Mateus 6.16-18

Auxílio homilético

29/07/1979

Prédica: Mateus 6.16-18
Autor: Roberto E. Zwetsch
Data Litúrgica: 7º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 29/07/1979
Proclamar Libertação - Volume: IV

 

ACERCA DO JEJUM

I — Preliminares

O tema é o jejum. Sem dúvida, uma prática pouco comum entre luteranos. Arguindo alguns colegas pastores a respeito da prática do jejum nas comunidades da igreja, pude verificar que ela é praticamente nula. A Igreja Católica recomenda o jejum para a sexta-feira santa. Mas também os católicos não mais o observam. Foi partindo do fato da ausência do jejum na vida dos cristãos de nossos dias, que comecei a refletir em torno de alguns problemas que deveriam nortear este pequeno trabalho.

Para início de conversa, algumas dificuldades. O texto para a prédica faz parte do Sermão do Monte, sobre o qual muito já se tem escrito, comentado e pregado. Quiçá seja um dos textos bíblicos mais conhecidos de todas as pessoas. A regra de ouro é de conhecimento praticamente universal: Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, porque isto é a Lei e os Profetas (Mt 7.12). Ou a primeira petição do Pai Nosso: O pão nosso de cada dia nos dá hoje (Mt 6.11). Tal fato por si só nos coloca diante de inúmeras interpretações impossíveis de serem abarcadas aqui. Necessariamente, tenho de me limitar àquilo que está à mão, que é a literatura. Com isto, já advirto para a provisoriedade das reflexões aqui expostas. Além disso, gostaria de chamar a atenção para as interpretações que não estão escritas, mas que andam de boca em boca, pois imagino ser fundamental atentar para esta tradição popular, caso se queira dizer algo de valor para a vida dos ouvintes.

Assim, é preciso observar se o jejum, mesmo que não observado como prática religiosa, é conhecido, o que se diz dele, como as pessoas o encaram e como vêem aquelas que eventualmente o praticam.

De minha parte, contemplando a realidade da nossa gente, refiro-me ao povo trabalhador, da cidade e do campo, imagino que ela reagiria com estranheza a uma proposta de jejum. Por sua vez, os famintos considerariam tal proposta uma afronta!

Prosseguindo, verifico que há um jejum político. A greve de fome, usada como arma para fazer frente a uma situação política insustentável. É o que se deu recentemente na Bolívia, onde quatro mulheres deram início a uma greve de fome, que logo se estendeu por todo o país, obrigando o governo do ditador Hugo Banzer a recuar e prometer eleições para 78. A esta altura, Banzer já renunciou. Filemón Escóbar, um dos principais líderes mineiros bolivianos, explicava a greve da seguinte forma: Não se trata de utilizar a greve de fome em qualquer situação política. Num momento de absoluta repressão ela seria sem dúvida derrotada. Mas esta greve de fome, numa situação política de marcha, se funde imediatamente com as mobilizações de massas. Isto explica porque esta greve de fome, iniciada por quatro senhoras se transformou num triunfo. (Jornal VERSUS, maio/junho-78).

Um exemplo do Brasil. No dia 17 de abril de 1978. começou em Pernambuco uma das maiores greves de fome já realizadas nos últimos anos no Brasil. Rapidamente, a greve de fome se alastrou por outras seis penitenciárias do Rio, São Paulo e Bahia, somando no final 76 presos políticos, enquadrados na Lei de Segurança Nacional. O objetivo: pressionar o governo a quebrar o isolamento carcerário a que estavam submetidos Carlos Alberto Soares e Rholine Cavalcanti, que cumprem prisão perpétua na Ilha de Itamaracá (PE). Os dois há 30 meses só deixavam suas celas duas horas por dia, para tomar sol, separados. Triunfou. O isolamento foi quebrado. Um dos grevistas chamado Paulo explica as razões de sua luta: Estamos numa greve política, de solidariedade... A gente se mantém por uma opção ideológica, pelas posições que considera justas. No caso da greve de fome. claro que não é boa coisa. Eu sinto vontade de comer, sim, mas não como, pela compreensão da justeza da luta, pois o abandono da greve significa entregar os pontos da opção política. Ele arremata: A greve de fome é sempre o ultimo recurso que o preso tem frente à intransigência das autoridades. (Jornal EM TEMPO, 8-14 maio/78).

Ë tendo presente esta realidade contraditória que passo à reflexão do texto de Mateus, no qual Jesus chama a um jejum secreto, oculto e pessoal, como um ato que diz respeito apenas ao Pai e ao discípulo. Assim Jesus se coloca polemicamente contra o jejum da piedade farisaica de seus contemporâneos.

II – Texto

Quando, pois, jejuardes, não façais com ar triste como os hipócritas. Eles melancolicamente desfiguram os seus rostos para mostrarem aos homens que estão jejuando. Em verdade vos digo: Eles já receberam a sua recompensa.

Tu, porém, quando jejuares, unge a tua cabeça e lava o teu rosto.

para não mostrares aos homens que estás jejuando, mas a teu Pai que está presente, em secreto. E o teu Pai que vê em secreto, te recompensará.

O autor do evangelho é um judeu convertido, que gozou de uma formação de escriba, sabendo contudo empregá-la como escriba versado no Reino dos Céus (Mt 13.52), isto é, trata-se de um discípulo de Jesus que quer testemunhar o Evangelho a uma comunidade de judeus conversos, provavelmente da Síria, lá pelo ano 90 a.C Os leitores de Mateus, portanto, são gente habituada ao contato com a Escritura, conhecendo os costumes e práticas da piedade judaica, bem como a importância da interpretação das Escrituras. Como escriba, Mateus segue um método didático de apresentação da mensagem, reunindo frases e pronunciamentos de Jesus em grandes discursos, a modo de prédicas, nos quais focaliza temas centrais da vida cristã, como por exemplo o Sermão do Monte (caps.5-7), onde caracteriza a vida do cristão como uma bem-aventurada perseguição (Mt 5.10ss). Outro discurso temos nos caps.9-11 sobre a Missão dos discípulos, o discurso das Parábolas no cap. 13. etc.

O tema de Mateus é o discipulado. Ele chama a atenção para o fato de que a vida do discípulo é um seguimento ativo do Mestre. Mateus insiste na prática do amor. O amor qualifica a vida e o seguimento do discípulo. Trata-se, porém, de um amor radical: se a vossa justiça não excede a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus (5.20). Em Mateus, Jesus não só cumpre cabalmente a Lei, como a radicaliza. Só o amor cumpre a Lei, e este amor é amor ao inimigo (Mt 5.43). É incondicional.

O contexto imediato do nosso texto é o Sermão do Monte O cap. 5 versa sobre o extraordinário da vida cristã (v.47). O cap.6, que vai nos interessar mais de perto, trata do caráter oculto da vida cristã. O cap.7 trata da separação escatológica da comunidade dos discípulos em relação aos infiéis.

III - Sermão do Monte (SM)

Das interpretações do SM que se fizeram no passado, destaco a da ortodoxia luterana que, ao contrário da interpretação católica tradicional, compreende a exigência radical de Jesus como válida para todos os cristãos. A teologia católica tradicional fazia uma distinção entre os perfeitos que se submetiam a uma vida ascética podendo cumprir os mandamentos radicais de Jesus, enquanto os demais cristãos (de segunda classe) se atinham à observância dos Dez mandamentos. A interpretação luterana tradicional entende o SM como um chamado ao arrependimento e um espelho para a confissão. Diante dele o homem deve dizer: sou incapaz para tanto. O homem é convencido do seu pecado, da sua incapacidade radical de praticar o bem. Em contrapartida, somente Cristo cumpriu vicariamente para todos a exigência absoluta do SM.

O problema de tal interpretação consiste justamente no fato de ignorar que o SM em nenhum lugar supõe a incapacidade do homem, mas ao contrário exige atos de amor, cumprimento efetivo da vontade de Deus, requer ação (Wendland). Aquele que praticar estas palavras este é o homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha (Mt 7,24). É certo que o chamamento de Jesus sustenta tal prática, mas justamente contra um luteranismo fácil, tranquilo, da justificação pela fé somente entendida passivamente, linearmente como uma graça barata (Bonhoeffer), o SM propõe a graça cara, o cumprimento do extraordinário, daquilo que não está posto na ordem natural das coisas, exige ações minoritárias qualitativamente libertadoras (Segundo), um amor eficaz. Tal exigência ocorre aos bem-aventurados, aos atingidos pela mensagem de salvação de que o reinado de Deus se aproxima dos pobres e miseráveis, dos humildes, dos que têm fome e sede da justiça de Deus (Wendland). Acrescente-se que o cumprimento das exigências de Jesus só se concretiza no seguimento do próprio Jesus (Bonhoeffer), isto é, na caminhada de libertação com o povo de Deus (Mesters), um processo inacabado, mas radical, no qual o discípulo, deixando tudo para trás, segue com Jesus o caminho da cruz.

IV - Do Jejum certo

O texto é polêmico, como já dissemos. Ele é inserido no contexto da discussão sobre a verdadeira justiça diante de Deus. Portanto, esta não existe para ser vista como obra piedosa pêlos homens (Mt 6.1). Jesus polemiza com os hipócritas, os fariseus, os homens piedosos daquele tempo. Para os judeus as principais obras piedosas eram três: a esmola (vv.2-4), a oração (vv.5.6) e o jejum (vv.16-18). O jejum é uma parte importante da tradição da piedade judaica. A lei judaica previa pelo menos um dia nacional de jejum: o dia da festa solene da Expiação. Contudo, desde épocas antigas, pessoas isoladas observavam por vontade própria certos jejuns, principalmente depois do exílio babilónico. Já no tempo de Jesus, registra-se que um fariseu zeloso jejuava duas vezes por semana (Lc 18.12). Depois, sabe-se que tanto a igreja primitiva como Paulo jejuavam com frequência (At 13.2-3; 2 Co 11.27). Este jejum se limitava a um só dia, durando até o anoitecer. O jejum tinha por objetivo implorar a ajuda de Deus, tanto diante de catástrofes como de decisões importantes a serem tomadas. A este jejum se atribuía um valor efetivo. O valor do jejum dependia da intenção e das disposições de quem jejuava. Com o tempo, se atribuiu um valor independente das disposições pessoais. Foi contra este erro que se levantaram energicamente os profetas: se não vai acompanhado pelo desejo de ordenar a vida segundo os mandamentos de Deus, o jejum carece de valor (Jr 14,12). O segundo Isaías faz uma reinterpretação impressionante do jejum, no tempo do exílio (Is 58). No mais legítimo tom profético, acusa. Eis que no dia em que jejuais cuidais dos vossos próprios interesses e exigis que se faça todo vosso trabalho (v.3). E pergunta: Porventura, não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desabrigados, e se vires o nu, o cubras, e não te escondas do teu semelhante? (vv.6.7).

Nos sinóticos, aparece uma controvérsia importante entre os fariseus, os discípulos de João e Jesus (Mt 9.14ss; Lc 5.33ss; Mc 2.18ss). Aí os fariseus e os discípulos de João vêm indignados até Jesus e perguntam: Por que os discípulos de João e os dos fariseus jejuam e os teus não?. Ou seja, a Lei vale ou não vale. A resposta de Jesus é desconcertante. Ele chama para si a responsabilidade: Enquanto o esposo estiver com eles, não podem jejuar. Dias virão, porém, em que o esposo lhes será tirado; então, sim, jejuarão. Jesus redefine a Lei a partir de si. Sem negá-la, o que é paradoxal. A piedade formal recebe aí um golpe fatal, pois Jesus desafia para uma nova obediência, redefinida a partir de sua presença, de sua vida. Aqui se batem Lei e Evangelho. Ambos requerem obediência. Uma que eu diria obediência formal, linear, matemática, a obediência da Lei. Outra que chamaria pessoal, extraordinária, espiritual, amorosa, pois que é segundo o amor libertador de Cristo.

Assim, quando Jesus em nosso texto chama ao jejum oculto, secreto, temos aí Evangelho, e não Lei (Jeremias). Este oculto do jejum é evangélico, é libertador porque relativiza a piedade tradicional que quer ser vista pêlos homens. Assim como a esmola e a oração secretas, também o jejum na presença secreta do Pai recoloca a questão da graça de Deus como encontro salvífico e não como obra de piedade. Ao jejuar secretamente, lavando o rosto e perfumando a cabeça, o discípulo afirma a liberdade e a alegria da fé. A piedade formal exemplificada pela oração-espetáculo, pelo jejum-espetáculo, pela esmola-espetáculo está errada. Tem um fim em si mesmo. Ou seja, carece da graça de Deus. A obediência livre que vem do Evangelho está aberta para o encontro secreto com Deus, não está programada, é cheia de surpresas, revela desafios, descobre tarefas. Quem jejua em secreto despoja-se da glória de ser visto. Porque mesmo o Pai vê em secreto, isto é, ocultamente. Para que ninguém se glorie diante dele.

O texto fala de dois tipos de recompensa. Aquela que o homem piedoso já recebeu ao ser visto e ser tido por piedoso, crente, salvo, santo e justo. É a auto-recompensa. Cujo autor é o próprio feitor.

A segunda, atribuída àquele que jejua certo, isto é, no âmbito da presença secreta do Pai, não é especificada. Mas pode-se afirmar a partir do contexto do SM que só pode se tratar aqui da participação efetiva no reino de Deus. De modo que a recompensa escatológica também já se faz presente para o discípulo no fato de participar já do reino que Jesus traz, anuncia e inaugura.

Pode-se observar assim uma coisa curiosa. A manifestação da graça é a um só tempo oculta e manifesta. Manifesta em Cristo, mas oculta na cruz da derrota. Manifesta na ressurreição, mas oculta ao que não crê.

O jejum secreto e pessoal coloca para nós uma questão fundamental: a graça se manifesta na obscuridade, de dentro da qual Deus vê.

V — Jejum hoje

A partir do que vimos até aqui, posso imaginar o jejum hoje apenas no âmbito da liberdade da fé e em duas situações diferentes:

a) o jejum individual - secreto, nele o discípulo de Jesus se coloca livremente no âmbito secreto da presença de Deus, despojando-se de si mesmo, colocando simultaneamente o sofrimento e a vida do seu povo como clamor diante de Deus.

b) o jejum público - é de caráter político, apresentando-se como greve de fome, o objetivo voltado para a denúncia e o protesto contra o mal que aflige os homens. Este se dirige explicitamente aos homens. Por acontecer no âmbito político, com os riscos que isto significa, é uma arma que deve ser usada com muito cuidado.

Na tensão entre o jejum privado e o jejum público como arma política, pode-se reler a observância do jejum sugerida tanto por Jesus como pelo segundo (Isaias (Is 58).

No Novo Testamento, a maioria das referências ao jejum estão no contexto de vigília e oração. Em tempos de perseguição da igreja por causa da luta pela justiça, o jejum, seja privado ou público, unido à vigília e à oração, pode se tornar ocasião de graça, de desafio, de grandes surpresas para o discípulo e a igreja de Cristo.

Permitam-me encerrar com um trecho de uma carta de Jessie Jane, presa política no Rio de Janeiro, endereçada a Carlos Alberto e Rholine, durante a greve de fome a que fiz referência no início: Além dos nossos compromissos político-ideológicos, temos também compromissos com as pessoas que amamos. Lá fora nossas famílias lutam por nós. Nossos filhos estão nascendo e crescendo, precisamos estar atentos e fortes para que eles não precisem passar esta fome que estamos passando agora. Mas mesmo que eles passem, nós precisamos estar 'atentos e fortes' para formá-los dentro do mundo em que eles estão crescendo-nascendo. Sabemos que a luta é longa. (Jornal VERSUS citado).

VI — Bibliografia

- BETTO. Frei. Cartas da Prisão. Rio. 1977
- BONHOEFFER. D. El Precio de la Gracia (Nachfolge). Salamanca. 1968.
- BRUBBCL. A. Artigo AYUNO. In: Enciclopédia de la Biblia. V.l. Barcelona. 1963.
-GALILEA. S. Contemplação e Engajamento. São Paulo. 1976.
- JERE¬MIAS. J. Sermão da Montanha. São Paulo. 1976.
- LOHSE. E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo. 1974.
- MESTERS. C. Deus, onde estás? 5a ed.. Belo Horizonte. 1976
- PESCH. W. Artigo RETRIBUICIÓN. In: Enciclopédia de la Biblia. Vol.5. Barcelona. 1963
-SEGUNDO. J. L. Massas e Minorias. São Paulo. 1975
- WENDLAND, H-D. Ética do Novo Testamento. São Leopoldo. 1974


Autor(a): Roberto Ervino Zwetsch
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 8º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 6 / Versículo Inicial: 16 / Versículo Final: 18
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1979 / Volume: 4
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14599
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Cantarei de alegria quando tocar hinos a ti, cantarei com todas as minhas forças porque tu me salvaste.
Salmo 71.23
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