Lucas 2.1-20

Auxílio Homilético

25/12/1995

Prédica: Lucas 2.1-20
Leituras: Isaías 9.1-6 (= Almeida 9.2-7) e Tito 2.11-14
Autor: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: Natal
Data da Pregação: 25/12/1995
Proclamar Libertação - Volume XXI


1. Impulsos para a Pregação no Natal

Outro dia, já faz algum tempo, uma senhora grávida entrou no ambulatório médico da paróquia e aconteceu ela dar à luz ali mesmo. Um menino forte e sadio. Só havia gente pobre para acolher o recém-nascido. Não fiquei sabendo o nome da mãe. Ela mora na favela.

Vendo aquelas senhoras, todas querendo ajudar a mãe e o menino, fiquei triste. Pensava nos milhares de meninos abandonados: Mais um para crescer na miséria, sem casa e sem carinho! Qual o futuro desse menino aí, a quem deram o nome de Jesus? Assim eu pensava. (...)

E uma delas pegou o menino nos braços, levantou-o na frente das outras e disse: Esta é a nossa riqueza! Nossa única riqueza! Não tem preço! A gente não vende nem por um milhão! (C. Mesters, Maria, a Mãe de Jesus, p. 91 s.)

Batizei a Maria do Socorro. Batizei-a antes das outras crianças, porque ela estava morrendo nos braços da irmã mais velha. A mãe tinha morrido no parto, treze dias antes. O pai tinha fugido, fazia pouco tempo. Ficava só a Raimundinha, a irmã mais velha e seus nove irmãozinhos para acolher esta irmã mais nova que estava para morrer. Raimundinha tinha mais ou menos uns 16 anos.

À tarde fui visitá-los. Casa pobre, de barro preto. Na escuridão, vi a turminha toda em pé ao redor da Raimunda que estava sentada com a Maria do Socorro no colo. Maria estava morrendo. Vestia a veste de batismo. Um irmãozinho lhe segurava uma vela acesa na mão. A vela do batismo, acesa no Círio Pascal, símbolo da vitória da vida sobre a morte. (Id., ibid., p. 95.)

Boas Festas! (Dizeres de um Cartão de Natal.)

Olhai, no presépio repousa Jesus;
olhai, ao clarão fulgurante da luz,
em panos humildes o Filho de Deus,
mais belo e afável que os anjos dos céus! (Hinos do Povo de Deus, no 24.)


Da mulher — que me chamaram: ela não estava conseguindo botar seu filho ao mundo. E era noite de luar, essa mulher assistindo num pobre rancho... Eu tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: — Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esse que vai nascer defendido e são, e que deve de se chamar Riobaldo... Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, ao me despedir: — Minha Senhora Dona: um menino nasceu — o mundo tornou a começar!... — e saí para as luas. (J. Guimarães Rosa, Grande Sertão — Veredas, p. 353.)

2. O Contexto Litúrgico dos Textos Bíblicos

Lucas 2 talvez seja o texto mais conhecido e popular de toda a Bíblia. Esta preferência vem de longa data. Já na Igreja antiga, Lc 2 era muito benquisto, de modo que esteve vinculado à celebração do Natal desde as origens da festa. O texto consta de todas as antigas listas de leituras bíblicas. Nestas relações de textos, Lc 2.1-14 era previsto para o encontro comunitário da noite santa, enquanto que Lc 2.15-20 era lido na missa da aurora. (Assim, p. ex., no Missal Romano.) Também o Homiliário de Carlos Magno previa a leitura das duas partes de Lc 2 para as vigílias natalinas.

Essa tradição foi preservada pela Igreja Luterana da Alemanha e pela Católica Romana. O Lecionário Ecuménico prevê Lc 2.1-14, juntamente com os textos em epígrafe (Is 9.2-7 e Tt 2.11-14), para a Missa da Noite, e Lc 2.15-20 (juntamente com Is 62.11s e Tt 3.4-7) para a Missa da Aurora. Já que este Lecionário previa uma única série (em vez de três) para os encontros comunitários de Natal, a Comissão Litúrgica da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) (inspirada nas igrejas luteranas dos EUA?) reservou os textos da Missa da Noite para o Natal do ano A, e os textos da Missa da Aurora para o Natal do ano C. Com esta decisão o texto natalino de Mateus (Mt 1.1-25) foi sacrificado.

A leitura da Epístola de Paulo a Tito (caps. 2 e 3) no Natal também é tradicional. Confesso que nunca pude concordar plenamente com esta antiga tradição da Igreja. Pois na Epístola a Tito o tema do Natal não é tratado de modo explícito, muito menos extensamente. Ele se encontra embutido numa espécie de resumo da fé cristã: Tt 3.4 fala da manifestação da benignidade de Deus e Tt 2.11, da manifestação da graça salvadora de Deus. É claro que esta manifestação também se dá no Natal. Mas ela não ocorre igualmente em toda a atuação e pregação de Jesus?

Já o texto de Is 9.1-6 (na Bíblia Hebraica; corresponde a Is 9.2-7 na versão de Almeida, que segue a versiculação da Vulgata) é a complementação perfeita do texto de pregação. Em Is 9, chama a atenção a contradição entre a bota e a veste do soldado, sujos de sangue, e o indefeso menino que recebe o título príncipe da paz.. A violência e o poder militar são substituídos por um outro poder, manifesto na criança da manjedoura.

3. Algumas Considerações sobre Lc 2.1-20

Na série Proclamar Libertação o texto de Lc 2.1-14(20) já foi tratado nos volumes I (N. Kilpp), III (B. van Kaick), X (C. Musskopf) e XVII (O. Witt). Quanto aos detalhes exegéticos remeto o/a leitor/a em especial à meditação de van Kaick.

Lc 2.1-20 pode ser subdividido em 3 cenas:

a) vv. 1-7: o censo e o nascimento do menino;
b) vv. 8-16: o anúncio da boa nova aos pastores;
c) vv. 17-20: testemunho dos pastores.

a) Primeira Cena: o Lugar

Conforme o evangelista Lucas, o nascimento de Jesus ocorre dentro da história profana do grande Império Romano. O texto começa citando um decreto de César Augusto que coloca em movimento a população do Império. A pessoa mais poderosa da época determina os acontecimentos, faz a história. O objetivo do decreto é o recenseamento de proprietários e a avaliação de propriedades para fins de tributação. Toda a movimentação tem por objetivo último a arrecadação de impostos. Sem dúvida, Lucas quer contrapor o projeto do governo central ao daquele menino que vai nascer na periferia do Império.

José e Maria se sujeitam à ordem. Aparentemente, eles não fazem parte da oposição zelota que se nega a pagar os impostos. Talvez não tenham como resistir. O texto enfatiza a descendência davídica de José. Até mesmo os davididas têm que submeter-se à autoridade do Império. O decreto de Otaviano, cognominado Augusto, levou o casal até Belém, na Judéia. Aí morava o clã de José. Ali Maria deu à luz. Os/as leitores/as associam imediatamente o lugar com a promessa do Messias (Mq 5.2).

No fim da primeira cena estamos numa humilde e pobre gruta ou estábulo nos arredores de Belém, na periferia do Império Romano. A criança sem nome que nasce, é deitada em um coxo de animal, pois não havia lugar mais apropriado entre os próprios parentes de José. Não se trata de uma visão bucólica. As faixas com que se enrola a criança mostram que o menino não é um ser celestial, mas realmente uma pessoa humana.

b) Segunda Cena: o Anúncio aos Pastores

Nos campos das redondezas é que ocorre a interpretação do que aconteceu no estábulo. Aí pastores cuidavam dos rebanhos durante a noite. Em noites não muito frias as ovelhas e as cabras podiam ficar nos campos. Na época, os pastores eram considerados trapaceiros e, portanto, pouco confiáveis como testemunhas e até desprezíveis. Mas eram, antes de tudo, trabalhadores que tinham que trabalhar duro para ganhar a vida.

O estábulo e os pastores pertenciam, portanto, ao mesmo ambiente de pobreza e marginalidade. É neste ambiente que ocorre o milagre da encarnação de Deus. Aos pastores é que é dado conhecer por primeiro esse milagre. Eles não representam, de algum modo, a comunidade cristã composta de pecadores agraciados e escolhidos para testemunharem o Cristo?

O anúncio do anjo ocupa o maior espaço do texto, um sinal de que está aí o cerne teológico da narrativa. O nascimento dessa criança é diferente de todos os outros. Meros olhos humanos não vêem nada de extraordinário na criança da estrebaria. É necessário que os olhos da fé interpretem o acontecimento. É esta a função do anjo: Hoje vos nasceu na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor.

Chama a atenção a concentração de títulos cristológicos. Os termos usados indicam que também aqui Lucas quer comparar o menino deitado na manjedoura com o imperador Augusto. Salvador também é um termo usado no culto ao imperador. Aliás, César Augusto era considerado filho de deus, o salvador prometido e o grande pacificador das nações; com o seu nascimento teria iniciado uma nova era. A história de Natal afirma que o verdadeiro Salvador é o menino indefeso que hoje nasceu na pobreza do estábulo de Belém. A sua salvação e a sua paz são diferentes daquelas prometidas ou trazidas pelo imperador romano.

Os anjos retornam ao céu e deixam os pastores sozinhos. Eles se põem a caminho para verificar o anúncio. E, assim, encontramo-nos novamente ao pé da manjedoura. Os panos em que a criança está envolta certamente não são um sinal inequívoco do seu senhorio. Na verdade, eles antecipam o sofrimento e a morte do Messias.

c) Terceira Cena: o Testemunho dos Pastores

Os pastores sentem-se como os que experimentaram a benevolência, o bem-querer de Deus (v. 14) e para os quais veio a salvação (v. 11). Em sua alegria, eles começam a difundir, aparentemente ainda na mesma noite, tudo o que viram e ouviram, já que a boa nova é destinada a todo o povo (v. 10). Também aqui os pastores assumem a tarefa da comunidade cristã: a de testemunhar a boa nova a todas as pessoas.

Depois dessa noite inesquecível, os pastores voltam para a sua atividade rotineira, cuidar de ovelhas e de cabras de outros. O que é que mudou na vida deles? Aparentemente não abandonaram seu trabalho e suas famílias. O v. 20 afirma que voltaram glorificando e louvando a Deus. A vida dos pastores tornou-se mais alegre com a vinda do seu Salvador. Também nisto eles espelham a comunidade cristã!?

4. A Caminho da Prédica

A história de Natal é benquista pelas comunidades também por ser uma narrativa simples, com calor humano e um profundo significado. Ela tem conseguido dar respostas a dúvidas e angústias humanas no passado e continua dando-as no presente. Isto ocorre, em especial, quando a comunidade consegue identificar-se com os personagens em favor dos quais Deus age. O Deus próximo, o Deus por nós, o Deus conosco: esta é a mensagem e a experiência natalinas para Iodos — mesmo para os que vêm somente por ocasião do culto de Natal.

A pregação poderia tentar promover a identificação da comunidade com os personagens da história. O mesmo episódio relatado por Lucas poderia ser contado da boca e perspectiva de José, Maria, um animal, um pastor, alguém que ouviu a mensagem dos pastores ou o dono de uma casa. Em cada depoimento poderia ser considerado:

— o que houve de bem normal e o que os olhos da fé viram como algo extraordinário;

— em que situação cada um se encontra e como é sentida a necessidade de um Salvador (ou não precisamos mais de nenhum?)

— como o acontecimento mudou/não mudou a pessoa.

Os relatos dos diversos personagens pretendem trazer as preocupações de segmentos da comunidade atual para dentro da narrativa natalina. Portanto, eles deveriam ser narrados na primeira pessoa (Quando eu estava no campo...). O ideal seria que alguns membros da comunidade pudessem participar da elaboração dos depoimentos e da leitura dos mesmos durante o culto.

5. Bibliografia

GUIMARÃES ROSA, J. Grande Sertão: Veredas. 7. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1970.
KAICK, B. van. Meditação sobre Natal: Lucas 2,1-20. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1978. vol. III, pp. 339-50.
MESTERS, C. Maria, a Mãe de Jesus. 1. ed. Petrópolis, Vozes, 1987.
WITT, O. Meditação sobre Natal: Lucas 2.1-20. In: Proclamar Libertação. São Leo¬poldo, Sinodal, 1991. vol. XVII, pp. 28-33.


 


Autor(a): Nelson Kilpp
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Natal

Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 2 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 20
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1995 / Volume: 21
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14229
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