Mateus 14.13-21

Auxílio Homilético

11/08/1996

Prédica: Mateus 14.13-21
Leituras: Isaías 55.1-5 e Romanos 8.35-39
Autor: Valdir Frank
Data Litúrgica: 11º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 11/08/1996
Proclamar Libertação - Volume: XXI


1. Todos Comeram e Se Fartaram — uma Utopia?

Estamos diante de um texto bíblico que nos impulsiona para um ideal, para um sonho, para uma utopia. Quem não desejaria ver concretizada a palavra todos creram e se fartaram? E ainda mais quando o texto aponta para a sobra de comida, após crianças, mulheres e homens estarem fartos (v. 20)? No início percebemos a fome e a enfermidade. O desfecho do texto se dá num conjunto que espelha fartura. Acontece compaixão com os/as que sofrem de enfermidades. Ninguém fica com fome. Enfermidade e fome passam. Já não existem mais. Os sinais de morte já não têm a última palavra. Uma nova palavra, um novo gesto, uma nova proposta tomam espaço. Á experiência da partilha proporciona espaço para a vida em meio a um contexto que produz enfermidades.

Estes e outros aspectos até aqui levantados têm a ver com Jesus Cristo, sua pessoa e sua proposta. É o que percebemos em todo o texto. Aliás, não é por acaso que também o Evangelho de Mateus é relato a respeito da boa nova, a boa notícia trazida por Jesus. Vamos ao texto.

2. Interpretando o Texto

V. 13: Jesus ouve a notícia da morte de João Batista, que ocorreu no palácio de Herodes. São os discípulos de João Batista que vão anunciar o ocorrido a Jesus (v. 12). Chama a atenção o estreito vínculo que se estabelece entre os discípulos de João Batista e Jesus. O retirou-se dali parece indicar claramente uma estratégia de Jesus. Não enfrenta sozinho o poder constituído que mata. Sabe de sua força destruidora no confronto direto. Este retirar-se para um lugar deserto, além de evocar o AT (saída do Egito), aponta para fora da cidade. Esta é a sede do poder constituído, que mata João Batista. Por outro lado, é dela que sai a multidão que segue Jesus. O texto não diz por que essas pessoas estavam na cidade. Porem podemos imaginar que o processo concentrador e marginaliza-dor do Império Romano tenha produzido essa multidão que vivia como mendiga na cidade. Os meios de produção há tempo não lhes pertenciam mais. Suas terras eram de outros. Depreendemos, assim, que trata-se de gente expropriada depen¬dente das migalhas do império. Certamente movidas por seu anseio por uma vida digna, seguem Jesus.

V. 14: Ao desembarcar, Jesus vê a multidão, se compadece dela e cura seus enfermos. Este versículo sinaliza de forma clara que viver das migalhas do império, ser desapropriado e marginalizado produz enfermidade. Num sistema escravista e de dependência se tem o acúmulo que gera essa miséria e esse sofrimento na multidão. A enfermidade vem como consequência disso. A situa¬ção é de carência e sofrimento. E Jesus vê a situação do povo. Diante desta realidade se manifesta a sua compaixão. Lembramos o vi a aflição do meu povo (Êx 3.7). A este ochlos (povo comum, povão) se dirige a misericórdia de Deus através da compaixão de Jesus (conforme Mt 9.36).

V. 15: Diante da multidão com seus enfermos aparece a preocupação dos discípulos. É tarde e o local é deserto. Como vai ficar com a comida? Como resolver este impasse? Quem será o responsável para que haja comida? Diante do impasse, aconselham Jesus a despedir a multidão. Neste momento a multidão 6 o centro da conversa. Os discípulos propõem como saída a compra de comida nas aldeias. Este comprar pressupõe um sistema económico em que alguém detém o produto que poderá ser adquirido mediante a troca por uma moeda. Porém aqui podemos deduzir que nem este meio a multidão possuía em suas mãos. Caso estivesse de posse dele, com certeza não estaria enferma.

V. 16: Vem a reação de Jesus à proposta dos discípulos. Sua reação vem como desafio: Dai-lhes vós mesmos de comer. Há pouco (v. 15) os discípulos haviam proposto como saída despedir a multidão. Hoje diríamos que eles sugeriram uma saída individualista, em que cada um/a vai se virar sozinho/a (comprem para si).

Agora Jesus lança este desafio que parece complicar a vida dos discípulos. Seria bem mais fácil mandar a multidão embora, evitando, assim, maior amolação. Para Jesus, porém, a multidão não precisa se retirar. É possível comer onde se está. É possível alimentar a multidão.

Estaria Jesus ensinando a multidão, dizendo: É justamente aí, bem próximo de vocês que está a comida. Não é necessário se distanciar dela, pois vocês a produzem. Não a precisam mendigar. Usufruam do alimento que é produzido por vocês mesmos. Comam dele!

V. 17: Vem a resposta dos discípulos: Temos somente cinco pães e dois peixes. Aqui estamos, sem dúvida, diante de dois números simbólicos. Somados perfazem sete, o que indica totalidade/plenitude. Na reação dos discípulos percebe-se que ainda não houve rompimento com a ideologia do comprar para si (saída individualista).

V. 18: Jesus solicita que lhe tragam os pães e os peixes. Aqui temos dois alimentos básicos para o povo.

V. 19: Agora Jesus aponta o caminho. Inverte a proposta inicial dos discípulos. Ao invés de mandar a multidão embora, para que, indo pelas aldeias, comprem para si o que comer (v. 16), ele a organiza. Ordena que a multidão se assente sobre a relva. Toma os pães e peixes e, erguendo os olhos ao céu, os abençoou. Neste gesto Jesus segue um costume judaico; toda refeição tinha caráter religioso e realizava-se numa atmosfera de bênção. O mesmo acontece no partir dos pães, pois, segundo o costume, este partir expressa o início da refeição. Neste ato os pães não eram cortados, mas sim partidos com a mão. Comer pão com alguém significava, sobretudo, firmar uma aliança estabelecida.

Além disso, o que mais chama a atenção neste versículo é que os discípulos são envolvidos na distribuição de alimento. Participam na organização do povo. Desempenham uma função de serviço na partilha do pão. São desafiados a fazer parte de uma nova prática proposta por Jesus. O povo está sendo organizado de um jeito novo. Este projeto de servir, de saciar a fome é colocado nas mãos dos discípulos e do povo que produz e partilha o que, na verdade, é fruto do seu próprio trabalho, compreendido e aceito como dádiva de Deus, que faz com que o grão nasça da terra.

V. 20: A multidão está organizada de tal forma que o plano e o projeto de partilha tornam possível que todos e todas comam e se fartem. E ainda sobraram 12 cestos cheios, que foram recolhidos. Portanto, há sobra. A constatação desta sobra, simbolizada mais uma vez pelo número 12, indica também totalidade/ plenitude, que quer significar que nada do que Deus deu poderá ficar perdido. Não acontece desperdício. Tudo é aproveitado.

V. 21: Este versículo retoma a ideia da multidão, porém concretiza-a com o número de 5 mil homens e menciona expressamente a participação de mulheres e crianças. Considerando-se a marginalização que sofriam mulheres e crianças na época, aqui se sinaliza de forma contundente que no projeto da partilha proposta por Jesus ninguém fica marginalizado ou marginalizada. Todos e todas, mulheres, crianças e homens participam, comem e se fartam.


3. Sugestões Práticas

3.1. Comparando Mt 14.1-12 e Mt 14.13-21

Num primeiro momento sugiro o exercício de comparação/confronto entre os dois textos. Seria um espaço onde deixamos fluir, sem grandes pretensões, os pensamentos que vão aparecendo. Creio que este exercício abre horizontes para o uso do texto previsto. Compartilho algumas ideias que me vieram à mente neste exercício:

Palácio x deserto; cidade x deserto; matança x vida; acúmulo x partilha; pequeno grupo x multidão; mulheres e jovens objeto x mulheres e crianças participando; banquete x aflição; comilança x fome; desejo de matar x desejo de saciar a fome; poder/poder x poder/serviço; corpos destruídos x corpos saciados; festa de aniversário de Herodes x festa popular; Herodes é servido x Jesus serve; ordens para a morte x ordens para a vida; os que servem ficam distantes x os que servem se misturam na multidão; Herodes teme a organização x Jesus fortalece a organização; ideologia comercial x ideologia da partilha; pobres não interessam (exclusão) x pobres e doentes interessam (inclusão); falta de vínculo com as necessidades do povo x presença de vínculo com as necessidades do povo; festa que coopta e obscurece o conflito social x festa que ajuda a perceber a realidade e desmascara a ideologia dominante; festa que desarticula e desorganiza x festa que articula e organiza; liderança com vínculos restritos (centralização) x liderança com vínculos populares; e...

3.2. O Uso do Texto e a Liturgia

Quanto ao uso do texto, sugiro que se priorize um outro aspecto que possa contribuir na caminhada do grupo ou da comunidade, inclusive em sua dimensão ecuménica. As enfermidades do povo também hoje perpassam as igrejas. Além do mais, há necessidade de um constante questionamento quanto ao futuro do trabalho também numa política neoliberal. O plano real, por si só, não pode encobrir as causas que continuam criando enfermidades no povo hoje.

As características desse Deus que tem compaixão do seu povo sinalizam o rumo da missão da comunidade que deseja estar a serviço deste Deus no mundo. Isto implica determinada visão de economia, ideologia, etc., que desta ou daquela forma condicionam a compreensão e o cumprimento de nossa tarefa missionária.

Quanto à liturgia, sugiro o uso de um versículo dos textos previstos (Is 55.1-5; Rm 8.35-39) como palavra de intróito e de absolvição. Na oração inicial e na de intercessão, priorizaria aspectos que dão esperança e ânimo nessa utopia que os próprios textos despertam em nós. Aqui me parece muito interessante e motivador o trecho de Is 55.1-5.

4. Bibliografia

SCIIWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Matthäus. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprccht. 1973.
TRILLING, Wolfgang. O Evangelho segundo Mateus. Petrópolis, Vozes, 1968.
ESTUDOS BÍBLICOS. O Evangelho de Mateus. Petrópolis, Vozes; São Bernardo do Campo, Imprensa Metodista; São Leopoldo, Sinodal.


Autor(a): Valdir Frank
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 11º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 14 / Versículo Inicial: 13 / Versículo Final: 21
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1995 / Volume: 21
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14255
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