Lucas 6.36-42

Auxílio homilético

08/07/1979

Prédica: Lucas 6.36-42
Autor: Klaus van der Grijp
Data Litúrgica: 4º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 08/07/1979
Proclamar Libertação - Volume: IV


I — Considerações exegéticas

Apesar das edições modernas da Bíblia dividirem o nosso texto em várias perícopes, na concepção de Lucas ele representa uma unidade. O v.36 destaca-se do verso anterior pela ausência de um copulativo (asyndeton ou desconexão sintática), enquanto que o não julgueis do v.37, no texto original, é ligado por um KAI com a exortação precedente. Com os vv.39-40 parece começar um novo pensamento, mas os versículos seguintes retomam a proibição do juízo temerário, formulado já em 37-38. Aliás também o nexo entre os vv.39-40 e 41-42 é bem firme, sendo que ambas as unidades devem ter formado parte de uma coletânea de LOGIA antifarisaicos, anterior à redação por Lucas (argumentação em Schürmann, pp. 369-371). O fato de os vv.39-40 não aparecerem na paralela Mt 7,1-5. mas em outros contextos (Mt 15,14; 10,24-25) demonstra apenas a propensão sistematizadora de Mateus, que classificava com seus critérios o que originalmente era um bloco coerente.

Com a exortação de ser misericordioso como é misericordioso vosso Pai, o v.36 toca no pensamento judaico da imitação de Deus. A paralela Mt 5,48 diz: Sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste. Mas Lucas, segundo veremos adiante, tem interesse em evitar a noção de perfeccionismo moral. E embora a palavra misericordioso, que ele usa (OIKTIRMON), aparece poucas vezes no Novo Testamento com relação a Deus (fora deste lugar apenas Tg 5,11), o conceito como tal é básico para se compreender o Deus da Bíblia. Esta misericórdia desdobra-se nos versículos seguintes em duas direções: de um lado, o perdão; de outro lado, a generosidade. Nos dois casos o comportamento humano é relacionado com o agir de Deus no juízo final, ao que aludem, tacitamente, as formas passivas sereis julgados, etc.; não como se o nosso comportamento pudesse condicionar o agir de Deus, mas sim no sentido de a consciência da nossa culpa e da misericórdia divina provocar em nós uma atitude correspondente. O que vale do perdão ao próximo, vale também do dar: não se trata de uma transação, de um dar para receber em troca, mas da exortação a uma generosidade ilimitada. Uma medida bem cheia nos será jogada EIS TON KOLPON, na dobra da saia ou do avental - uma imagem bem frequente no Antigo Testamento (2 Sm 12.8; Is 65.7; Jr 32.18; SI 79.12).

Nos vv.39ss trata-se, como já observamos, de uma sequência de ditos originalmente antifarisaicos, que, na redação de Lucas, devem ter ganhado nova atualidade diante de um outro tipo de falsos mestres com que a Igreja se defrontava no fim da era apostólica. Os que se gabavam de saber HODÉGEIN, mostrar o caminho ao povo cego, são eles mesmos obcecados, e o resultado será desastroso. Na tradição judaica, ensinar era basicamente reproduzir os conteúdos recebidos dos antepassados. Pretender estar acima do seu mestre era um absurdo. Aplicado aos falsos mestres cristãos isso quer dizer: não são dignos de fé aqueles que pretendem ensinar algo além (HYPER) dos ensinamentos de Jesus Outra característica judaica era seu perfeccionismo moral. Eles eram conhecidos por criticarem os seus próximos com base em normas por eles mesmos inventadas. Daí a parábola do argueiro e da trave, que, ridicularizando até ao grotesco o proceder daqueles mestres, prega em última análise uma atitude de misericórdia e de penitência como a que já foi recomendada nos vv.36-38. O apelo com que o nosso texto termina, formulado no imperativo singular, não vai dirigido apenas aos falsos mestres, mas pretende ser uma regra da convivência cristã no sentido mais amplo. Ser compreensivo para com os erros de um irmão é mais importante do que aspirar à perfeição e, no entanto, esquecer a humildade diante de Deus.

II — Atualização

(1) O que significa, no contexto em que vivemos, o preceito de não julgar? À primeira vista parece um mero apelo à tolerância, a deixarmos a cada um com as suas faltas, uma vez que ninguém de nós é perfeito. Seria, então, um apelo bem condizente com o génio do nosso povo. Afirma-se que o brasileiro é tolerante por natureza; ele está acostumado a viver numa sociedade pluralista, onde cada um se vira como pode. Nesse sentido, querer tirar o argueiro do olho do nosso próximo não seria para nós uma grande tentação. A mesma coisa vale com respeito à nossa vida eclesial. A IECLB é uma igreja onde cada grupo, cada linha pastoral ou teológica aprendeu a viver em simbiose com outros grupos e linhas. O preceito de não julgar nem condenar, formulado nesta perícope, poderia ser entendido como a justificação bíblica da nossa práxis. Mas - será mesmo esse tipo de tolerância que Cristo exige de nós? Precisamente no contexto brasileiro, onde as relações entre os diversos grupos da população dão lugar a tanta injustiça, a tamanho sofrimento, não deveríamos antes ser conclamados a adotar uma atitude contrária, uma atitude de crítica penetrante, de denúncia, de condenação em nome do Evangelho? Se admitirmos isso, será necessário cavar mais fundo no nosso texto para lhe compreender a verdadeira intenção.

(2) Menos dificuldade teremos para entender a palavra de Jesus sobre a generosidade. Como precisamos dessa admoestação! Dar sem calcular os lucros vai contra as normas de uma sociedade em desenvolvimento, onde cada investimento é feito para crescer, e onde o crescer se considera como condição indispensável para a sobrevivência. Quem depende da generosidade dos outros, dificilmente ganhará no nosso meio uma medida recalcada, sacudi-da, transbordante; ao contrário, ele se sabe condenado a viver para sempre na margem da sociedade. Quem se dedica à beneficência, costuma fazê-lo para reforçar a sua projeção social, como acontece com certos clubes de elite, que colocam uma placa de identificação nas construções que eles doaram para fins caritativos. E nas nossas comunidades evangélicas? Ali conseguimos ser generosos? Churrascos sociais, chás de beneficência e bazares têm que ser organizados para motivar os nossos membros a dar alguma coisa aos pobres. E quando a igreja pede as nossas contribuições para fins que não redundam diretamente em nosso benefício, começamos logo a protestar. Qual a medida com que medimos?

(3) Tão desconcertantes são os nossos problemas, que nos inclinamos a dar ouvidos a qualquer um que pretende sugerir-nos uma solução. E não são poucos os que hoje em dia recomendam as suas soluções ao povo desorientado, no plano político, financeiro, médico, religioso. Abundam os exemplos disso. O partido que brada os seus slogans, o banco que recomenda as suas cadernetas de poupança, o milagreiro que pratica as suas curas divinas, o pregador que nos promete sucessos verificáveis se aceitarmos a sua mensagem. São soluções dentro do sistema, que nem afetam o sistema nem pretendem afetá-lo. Mas se o próprio sistema é determinado pela cegueira? Então um cego guia a outro cego, e ambos cairão no barranco! Se não nos for facilitada uma orientação qualitativamente diferente do sistema mesmo, onde encontraremos a chave para uma real transformação?

(4) A solução dificilmente pode estar em acumular doutrinas e práticas sofisticadas. Muitos buscam a felicidade tentando achar alguma coisa além ou acima do que eles já possuíam. O nosso texto nos ensina algo diferente: O discípulo não está acima do seu mestre. Na situação da Igreja para a qual Lucas escreveu o seu evangelho, isso queria dizer que o erro dos falsos mestres estava em quererem saber coisas acima de Jesus Cristo. Eram mestres que complicavam a vida. A nossa vida também se torna cada vez mais complicada. Nada acima do Mestre é uma chamada a percorrer o caminho em sentido inverso: da complicação para a simplicidade, dos muitos preceitos para a vivência imediata. Atrever-nos-emos, em meio à nossa situação embaraçosa, a converter-nos para um modo-de-ser humilde, direto, inequívoco?

(5) Jesus vivia essa simplicidade como nenhum outro. Segundo o testemunho dos quatro evangelhos, ele falava às pessoas de uma maneira espontânea, surpreendente, a partir das experiências do dia-a-dia. Confrontava-as assim com o que mais de perto as tocava: o juízo de Deus, o advento do Reino, aquele valor supremo que se erigia em norma de todos os demais valores. É o que vemos no nosso texto. De um modo bem direto, o nosso proceder ao longo desta vida é relacionado com o proceder de Deus no juízo. Quem hoje se julga ser o sujeito dos seus atos, deve saber que em breve ele será objeto do agir de Deus. Daí a inversão das formas verbais do ativo para o passivo: sereis julgados, condenados, perdoados, vos medirão (ANTIMETRETHESETAI é passivo também). Esta inversão gramatical é uma coisa espantosa. Cada ato, cada procedimento nosso volta para nós mesmos num nível de realidade que nos atinge imediatamente. E quando isso acontece, os nossos atos nos deixam inermes, pobres, nus diante do espelho da nossa consciência. Mostram-nos que precisamos de anistia, de perdão, que somos como aquele hipócrita que precisava que alguém lhe tirasse a trave do olho.

(6) As nossas necessidades são, deste modo, reduzidas a Deus mesmo, a fonte de todo o bem. Ele é misericordioso, compreensivo, clemente, generoso, e nós não podemos almejar outra coisa senão que os nossos atos sejam um reflexo daquelas qualidades divinas. Sede santos, porque eu sou santo, diz a Bíblia em outro lugar. A nossa vida cristã deve ser compreendida como uma imitação de Deus. Para o pregador é importante não apenas proclamar esta verdade, mas também perguntar-se qual a atitude espiritual que com ela corresponde. Não pode tratar-se de uma identificação humana, assim como, na imitação de Cristo, há quem se faz a pergunta: Como é que Jesus agiria no meu caso? Pode tratar-se, sim, de uma abertura do nosso ser diante de Deus, como a flor que se abre ao sol e, recebendo dele a luz, irradia beleza. Ha outras maneiras de abordar a questão, conforme a nossa posição subjetiva. Mas para o membro da comunidade é essencial que estas coisas fundamentais sejam formuladas, e não apenas pressupostas, na prédica e no contato pastoral.

(7) Teoricamente admitimos, pois, um movimento que parte de Deus e se comunica ao homem. Praticamente, porém, esta hipótese pode ser inoperante, uma vez que poucas pessoas têm uma experiência direta com Deus. Apenas os seres humanos nos medeiam um encontro concreto. E a nos, como seres humanos, vai dirigida a exortação: Sede misericordiosos! Não julgueis! Não condeneis! Perdoai! Dai! Na medida em que nós exercitamos estas virtudes, outros poderão vislumbrar o mistério da misericórdia de Deus que se oculta detrás delas. A misericórdia renovadora e transformadora de Deus torna-se operante, onde um ser humano vive esta misericórdia na atitude para com o seu próximo. Se já passamos pela experiência de nos saber aceitos, perdoados por outra pessoa, se já nos confrontamos com alguém que, em vez de julgar e condenar, em vez de pretender tirar o argueiro do nosso olho. se mostrou simplesmente compreensivo com as nossas fraquezas, se alguém já nos deu generosamente a sua afeição sem segundas intenções, então teremos ipso facto um acesso à misericórdia divina. E somos chamados a adotar esta mesma atitude perante aqueles que Deus quiser deparar no nosso caminho.

(8) Portanto a exortação a não julgar dista muito de ser uma exortação à passividade, a uma tolerância desengajada, a uma mera simbiose com indivíduos ou grupos de diferentes convicções. Na medida em que esta atitude refletir uma autêntica misericórdia e se basear numa vida humilde e penitente, ela será altamente ativa. Ela introduzirá para dentro do sistema fechado da nossa sociedade um elemento qualitativamente novo. E o ser de Deus que entrará no mundo dos homens, traduzido em termos do nosso ser. Teremos que observar com atenção o mundo em nosso redor, para reconhecer as situações em que podemos viver misericórdia. Nesse nível uma crítica penetrante não se exclui, mas se pressupõe. Teremos que descobrir e valorizar os sinais de generosidade que aparecem neste nosso Brasil, entre os pobres talvez bem mais do que entre os ricos, e tomar consciência de que somente a partir de uma tal atitude o impasse da nossa sociedade será superado. Teremos que compreender a Igreja como o lugar onde a misericórdia divina se encarna, se realiza de um modo paradigmático, em beneficio da sociedade global, e trabalhar para que isso aconteça.

III — Sugestões para a prédica

O nosso texto é singularmente rico em perspectivas, e há muitas maneiras de pregar sobre ele. Talvez nem todos os aspectos acima abordados possam convergir numa mesma prédica. Mesmo assim seria bom que aparecessem os pontos seguintes:

(1) Uma problematização do texto, que, por ser muito conhecido - também pela paralela Mt 7.1-5 - pode parecer demasiado óbvio na primeira abordagem.

(2) Ressaltar um conceito-chave para a compreensão do conjunto. Este conceito poderia ser encontrado no v.40, na admoestação de não querer saber nada acima do mestre, ou seja, no apeio à simplicidade. Poderia ser encontrado, também, na tácita confrontação com o juízo de Deus, como ela aparece nos vv.37-38.

(3) Mostrar as consequências práticas que, a partir de uma verdade centrai, se apresentam para a vida da comunidade. Neste ponto o pregador pode ser bem concreto, sempre que e!e julgar que os ouvintes o acompanharão nas suas análises.

IV — Bibliografia

- SCHUERMANN, Heinz. Das Lukasevangelium. Freiburg. 1969.
- RENGSTORF, Karl Heinrich. Das Evangelium nach Lukas. Göttingen. 1969.
- SCHMID, Josef. El Evangelio según san Lucas. Barcelona. 1973.
- GRUNDMANN. Walter. Das Evangelium nach Lukas. Berlin. 1974.
- GOERL. O. A. Estudo homilético sobre Lc 6.36-42. In: Igreja Luterana 1965. Pp. 110-124.
- WENDEBOURG, Ernst-Wilhelm. Die bessere Gerechtigkeit: L k 6.36-42. In: Calwer Predigthilfen. Vol. 11. Stuttgart, 1972. pp. 329-333.
- GEHRKE. Helmut. W1NTZER. Friedrich. Der Selbstbetrug des doppelten Masses: Lk 6.36-42. In: Predigtstudien 1972/3. Stuttgart,1973. pp.124-129.


Autor(a): Klaus van der Grijp
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 5º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 6 / Versículo Inicial: 36 / Versículo Final: 42
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1979 / Volume: 4
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14588
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