Marcos 10.17-27

Auxílio Homilético

13/10/1991

Prédica: Marcos 10.17-27
Leituras: Amós 5.4-7,10-15 e Hebreus 3.1-6
Autor: Nilton Giese
Data Litúrgica: 21º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 13/10/1991
Proclamar Libertação - Volume: XVI


1. Tradução

17 E saindo ele a caminho, correu um ao seu encontro e, tendo-se ajoelhado diante dele, lhe perguntou: Ó bom mestre, que farei para herdar a vida eterna?

18 Jesus lhe disse: Por que me chamas bom? Ninguém é bom, senão um: Deus.

19 Sabes os mandamentos: não adulteres, não mates, não furtes, não dês falso testemunho, não defraudes, honra teu pai e mãe.

20 Ele dizia a ele: Mestre, todas essas coisas tenho guardado desde minha juventude.

21 Jesus, tendo olhado para ele, o amou (ou simpatizou com ele) e lhe disse: Uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres e terás um tesouro no céu e depois (livremente) segue-me.

22 Ele, porém, tendo-se entristecido por essa palavra, saiu. entristecido. Porque era dono de muitas propriedades (bens imóveis, terrenos).

23 E, tendo olhado ao redor, Jesus disse aos seus discípulos: Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas.

24 Os discípulos ficaram pasmados sobre essas palavras dele. Jesus, porém, novamente respondeu e disse para eles: Filhos, quão difícil é entrar no reino de Deus.

25 É mais fácil um camelo passar através do buraco de uma agulha, que um rico entrar no reino de Deus.

26 Eles ficaram completamente aterrorizados, dizendo entre si: E quem poderá ser salvo?

27 Olhando para eles, Jesus disse: Para os homens é impossível, mas para Deus todas as coisas são possíveis.

2. Análise de detalhes

Não há muitas diferenças entre o texto grego e a tradução de Almeida. Contudo, as poucas que existem merecem ser mencionadas.

No v. 19 Jesus cita os mandamentos da segunda tábua (Êx 20.12-16; Dt 5.16-20). Contudo, na relação de Jesus aparece um mandamento que em si não está declaradamente nessa segunda tábua. Trata-se de não defraudes. Os textos de margem que aparecem no texto grego sobre esse mandamento são:

Dt 24.14: Não oprimirás o jornaleiro (diarista) pobre e necessitado, seja ele teu irmão ou estrangeiro, que está na tua terra e na tua cidade.

l Co 6.8: Mas vós mesmos fazeis a injustiça e fazeis o dano, e isto aos próprios irmãos.

l Co 7.5: Não vos priveis um ao outro, salvo talvez por mútuo consentimento, por algum tempo, para vos dedicardes à oração e novamente vos ajuntardes, para que Satanás não vos tente por causa da incontinência.

Parece que fraude no pagamento de salários não era nada incomum. Veja, por exemplo, Dt 24.15; Ml 3.5; Lc 19.8; Tg 5.4. Por se tratar de uma conversa entre Jesus e um rico, não é exagero supor que denuncia-se aqui uma das causas da riqueza.

No v. 22 a tradução de ktemata pode ser melhor especificada, pois o termo grego supõe propriedades como bens imóveis, terrenos.

No v. 24 o texto grego omite as palavras entre colchetes em Almeida (para os que confiam nas riquezas).

No v. 26 o termo perissos exeplessonto é traduzido por Almeida como sobremodo maravilhados. Não nos parece boa essa tradução. O termo grego ekplessomai nesse contexto significa ficar atônito, ficar aterrorizado.

3. Levantamento de reflexões já feitas

Mc 10.17-27 já foi refletido em PL XII, p. 256, e seus paralelos Mt 19.16-26 em PL II, p. 349, Lc 18.18-23 em PL XII, p. 249, e Lc 18.18-30 em PL VI, p. 265. Essas reflexões têm distintos acentos. Em PL XII, p. 256, ela é mais existencial, refletindo sobre a dificuldade que as pessoas têm de procurar orientação para suas vidas quando estão presas às riquezas deste mundo. Em PL II, p. 349, temos uma meditação mais de caráter social e profético, acentuando que Jesus está confrontando o jovem rico com a obediência ao primeiro mandamento. O primeiro mandamento seria a condição sine qua non para entender e aceitar os outros mandamentos. Compromisso com Deus tem como consequência aceitação e vivência dos mandamentos. Em PL XII, p. 249, temos uma avaliação e pesquisa exegética sobre a história específica de Jesus com o jovem rico. O autor ressalta que a questão de peso é o chamamento ao discipulado. O discipulado requer abandono de bens e atividade profissional, a partir dos quais a sobrevivência é garantida (tb. tese de G. Theissen sobre o movimento de Jesus, cf. bibliografia). Outra questão importante que o autor de PL XII, pp. 249ss, registra é que biblicamente a herança/entrada na vida eterna/reino de Deus deve corresponder a um determinado fazer, a uma determinada prática (Mt 7.21; 8.5-13; 13.44ss; 21.33ss; 25.31-46; Mc 9.43-47; Lc 10.25ss). E, ainda, PL VI, p. 265, onde se desenvolve uma reflexão político-existencial, que aprofunda a reflexão sobre o jovem rico, afirmando que trata-se de um representante das oligarquias históricas, diferente de Zaqueu (Lc 19.1-10), que é uma espécie de novo rico, para o qual é mais fácil desprender-se de seus bens.

Além desse material a que todos nós temos fácil acesso, menciono ainda um polígrafo de Verner Hoefelmann sobre o Evangelho de São Marcos, onde o autor faz uma leitura sociológica de todo o evangelho. Ele localiza Mc 10.17-27 como centro dialético das etapas do caminho de Jesus. Mc 10.17-27 estaria entre o discernimento e a decisão em favor de uma nova prática. O jovem rico é uma espécie de protótipo do velho sistema e a proposta de Jesus supera esse velho sistema apontan-do para a novidade.

Por fim, deve-se mencionar também que Mc 10.17-27 tem uma carregada tradição dogmática protestante (cf. bibliografia dos PLs mencionados acima). Enfatiza-se que o texto é modelo para afirmar que as obras da lei não podem salvar, que a salvação é obra exclusiva de Deus. É graça e não mérito do ser humano. Como luteranos cremos nesse princípio no que se refere à salvação, ainda que Mc 10.17-27 não nos pareça ser tão modelar assim para essa conclusão. Dentro dessa linha há os mais entusiastas, que dizem que as figuras do camelo e do buraco de agulha, em verdade, são imagens paradoxais. Buraco de agulha seria uma porta localizada dentro do portão principal das cidades que eram muradas, através do qual até poderia passar um camelo sem carga alguma. Ou então que camelo não seria um animal, mas camilos, que é uma corda para amarrar navios (cf. L. Goppelt, p. 113). Ou ainda que no v. 25, ao invés de rico, originalmente teria constado anthropos; com isso, o texto seria um alerta para que ricos ou homens não confiassem mais em suas riquezas (dons) que em Deus (cf. G. Theissen, p. 40).

3.1. Relativizando o radical

A grande quantidade de interpretações atribuídas a Mc 10.17-27, das quais mencionei apenas algumas, não se dá por acaso. Mc 10.17-27 incomoda. Ele é muito radical. As palavras de Jesus: Vai, vende tudo que tens e dá aos pobres (v. 21), ou a indignação e tristeza do jovem rico que não se integra à comunidade (v. 22), ou é mais fácil um camelo passar através do buraco de uma agulha que um rico entrar no reino de Deus (v. 25) — essas palavras ainda hoje nos deixam períssos exeplessonto (completamente aterrorizados). Isso porque palavras assim põem em perigo a harmonia das comunidades, as colaborações dos membros ricos, os valores dominantes em nossa sociedade. Por tudo isso, é preciso suavizar, é preciso relativizar. Ler esse texto sem suavizá-lo na prédica provoca como reação a antipatia e uma chuva de argumentos dos burgueses e pequeno-burgueses que, através de exemplos concretos que toda comunidade conhece, buscam provar e justificar a inviabilidade e a injustiça dessa proposta radical de socialização pronunciada por Jesus.

No entanto, o texto não requer suavizações. As palavras de Jesus são ditas de frente. Poderíamos dizer: olhando nos olhos (vv. 21,23,24,27). O que fazer então? Fazer-se de desentendido, ou, como se diz, encarar a onça? Muita gente já escreveu que não aceita ou não entende essa proposta de Jesus. Proponho sairmos desse círculo, que insiste em demasia em resultados finais, e seguir pelo caminho já iniciado por alguns biblistas, procurando aprofundar a compreensão da realidade daquele tempo, a experiência diacrônica da vida no tempo da primeira comunidade cristã. Passemos, assim, ao desvelamento dos fatores históricos e sociais.

4. Situação da Palestina do século I

Mc 10.17-27 foi preservado pela comunidade primitiva. Marcos o recolheu da memória da comunidade. A comunidade o preservou. Já vimos também que a princípio se trata de um texto bastante claro e radical. Por sua radicalidade ele é deveras incômodo. Pregadores não gostam de falar nesses radicalismos em púlpitos diante da comunidade. Ainda hoje isso é assim. Por isso, devemos perguntar: por que a comunidade primitiva o preservou? Por que não se esqueceu dele, assim como seguramente deve ter esquecido outras histórias e passagens de Jesus? O que contribuiu ou foi até decisivo para a preservação desse texto?

4.1. Situação de crise

Gerd Theissen e François Houtart nos dizem que o fundo histórico é essencial para a compreensão dos textos bíblicos do NT. Em suas investigações eles registram que o século I na Palestina foi tremendamente conturbado, bastante confuso e cheio de anomia, que, segundo definiu E. Dürkheim, é a situação em que os indivíduos não têm mais condições de comportar-se de acordo com as normas de seu grupo. Isso ocorre especialmente em crises econômicas, quando pessoas são deslocadas para grupos diferentes, sendo-lhes subtraída, com isso, a certeza de comportamento até então tida, enquanto não tiverem aprendido as regras de comportamento dos novos grupos a que pertencem. Nesse sentido, temos um dado curioso, com o qual concordam todos os censos do século I: o judaísmo da diáspora era mais numeroso que o judaísmo palestinense (cf. Theissen, p. 61). Contudo, o fenômeno da anomia não se dá apenas com a diáspora. Ele se registra também com o camponês que troca o campo pela cidade, ou quando perde o caráter de proprietário e passa a ser empregado, i. é, mão-de-obra a serviço de alguém.

Esses dois autores nos falam que a Palestina daqueles tempos se encontrava em diversas crises políticas, econômicas e ecológicas. No que se refere à crise política, houve uma grande confusão nas estruturas de poder. O Império Romano não conseguiu dar estabilidade política à Palestina. Ora assumia diretamente o poder (governo), ora se valia da elite judaica. As autoridades judaicas exerciam o mando sob a graça de Roma. Por outro lado, os procuradores romanos tinham seu poder limitado pela aristocracia judaica, pelo comandantes de legiões romanas e pelo imperador. Militarmente a presença de exército romano na Palestina era reduzida. Essa confusão em torno do mando se aguçava em lutas internas. O domínio romano, por exemplo, desmerecia o poder do sumo sacerdote, porque efetuava constantes trocas e porque não-zadoquistas eram nomeados para o cargo. Também o poder do Sinédrio enfraquecia, ao ponto de que, após a destruição do ano 70 d.C., os fariseus passaram a constituir novo Sinédrio em Jâmnia.

A crise política tem seu paralelo em fatores sócio-econômicos. A leitura da re¬alidade econômica dos subordinados a Roma era feita através dos censos. Os censos eram base para a estipulação de impostos. Sob o poderio direto de Roma sobre a Palestina, a cobrança dos impostos e a política tributária de Roma foram sempre inflexíveis. A pressão popular pela redução do valor dos impostos, que teve diversos êxitos sob a administração de Herodes, com os romanos não funcionava. As reivindicações e protestos populares eram combatidos militarmente. G. Theissen e F. Houtart falam de documentos que demonstram que o conjunto de impostos a serem pagos (romano, herodiano, templo) aumentaram consideravelmente durante o século 1. Além disso registra-se na Palestina do século I uma grande concentração de terra, a princípio por Herodes e através deste pelas oligarquias judaicas e estrangeiras. Em consequência surgia um grande número de semicamponeses e arrendatários. As terras concentradas e arrendadas destinavam-se principalmente a produtos exportá-veis (bálsamo, óleo, cereais). O crescimento da exportação se evidencia pelo grande crescimento de Cesaréia, cidade portuária fundada em 10 d.C.

Além da crise econômica e política, deve-se considerar também a crise ecológica. A Palestina do último século antes de Cristo e do primeiro século depois de Cristo foi duramente afetada por diversos acidentes ecológicos. Uma seca em 65 a.C., um ciclone em 64 a.C., um terremoto em 31 a:C., uma epidemia em 29 a.C., uma crise de fome em 25 a.C. e durante o período do imperador Cláudio (44-54 d.C.) uma época de fome, em 46/47 d.C., não superável com as produções dos anos seguintes por mais de um século.

Nesses tempos os pequenos camponeses se endividavam ainda mais, tornando-se sempre mais dependentes de seus credores. É um fenômeno de desenvolvimento econômico que em tempos de crise o rico engole o pobre. Muitos perdem suas propriedades e toda uma nova classe de trabalhadores desocupados começa a surgir. Por outro lado, em tempos de crise os ricos proprietários de terra e bens passam a acumular ainda mais. Nesses tempos difíceis para a classe dominada, não existem registros de uma possível ajuda do Estado romano durante o período de fome de 46/47 d.C. O que existe são notícias de ajuda privada, como por exemplo At 11.29.

Por tudo isso, a Palestina do século I se defronta com uma grande emigração. Essa emigração tem diversas facetas: judeus eram dispersos no estrangeiro como soldados de Roma, fugitivos políticos e prisioneiros de guerra colocados em outras terras (At 8.1; 11.10; 12.1ss; Mt 2.13ss; Lc 13.31ss) e ainda aqueles que emigravam em busca de melhores condições de vida (2 Co 11.22; l Ts 2.5; Fp 3.19), muitos desses levados para projetos de assentamentos como Batira, Sebaste, Tiberíades e Antioquia (At 11.27s).

Também a fé religiosa, que reunia pessoas em busca da superação de todos esses problemas políticos, econômicos e ecológicos, favorecia a experimentação de novas formas de vida, socialmente alternativas. Vários movimentos de renovação religiosa procuravam superar essa situação anômica, através de novas orientações e valores de vida.

4.2. Qumran e eremitas

A comunidade de Qumran ou o modo de vida eremita se apresentavam como alternativas. Muitos desarraigados seguiam esse caminho (Mt 3.1ss; 11.7ss). A crise econômico-político-ecológica era preenchida com sentimento religioso. Tratava-se de preparar o caminho de Deus (Is 40.3; Mc 1.3). Josefo e Filo indicam que o número de essênios em Qumran era de quatro mil. Em Qumran foram encontradas 1.200 sepulturas, em sua grande maioria de jovens. O tempo dessa colonização alternativa foi de aproximadamente 200 anos. Como entre eles não nasciam crianças, todos os seus membros vinham de fora, produtos de condicionamentos das crises já mencionadas. As normas de ingresso pressupunham que os bens fossem transferidos para a comunidade. Internamente vivia-se de forma socialista na produção e no consumo. Por razões econômicas, i. é, pela necessidade de trabalhadores, o ingresso de pessoas inaptas ao trabalho não era permitido. Política e religiosamente eram dirigidos pelo sacerdotes.

4.3. Salteadores

Outra forma alternativa de vida era o roubo. Sabemos que salteadores havia em todo o Império Romano. No NT eles são pressupostos em Lc 10.30s, por exemplo. Não se tratava de ladrões individuais. Eram grupos organizados que se dedicavam ao roubo como forma de sobrevivência.

4.4. Guerrilha

Ainda devemos mencionar os movimentos organizados de resistência militar ou guerrilheira aos regimes herodiano e romano. Os mais destacados representantes desses movimentos foram os zelotes. Viviam nas montanhas e atuavam nas cidades. Sua prática agradou a muitos endividados. Dedicavam-se a destruir os arquivos de devedores e dívidas, proclamavam a independência nacional e aterrorizavam os ricos. Sua posição mais conhecida era a de não-pagamento de impostos aos romanos. A justificação dessa posição era religiosa. A radicalização do primeiro mandamento teria como principal consequência o não-pagamento de impostos aos romanos. Aliás, os zelotes radicalizavam todos os mandamentos religiosos e suavizavam os mandamentos sociais. A partir disso o rapto, matar um romano ou um oligarca judeu era parte do ofício de resistência. Condenava-se a riqueza concentrada e proclamava-se sua distribuição, principalmente em épocas de fome.

4.5. Comunidade cristã primitiva

Os capítulos 2 e 4 de Atos nos manifestam que também o cristianismo primitivo possuía uma forma de organização social alternativa. Essa se dava como consequência da fé vivida em comunidade. Aí não havia nem pobres, nem ricos. A alegria de Javé, expressa em Dl 15.4, por algum tempo foi realidade histórica entre os cristãos (At 2.45; 4.34s). A venda de propriedades e bens e a distribuição do produto entre todos os que tinham necessidade também era praticada por gentílico-cristãos que se integravam à comunidade (Al 4.36s). Enganar a comunidade ou reter parte dos valores era motivo de castigo (Al 5.1-11). Ao contrário de G. Brakemeier, G. Theissen afirma que as normas para o ingresso em Qumran eram idênticas àquelas para o ingresso na comunidade primitiva de Jerusalém. Theissen não aprofunda muito sua afirmação, mas deixa uma pista interessante. Sua tese, denominada de o movimento de Jesus, acentua que histórias de vocação (Mc 1.16ss; 2.15ss), palavras de seguimento (Mt 8.19s; Mc l().28s) e ordenações missionárias (Mt 10.5ss) permitem concluir que os integrantes do movimento de Jesus abandonavam casa e propriedade para compartilhar a vida de carismático itinerante. Para ser carismático itinerante havia que abandonar toda segurança econômica, política e social. Theissen tem um problema com Mc 10.17-27, porque aí não se fala em abandonar, mas em vender e distribuir. Vender e distribuir o produto (Mc 10.21) é característica dos membros da comunidade primitiva de Jerusalém. Biblicamente não há como relativizar, como aqueles que dizem que a venda c distribuição não era característica, mas que se tratava de doações espontâneas. Para a comunidade primitiva de Jerusalém a socialização da venda do produto dos bens era norma, condição sine qua non, e não possibilidade. Além disso, o NT insiste muito que sem misericórdia que sabe distribuir ao necessitado não é possível ser cristão (Mt 9.13; 18.22s; 25.32ss; 23.31ss; Mc 10.21; Lc 10.30ss; Jo 13.34; l Co 12.31; 13.1ss; 2 Co 8.13s; Gl 5.6; l Tm 6.18; Tg 2.13,15s; l Jo 3.14,17; 4.7). O discurso de que o justo deve alegrar-se com sua propriedade, também com sua riqueza, como recompensa pela sua justiça e que apenas deve sobrepor o amor a Deus ao amor sobre todos os bens, isso não é discurso evangélico, mas rabinismo farisaico (Goppelt, vol. l, p. 114). Para a comunidade primitiva a socialização foi concebida como princípio. A falta de durabilidade dessa comunidade não denuncia a inviabilidade desse princípio, mas sim a inviabilidade da forma de socializar, que se limitava ao consumo comum.

5. Uma aproximação a nossa realidade

Formas alternativas de vida são necessárias e urgentes em nossa realidade desumana de Terceiro Mundo e América Latina. Somos um continente endividado, espoliado e saqueado pelo países capitalistas desenvolvidos, que determinam situações como as que estamos vivendo atualmente e que, seguramente, são os piores tempos que já vivemos. E quando olhamos para o futuro, a situação promete ser ainda pior. Tempos piores virão. Essa afirmação pessimista parte da constatação da realidade atual e do rumo que essa realidade tomou. As coisas não vão melhorar em um futuro imediato. Todas as previsões afirmam que tudo vai piorar ainda mais.

Por exemplo, em termos de crescimento econômico, o Terceiro Mundo cresceu nos anos 70 um promédio de 5,6%, mas nos anos 80 alcançou apenas 1,5%. No que se refere à participação no comércio mundial, nos anos 70 o Terceiro Mundo representava 28% e nos anos 80 apenas 20%. Os empréstimos que o Terceiro Mundo recebeu em 1989 alcançaram apenas 20% do que obteve em 1981. Ou seja, o Terceiro Mundo está enfrentando um verdadeiro fechamento de crédito.

A nível de América Latina o final da década de 80 deixou desempregados e subempregados cerca de 35% da população economicamente ativa. Os anos 80 fecharam com 130 milhões de pessoas vivendo em condição de pobreza crítica (absoluta). No último decénio ocorreu uma verdadeira catástrofe econômica. De 81 para 89 o produto por habitante caiu em 10%. Durante a década de 80 a América Latina fez uma transferência líquida de recursos (dinheiro vivo) de 214 bilhões de dólares em juros para a dívida externa. Isso representa 52% da dívida externa, que se calcula em 410 bilhões de dólares. Com esse dinheiro, a cifra de investimento interno, em vez de 12%, teria alcançado os 45%.

Nesse quadro trágico excetua-se Cuba, único país socialista da América. Cuba fecha a década de 80 com 100% das crianças em idade escolar com escolas. A nível nacional, conta com 1,9% de analfabetos. De cada 100 crianças que nascem em Cuba, 99 completam 5 anos. O índice de mortalidade infantil é de 11 por cada 1.000 nascidos vivos. Essa realidade e a infra-estrutura presente fizeram o Dr. James P. Grant, diretor executivo da UNICEF, afirmar que 700.000 crianças latino-americanas não teriam morrido em 1988 se contassem com uma atenção médica como a de Cuba. Em Cuba existem 40.000 médicos para uma população de cerca de 10 milhões de habitantes, i. é, aproximadamente um médico para cada 250 pessoas.

No campo hospitalar aqui se fazem transplantes de tecido cerebral para pacientes com o mal de Parkinson, transplantes de fígado, de 1986 para cá já se fizeram trransplantes de coração. Deve-se dizer que todo tratamento médico em Cuba é gratuito, assim como a educação. No terreno ecológico, em 1989 se plantaram 300 milhões de árvores. Fidel em sua mensagem de fim de ano expressou: Hay una hermosa palabra que solo el socialismo puede pronunciar: la palabra para todos! Para todos los enfermos, los niños, las madres, para todos los seres humanos.

Dentro desse contexto, como Igreja e como comunidades cristãs nos caracterizamos por nossa imparcialidade (palavra cujo sinônimo é conservadorismo) político partidária e ideológica. Não apoiamos nem a esquerda nem a direita. Não somos a favor do capitalismo, nem do socialismo. Em termos sociais temos muito temor em estimular e participar em trabalhos que objetivem a participação de nossos membros nos sindicatos de classe ou no partido político. Falamos disso em termos gerais, mas não damos nome e sobrenome a nada. Fazemos apelos pela justiça, pela paz, pela igualdade e responsabilidade, etc., mas não temos sido suficientemente persistentes para exigir resultados. E os tempos de hoje não estão para apelos ou colocações Os clamores do povo nas ruas já se fazem no imperativo. Os graves conflitos não estão despertando reclamações, mas protestos, gritos, exigências e reivindicações imediatas.

Nesse contexto econômico-político-social e eclesiástico, Mc 10.17-27 parece sei bastante claro. Ele nos demonstra, como todo o evangelho, que a fé cristã não é algo reservado ao terreno religioso e espiritual. A fé cristã deve ter extensão para dentro da realidade humana. Fé cristã se traduz em práxis, ou não é fé cristã. A comunidade primitiva aprendeu isso de Jesus e o entendeu desde o princípio. Aprendeu que para viver a fé cristã havia que valorizar as necessidades e os valores comunitários. Isso foi condição, não possibilidade. A comunidade primitiva se distinguia do mundo pela ausência de classes sociais (Mc 10.43). Quem não era capaz de valorizar e de se sacrificar em favor do sonho de Javé (Dt 15.4) não entrava na comunidade. Mc 10.17-27 afirma que isso foi condição, não possibilidade.

6. Tarefas ou compromissos

1. Que a práxis da fé é essencial e urgente em nossa realidade latino-america na agonizante. O lugar do evangelho é a realidade humana.

2. Que nos atrevamos a conhecer e refletir sobre o modo de vida socialista, sua organização, seus valores.

3. Se as circunstâncias determinam o ser humano, Mc 10.17-27 reclama de nós cristãos que dediquemos energias e esforços pela humanização das circunstâncias. Isso significa começar e intensificar o trabalho de formação acentuando a necessidade da participação dos cristãos em sindicatos de trabalhadores e nos partidos políticos que reunam os trabalhadores. Nesse trabalho devemos buscar a assessoria dos departamentos de formação nos sindicatos, CPT, Movimento dos Sem-Terra, Pastoral Popular Luterana (PPL), etc.

7. Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Para variar sugiro não fazer uma oração apenas verbal. Podem-se usar recursos como fotos, objetos, símbolos que denunciem pecados estruturais e pessoais.

2. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus, ansiamos por um mundo melhor, sem doenças, discriminações, sofrimento e morte. No entanto, em meio a tantas dificuldades em que vivemos, nos sentimos fracos e incapazes de qualquer coisa. Já existem muitos caminhos, como os sindicatos de trabalhadores, os partidos de trabalhadores, as associações que buscam a construção de um mundo melhor. Ajuda-nos, Senhor, para que, motivados por tua palavra, por teu Espírito encontremos forças para a construção de uma realidade mais humana. Em nome de Jesus Cristo, nosso Salvador. Amém.

3. Oração de intercessão: Sugiro recolher motivos e pedidos da própria comunidade, partindo da pergunta: pelo que vamos orar?

8. Bibliografia

GONZÁLES, Gladys Alonso (ed.). Socialismo e modo de vida. Editorial Ciências Sociales, La Habana, 1989.
HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. Edições Paulinas, São Paulo, 1982, pp. 203-249.
BRAKEMEIER, Gottfried. O socialismo da primeira cristandade. Editora Sinodal, São Leopoldo, 1985.
THEISSEN, Gerd. Sociologia da cristandade primitiva. Editora Sinodal, São Leopoldo, 1987. GRAMNA, Organo Oficial del Comité Central del Partido Comunista de Cuba, La Habana, 2 de enero de 1990, artigo: El Tercer Mundo ante otra década sombria.
SCHAEFFER, Dario G. .Reflexão sobre Mt 19.16-26. Proclamar Libertação I-II. Editora Sinodal, São Leopoldo, pp. 349-354.
SCHVINDT, Juan Abelardo. Reflexão sobre Lc 18.18-30. Proclamar Libertação VI, pp. 265-268. WEGNER, Uwe. Reflexão sobre Lc 18.18-23. Proclamar Libertação XII, pp. 249-255.
BRUNKEN, Werner. Reflexão sobre Mc 10.17-27. Proclamar Libertação XII, pp. 256-260.

GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento, vol. 1. Editora Sinodal, São Leopoldo, 1976.


Autor(a): Nilton Giese
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 21º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 10 / Versículo Inicial: 17 / Versículo Final: 27
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1990 / Volume: 16
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14056
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