1 João 1.5-10; 2.1-6

Auxílio Homilético

19/06/1988

Prédica: 1 João 1.5-10; 2.1-6
Autor: Lúcio Roberto Schwingel
Data Litúrgica: 4º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 19/06/1988
Proclamar Libertação - Volume: XIII


l - Abrindo um caminho para o texto

A comunidade destinatária da primeira epístola joanina localiza-se na Ásia, especificamente em Éfeso, grande centro da cultura helenística e de comércio de escravos (Stott, p. 41; Houtart, p. 65).

O cenário de fundo da epístola é marcado pela existência de um grupo que, sob influências do gnosticismo, se separou da comunidade joanina (Stott, p. 37-42) e por um sistema de produção escravagista (Houtart, p. 64-74). Em meio a esta realidade, o autor da epístola previne e orienta a comunidade de fé cristã. Caracteriza o grupo separatista como falsos mestres (4.1) e anticristos (2.18-26), e procura orientar para uma vida e fé coerentes com o Evangelho.

1. A primeira epístola joanina é polêmica. Reflete uma controvérsia que tem a ver com a humanidade de Cristo, ou seja, com a encarnação. A questão em jogo é: quem realmente é Cristo! Os gnósticos negavam que Cristo tivesse assumido um corpo, sujeito a sofrimento e dor. Aceitavam, porém, que Jesus tivesse corpo, mas este não era igual a Cristo. Pois, no seu entender, Cristo desceu sobre Jesus no Batismo, tendo-se separado de Jesus no momento da crucificação. Portanto, teria permanecido impassível, não sujeito a dor e sofrimento, por ser um ser espiritual. Sob esta influência ou posição ideológica assumida, é que o grupo se-paratista na comunidade joanina não reconhecia que Cristo veio em carne (4.2) e negava que Jesus é o Cristo (2.22). Com isso também não admitem que a morte de Jesus tivesse um significado salvífico. Diante dessa situação, sobretudo, diante da negação do corpo por parte dos gnósticos, João insiste no testemunho de que Cristo se revestiu de um corpo e que o corpo do cristão é sagrado (1.1-3;3.1s).

Brown, no entanto, defende a posição de que o grupo separatista na comunidade joanina não se orienta no gnosticismo, mas faz uma leitura e interpretação diferente do quarto evangelho. Mas aí Brown não considera que basicamente o quarto evangelho também tem como pano de fundo um ambiente gnóstico. E esta realidade se reflete no próprio evangelho (p. ex., Jo. 1.14). Elementos do contexto que aparecem no evangelho podem ter sido preferidos pelo grupo separatista. Sobretudo, fato é que há um grupo na comunidade joanina que tem outra orientação (2.18-19), e esta reflete um estusiasmo docético de características gnósticas (1.6,8,10; 2.4,9; cf. também Lohse, p. 199-204).

2. A primeira epístola joanina está num contexto de produção escravagista. Este sistema, a grosso modo, dividia a sociedade em duas classes: homens livres e escravos. Os homens livres constituíam o Estado, no sentido amplo. Tinham acesso aos meios de produção, organizavam o processo de trabalho, dividiam o produto do trabalho e viviam do excedente produzido pela mão de obra escrava. Esta classe tinha também o monopólio da religião e da política; já os escravos formavam uma massa de gente reduzida a meros instrumentos de trabalho, nas plantações, na produção de alimentos, nas obras e construções de estradas e cidades. A classe não-servil considerava-se, superior ontologicamente, enquanto que os escravos eram objetos de posse de outras pessoas livres. A escravidão, portanto, era um fato aceito e considerado como normal na visão dominante da época. Éfeso, entre outras cidades, também era um grande centro de comércio de escravos (Houtart, p. 64-74). Neste contexto, o autor da epístola, João, pede à sua comunidade para não amar este mundo (2.15s.) e proclama a comunhão uns com os outros (1.6-7), a partilha (3.16-17) e o amor (4.7-21).

3. A primeira epístola joanina é orientadora e edificativa. João não fornece maiores detalhes a respeito da situação dos membros da sua comunidade. Não diz como são e o que fazem na vida, por exemplo. Apenas diz que a realidade que a cerca e na qual está inserida, é uma realidade de luz e trevas. Isto é, que estão atingidos por um sistema de vida que os faz pecar. E anuncia que a verdadeira luz, porém, brilha (2.8-10), e que nesta realidade se manifestou o verbo da vida (1.1-2). Este veio ao encontro da pessoa, em amor, e assumiu as trevas e o pecado, para dar em troca lugar ao novo (4.10-13). Contudo, deixa claro que a realidade presente ainda é de tensão e conflito. A revelação plena está por vir (3.1-2). Isto é, somos pecadores justificados que têm uma tarefa.

João evidencia também uma preocupação quanto à procedência da mensagem que anuncia. Diz que testemunha o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida (1.1). Com isto defende seu testemunho como real e verdadeiro. Sua mensagem não Vem apenas dele nem de outros apóstolos, muito menos ê projeção de um entusiasmo pessoal. Mas é experiência com a revelação de Deus em Cristo Jesus (1.2-3). O autor da epístola se insere no quadro dos apóstolos, e provavelmente é também o autor do quarto evangelho (Stott, p. 13ss). Ao refutar as posições dos adversários da comunidade, João acentua o significado salvífico de Jesus para a humanidade e o mundo todo (2.1-2; 4.10). Indica para a prática da comunhão uns com os outros; para a prática da verdade, da justiça e do amor (1.5-10; 2.1-6; 3.23) como sinais da comunhão com Deus, por intermédio de Cristo Jesus.

II - O texto

1. Deus é luz (v.5).

A referência às categorias de luz e trevas é bastante comum na Bíblia: Deus é luz (Is 60.19-20; 1 Tm 6.16; Jo 8.12). Deus é cercado de luz (Ex 24.17; Ez 1.27); Deus é fonte de luz (Tg 1,17); os pequeninos (cf. Mt 5.1-11) manifestam a luz de Deus ao mundo (Mt 5.14-16); revelação de Deus é luz aos não-judeus (Lc 2.32; At 13.47). As trevas são símbolo de morte e desgraça (Jó 30.26), opressão, injusta e exploração (Is 5.30; Mt 4.16) e estultícia (Ec 2.14). Aqui no texto de primeira João, o falar da luz é motivado pela influência gnóstica presente no contexto da comunidade joanina. Os gnósticos afirmam conhecer os mistérios de Deus e viverem na luz e na justiça. A mediação para isto, porém, é a ideologia e o ritual de iniciação gnósticos. O grupo contra o qual João discute e se posiciona, sob orientação gnóstica, não leva a sério a corporalidade, e possui uma cristologia docética. Para João, no entanto, o Deus da luz se encarnou em Jesus e somente ele ê a mediação para se conhecer a Deus (1.2-3. 7;2.23). Deus é luz, na afirmação joanina, é uma forma de condensação do ensino do Evangelho para aplicação na comunidade destinatária. Aquele que diz estar na luz e odeia a seu irmão, até agora está nas trevas (2.9).

2. Sem comunhão uns com os outros a comunhão com Deus é uma farsa (vv. 6-7).

João, tendo se apresentado como apóstolo, deve ter bem presente também os passos andados por Jesus: sua atenção e dedicação aos restolhos da sociedade: mendigos (Lc 16.19ss), empobrecidos (Mt 11.5), doentes (curas: Mc 2.1 ss., p. ex.), pecadores (Lc 15.1ss), marginalizados (Mc 10.13ss.; Mt 15.21-28); bem como o confronto com as estruturas de sua época (Mc 2.13ss.; 11.15ss.) de forma mais direta. Tendo esta referência, ao falar do Deus da Luz e do Verbo encarnado, João denuncia a incoerência do grupo separatista entre o dizer/ensinar e o crer/fazer. A ruptura entre o dizer e o fazer depõe contra o que diz e o que é dito (v. 6). Embora se ateste perfeita comunhão com Deus, esta não existe quando não pode ser comprovada pela prática de comunhão uns com os outros. A teoria do grupo oponente é refutada pela prática. Pela prática se reconhece o comprometimento de urna teoria. Em outras palavras, dizer que se está em comunhão com Deus e viver em acordo com uma ordem social e conjuntural injusta é uma contradição. O desprezo ao corpo e o acento a um intelectualismo, realmente legitimam a exploração da mão-de-obra escrava e reforçam a condição dos homens livres. O testemunho joanino aponta para a comunhão uns com os outros. E esta comunhão rompe com a harmonia com este mundo. Esta comunhão, porém, não é obra nossa, mas é obra de Deus mesmo, em Cristo, na cruz (v. 7). A fé em Cristo nos irmana num projeto de vida comum. Num projeto de sociedade onde possa haver comunhão uns com os outros de fato e não apenas em palavras.

3. Deus em Cristo remove o pecado e recria para um testemunho autêntico e eficaz em verdade e justiça (vv. 8-10; 2.1-2).

João está consciente de que sua comunidade não está fora do pecado, mas está sujeita ao pecado, enquanto está neste mundo (2.1). Pois o pecado não consiste apenas em fazer algo, ou em deixar de fazer algo. É uma condição que envolve o ser humano, num todo. No confronto com o grupo separatista, o fundamental para João consiste no fato de que Cristo seja reconhecido em Jesus e no fato de que Cristo morreu por nós (2.1-2). Esse reconhecimento inclui a confissão da nossa cumplicidade pela falta de vida no mundo. Nós também mantemos e reproduzimos as trevas! Para os gnósticos, que estão por detrás do grupo separatista, pecado era apenas uma questão ligada ao corpo (carne) e não tocava o espiritual. Pelo conhecimento o espírito era libertado do pecado. Os iluminados, portanto viviam sem pecado. Com isso autojustificavam-se. Promoviam a sua própria glorificação. Diante disso João reage e chama isso de mentira contra o próprio Deus, que morreu na cruz por causa do nosso pecado (1.10). Concretamente, o pecado consiste nisto: de, em nome de Deus, se viver em conformidade com o mundo e sustentar ideologicamente um sistema em que homens livres vivem às custas de escravos. Para João, o Cristo na cruz é fonte de libertação (2.1-2). Seu corpo mutilado e seu sangue derramado, denunciam a mutilação do corpo dos trabalhadores, reduzidos à escravidão. Por meio de Cristo, Deus nega a negação do corpo e recria para uma nova perspectiva histórica. Substitui o nosso conservadorismo pela renovação integral do nosso ser para um testemunho autêntico e eficaz em verdade e em justiça.

4. Guardar os mandamentos, sinal da novidade em Cristo (2.3-6)

Aqui João novamente invoca a coerência entre o saber e a prática do saber. Ou seja, que o verdadeiro conhecimento não pode estar desvinculado da vida real. Conhece realmente o que, por graça e fé, guarda os mandamentos, e não o que, longe da realidade, navega no mundo das ideias. Ora, o seu mandamento é este, que creiamos em o nome de seu Filho Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros (3.23). Com esta sua mensagem, João rompe com a doutrina excludente do grupo separatista e procura também remover uma possível consciência sectarista na sua própria comunidade. João deixa claro que conhecer a Deus não é mera questão de informação e conhecimento, mas é questão de fé e comprometimento. Alegar conhecimento de Deus e viver sem consciência da realidade, portanto é falso (2.4). João evidencia que, a partir de sua experiência e fé em Jesus, não compartilha com o desprezo e com o trato dispensado à classe servil. Seu apelo é que nos amemos uns aos outros (3.11; 4.7). Frente ao grupo separatista, a pregação e anúncio de João são radicais. Teria ele essa mesma posição radical frente à natureza das relações sociais, ou teria em vista apenas a melhoria relações em si? O que devemos considerar, enfim, é que o testemunho joanino colocou sinais que antecipam o Reino para o aqui e agora. Colocou a comuni¬dade diante de sua própria limitação, mas também a colocou diante de uma perspectiva otimista: da justiça, da verdade e do amor.

Ill - Reflexos do texto sobre nós

O texto de 1 João provoca em nós uma série de reações, perguntas e questionamentos. Convida-nos a vermos bem de perto a situação de nossas comunidades, como vai a nossa comunhão, a comunhão uns com os outros. Faz-nos perguntar se há grupos separatistas na Comunidade e em volta dela, e qual a sua orientação e comprometimento. Desafia a perguntar pelas mentiras e injustiças que se cometem em nome de Deus (seitas, 'Deus seja louvado no Cruzado, etc.)

Vivemos num continente que desde seu descobrimento até hoje foi encoberto de sangue e opressão. Em nome da comunhão com Deus, a cruz junto com a espada serviram de instrumento, por exemplo, para a dominação e matança de índios e negros. Como evangélicos de confissão luterana no Brasil, em sua grande maioria de imigração alemã, fomos um dos expoentes da produção agrícola no Brasil. Aprendemos que quem luta, vence na vida.

O sistema hoje é capitalista. Sua lógica é concentrar, dominar e reproduzir. Divide-se em donos do capital e trabalhadores explorados. E como se relaciona a nossa confissão de fé com esse mundo que nos cerca? Em meio a esta realidade é que nos reunimos em torno da Palavra de Deus para celebrar. Celebrar a Palavra que habitou em nós. A Palavra que se revelou no reverso da história. A Palavra anunciada por João nos questiona se o nosso falar e confessar ê um e nosso fazer é outro, ou se nos sabemos justificados e libertos por Cristo para ver, sentir, apalpar e reconhecer os sinais da Boa Nova hoje. Sinais que se evidenciam na nossa vida comunitária, na organização dos sem-terra, na luta contra as barragens e grandes projetos genocidas, na organização das mulheres, moradores de vilas, pequenos agricultores, negros e índios. Se dissermos que mantemos comunhão com ele, e andarmos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade.

IV - Pistas para prédica

O texto oferece muitos caminhos para a prédica. Um deles seria tomar o tema da comunhão uns com os outros (1.4-7) como eixo, em torno do qual girariam a justiça, a verdade e o amor. Como ponte para a nossa comunidade teríamos: 1. nossa comunhão com Deus que buscamos nos cultos e na santa ceia; 2. em confronto com a nossa vida no dia-a-dia: comunhão na comunidade, exigências do mundo envolvente; 3. e com outros irmãos: por exemplo: os negros, índios, favelados, sem-terra. Como a novidade de Jesus para nós e para o mundo inteiro está presente e/ou ausente?

V - Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Tu nos sondas e conheces até a profundeza de nossos corações. Confessamos-te que na realidade da nossa vida constantemente confundimos teu grande amor por nós com as injustiças, opressão e exploração em nosso meio. Pois dizemos que amamos a ti e que temos comunhão contigo, mas gostamos demais de agir conforme a lei do mais forte. Não percebemos que esperas que nos amemos uns aos outros como nos amaste primeiro. Por meio de teu Filho Jesus Cristo que morreu por nós e pelo mundo inteiro: Tem piedade de nósl

2. Oração de coleta: Tu Senhor, que nos reuniste em torno de tua Palavra, dá-nos agora também o teu Santo Espírito para podermos discernir a tua vontade para com este mundo em que vivemos. Concede também que sejamos testemunhas eficazes de teu amor, por onde andamos. Por teu Filho Jesus Cristo que contigo vive e reina de eternidade a eternidade. Amém.

3. Assuntos para oração final: interceder pelo fim dos separatismos em nossas comunidades e em nossa igreja; interceder pelos sinais concretos de comunhão e amor na comunidade e fora dela: assistência aos velhos, visitas a doentes, acolhimento às crianças, reuniões dos jovens; pela liberdade de organização no campo e na cidade. Interceder pela organização das mulheres, dos agricultores, dos sem-terra, dos moradores das cidades, pela organização e luta dos povos indígenas; pelo amor de Deus que vem a nós gratuitamente por intermédio de Cristo; peto convite à comunhão uns com os outros.

VI – Bibliografia

- BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado. São Paulo, 1983.
-HOUTART, F. Religião e modos de produção pré-capitalistas. São Paulo, 1982.
-LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo, 1974.
- STOTT, John R. W. I, II e IlI João, introdução e comentário. 2. ed. São Paulo, 1985.


 


Autor(a): Lúcio Roberto Schwingel
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 4º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: João I / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 5 / Versículo Final: 10
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1987 / Volume: 13
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14178
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