agir preventivamente a permitir que o perigo crescesse.

3.3.1. O Templo

O fator que causou a maior perturbação entre o povo e as autoridades foi a posição de Jesus em relação ao templo de Jerusalém. Expressou claramente a sua profunda discordância com todo o movimento e o modo de ser usado. A sua crítica foi contundente:

Aqui está quem é maior que o templo. (Mt 12.6.)

Jesus (sc. referindo-se ao imposto do templo) lhe disse: Logo, estão isentos os filhos. (Mt 17.26b.)

Tendo Jesus entrado no templo, expulsou a todos os que ali vendiam e compravam (...) E disse-lhes: Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a transformais em covil de salteadores. Vieram a ele no templo cegos e coxos, e ele os curou. (Mt 21.12-14.)

Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra, que não seja derrubada. (Mt 24.2.)


Essa crítica volta entre as acusações perante o Sinédrio:

(As duas testemunhas falsas afirmam:) Este disse: Posso destruir o santuário de Deus e reedificá-lo em três dias. (Mt 26.61.)

(Os transeuntes dizem a Jesus na cruz:) Ó tu que destróis o santuário e em três dias o reedificas! Salva-te a ti mesmo, se és Filho de Deus! E desce da cruz! (Mt 27.40.)


Depois, os efeitos apocalípticos também indicam a importância da morte de Jesus em relação ao futuro do templo:

Eis que o véu do santuário se rasgou em duas partes, de alto a baixo. (Mt 27.51a.)

A crítica contra o templo atingia feridas de toda a sociedade judaica. Os pobres estavam excluídos porque não conseguiam acompanhar corretamente as prescrições legais. Os doentes estavam excluídos porque se encontravam em situação de declarada impureza cúltica. Profissionais como os curtidores, pastores ou coletores de impostos também eram considerados impuros. No tempo de Jesus, 600 talentos ao ano iam ao exterior, a Roma. Famílias de grandes posses eram obrigadas a garantir o envio dessa imensa soma, mesmo que não a conseguissem arrecadar do povo. Além desses impostos para o exterior, havia a grande carga interna, de modo que ao todo um israelita era taxado com aproximadamente 30% sobre suas propriedades. Praticamente todos os tributos eram mediados pelo sistema do templo, que, por isso, pode ser chamado de Estado-Templo. Os agricultores podiam ser tributados diretamente nas suas aldeias ou por ocasião de suas visitas periódicas ao templo de Jerusalém. Não admira que com essas cargas — e, para os pobres, sobrecargas — sempre houvesse quem se proclamasse messias, para salvar o povo dessa opressão.

Já dos tempos dos macabeus, 100 anos antes de sua vinda à Palestina em 63 a.C., os romanos conheciam o potencial de inquietação do templo. Certamente foi também em vista disso que lhe concediam direitos excepcionais em termos de tolerância religiosa. O templo não continha apenas elementos religiosos. Havia claros componentes econômicos, sociais, políticos e ideológicos.

3.3.2. O Movimento Revolucionário

É certo que não apenas os pobres agiam em favor de uma libertação. Entre os líderes sociais e econômicos judeus também surgiam graves desavenças e sobreposições, em geral devido a usurpação e exclusivismo de alguns contra os demais. Os poderosos se tornavam colaboracionistas com o poder militar romano, mas, quando já não recebiam acesso às facilidades daí decorrentes, se tornavam também rebeldes. Entre os discípulos de Jesus havia alguns de origem revolucionária. Com muita probabilidade de acerto se mencionam Simão Zelota (o próprio nome o revela), Judas Iscariotes (se derivamos o nome de sicário) e Simão Pedro Barjona (seguindo a interpretação acádica de Barjona).

4. Pregação

1. Se a prepotência humana continua sendo um empecilho para a realização da integração e da fraternidade entre nós, façamos dela um tema importante do sermão. Não excluamos dela a nós mesmos, como se não fôssemos nunca prepotentes! Poderíamos pleitear formas de governo que sejam mais participativas, receptivas às verdadeiras necessidades do povo.

2. O povo, tanto o judeu como o romano, representado pelos poucos soldados presentes, em geral teve a percepção correia, se bem que vaga, de quem era Jesus verdadeiramente. Faltam-lhe força e convicção para atuar de forma mais decisiva. Carece, portanto, de animação, de liderança e, sobretudo, de compaixão compreensiva e fraterna.

3. O consolo das consciências não pode resultar no individualismo, no qual cada qual fica satisfeito com o que conseguiu para si, desinteressado dos demais.

4. No momento da morte de Jesus, a fidelidade do seu grupo praticamente se restringiu ao grupo das mulheres. A elas, conseqüentemente, coube receber como primeiras a mensagem da fidelidade de Deus que não cessa diante da morte.

5. Quando Mateus escreveu o nosso texto, o templo já estava destruído. Em outras palavras ele diz: mesmo que lhes aparecessem os ressuscitados que saíam dos sepulcros, mesmo que o santuário antigo já não tenha mais validade, porque o seu véu se rasgara, há gente entre nós que não aceita os avisos de Deus. Assemelha-se ao rico que só tarde demais percebe o seu dilema e pede a Lázaro uma gotinha de linimento para o seu sofrimento, que, no entanto, não lhe pode ser concedida. Abraão também lhe nega o outro favor: Se não ouvem a Bíblia, tampouco se deixarão persuadir por alguém que tenha ressuscitado dos mortos. (Lc 16.31.) E assim Deus vai abrindo a porta para aqueles que não eram o seu povo eleito, mas o aceitam e seguem: quem pronuncia a confissão central da comunidade de Jesus não é um judeu, mas sim um pagão romano: Verdadeiramente este era Filho de Deus. (Mt 27.54c.)

5. Celebração

Quanto à celebração litúrgica, gostaria de reforçar (v. também Musskopf, 201s.) que mesmo naquelas comunidades em que se introduziu a celebração da Eucaristia na Sexta-Feira Santa se deveria tentar abolí-la de novo, porque realmente não há o que celebrar no dia em que o nosso Senhor morreu. A Ceia não celebra a morte de Jesus, mas a sua presença entre nós. Deveríamos, portanto, utilizar o culto de Sexta-Feira Santa para experimentar e compreender a ausência de Deus, apesar dos nossos gritos e do de Jesus.

6. Bibliografia

KELLER, SIGMAR. Meditação sobre Mt 27.33-50(51-54) para Sexta-Feira Santa. In: DREHER, C. A. & KIRST, N., coords. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1082. vol.. VIII, p. 162-165.
MUSSKOPF, Carlos. Meditação sobre Mt 27.33-56 para Sexta-Feira Santa. In: KILPP, N. & TREIN, H. A., coords. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1988. vol. XIV, p. 201-206.
PIXLEY, Jorge. Exige o Deus Verdadeiro Sacrifícios Cruentos? Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (RIBLA), vol. 2, 1988, p. 89-109.
VOLKMANN, MARTIN. Jesus e o Templo. São Leopoldo, Sinodal; São Paulo, Paulinas, 1992. 170 p.
WIT, Hans de. Quem É o Deus que Tem o Poder de Vos Libertar das Minhas Mãos? RIBLA, vol. 2, 1988, p. 29-47, especialmente 42.


Autor(a): Cláudio Molz
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Sexta da Paixão

Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 27 / Versículo Inicial: 33 / Versículo Final: 54
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1995 / Volume: 21
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13297
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