Lucas 1.39-45 (46-55)

Auxílio Homilético

24/12/2000

Prédica: Lucas 1.39-45 (46-55)
Leituras: Miquéias 5.2-5 e Hebreus 10.5-10
Autor: Elaine Gleci Neuenfeldt
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação: 24/12/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXVI
Tema: Advento

1. - O tempo

Advento... espera... gravidez
Saudação, estremecimento, alegria
Espírito santo que possui... Mulher que é possuída
Bem-aventurada
Bendita
Maria e Isabel - duas mulheres, duas barrigas, duas crianças Sonhos, medos e alegrias
Visita: diálogo de mulheres. Ações de mulheres, mesmo que a casa seja dos homens
Protagonistas de tempos e espaços: a fala, os gestos, o silêncio, o abraço, o corpo, a boca, as barrigas, são delas
Dispor-se e ir apressadamente... já é chegado o tempo!


A época de Advento lembra a passagem do antigo para o novo: é o ano novo da Igreja que inicia. E o tempo antigo que passa à memória e o novo que se prenuncia como tempo de luz e esperança. Para as mulheres, esse novo, essa luz quer iluminar o seu espaço cotidiano, na casa; para os homens, a luz pode clarear aspectos deixados no fundo de seus corpos, escondidos. Para ambos, essa luz tem o poder de transformar!

É o quarto domingo de Advento. No altar, uma coroa, quatro velas acesas. Luzes que simbolizam vida; fogo que faz a memória do poder, do Espírito que toca onde menos esperamos, e sem mesmo termos esperado. Cores - vermelho, roxo, verde - pintam e dão a tintura da luta, do caminho, do processo. Resgatar e apropriar-se da simbologia do Advento pode dar outro significado, menos tradição e mais motivação e espiritualidade, em torno dessa época.

2. - O lugar

O Evangelho do Lucas apresenta uma forma bastante eqüitativa quanto ao gênero, de colocar os acontecimentos relacionados com Jesus. Faz uma equiparação de relatos, ora relacionando um com mulheres, ora outro com homens. Exemplos: o homem que planta o grão de mostarda e a mulher que usa o fermento (Lc 13.18-21); o homem que procura a ovelha perdida e a mulher que procura a moeda perdida (Lc 15.4-10); o filho único da viúva e a filha única de Jairo (l, c 7.12; 8.42); a cura no sábado da mulher encurvada e do homem com hidropisia (Lc 13.10-17; 14.1-6); duas listas com as pessoas que seguem Jesus - uma de homens (Lc 6.12-19) e outra de mulheres (Lc 8. 1-3).

O nosso texto se dá num ambiente de casa. Maria entra na casa de Zacarias, mas a saudação é para Isabel (v. 40). Se recuperarmos o contexto imediato do nosso texto, vemos que Zacarias ainda está mudo devido à sua incredulidade, ao seu temor mediante a aparição e boas novas que o anjo vem lhe trazer. A casa da família amiga, e que de certa forma passa por uma situação parecida, representa um espaço seguro para a jovem Maria. Isabel já tem mais experiência, de vida e de barriga, pois já está no sexto mês de gravidez.

3. - A visita

A forma como Isabel recebe a amiga é fundamental para o seguimento do diálogo e da visita. Ela exclama, alegra-se. O seu filho na barriga até estremece. Não há recriminações, não há sinais de dúvida.

O anjo mantém uma conversa com Maria. Maria-mulher não necessita de qualquer intermediação religiosa para o diálogo com o divino. Maria e Zacarias representam duas regiões e tradições diferentes: mulher da Galiléia e sacerdote de Jerusalém, morador das montanhas de Judá. Maria vem da região fértil da Galiléia; Zacarias e Isabel das montanhas de Judá. Maria é virgem e jovem, Isabel é estéril e idosa. Maria tem potencialidade para ser mãe, Isabel não. Mas pela vontade divina é possibilitado que Isabel seja fecundada.

O contexto nos mostra diferentes formas de visita: Uma e a visita de Deus através do anjo. Assim como na experiência de libertação do povo de Israel, no êxodo, Deus desce, se aproxima e procura o seu povo. Agora são duas mulheres os sujeitos de diálogo com Deus. Maria e Isabel, representando segmentos explorados, oprimidos e discriminados, por sua idade, gênero e classe social são a porção escolhida para a visita de Deus. Essa boa nova recebida na visita divina é compartilhada entre as mulheres. Uma visita a outra para falar da sua experiência de ser bendita.

4. - A amiga bendita

Poderíamos ver Maria e Isabel como mulheres que se procuram e se apóiam mutuamente em seus processos de gestações complicadas. Apesar de estarem em posições em que potencialmente poderiam ser rivais: uma pode ter filhos, mas está em situação complicada (a tradição de Mateus diz que José hesitou com a notícia da gravidez). Aqui se fala de uma virgem que está grávida, ela não conheceu homem ainda; a outra, velha e estéril, mas casada, com marido. Diante disso, o que ressalta no texto é o contraponto ao modelo de competição, de disputas entre mulheres, promovida pela sociedade patriarcal.

Uma forma de contrapor o mundo patriarcal que promove a inimizade e competição entre as mulheres é a vivência da sororidade, que é definida como a aliança, a coalizão entre mulheres, que significa a transgressão política a essa organização masculina patriarcal (Marcela Lagarde, p. 83). A experiência de tornar-se sujeito é vivida como processo, e é nesse processo de constantes mudanças que se constrói a identidade das mulheres e também dos homens. É essa constante transformação, de ir se amoldando à realidade, adaptando-se ao contexto, que faz com que as pessoas se tornem sujeitos protagonistas.

Serão cumpridas as palavras - as palavras que o anjo disse a Maria. Ela tem uma conversa com o sagrado sem a intermediação de nenhuma instituição. Maria-mulher dialoga com Deus, sem intermediação de sacerdotes, homens, igrejas, profetas... prova de que a palavra dele pode acontecer: Isabel, parente idosa de Maria, está grávida. A que era chamada de estéril, e sendo idosa, já esta no sexto mês de gravidez.

Maria profere a sua palavra: Sou uma escrava do Senhor, aconteça em mim conforme a sua palavra. Ela expressa seu desejo de que aconteça nela conforme as palavras de Deus. Isso fica claro no seu canto e no pronunciamento de suas palavras proféticas, no Magnificat, onde se fundem fé, louvor, maternidade profética e cidadania. A maternidade de Maria representa justiça e dignidade para as filhas e os filhos de Israel.

A partir de uma leitura que busca partir da experiência das mulheres e seu cotidiano, o poder da palavra, de dizer a si e ao mundo, pode ser ressaltado como o aspecto libertador presente no texto. A libertação almejada e lutada, o acesso ao pão nosso de cada dia não significam só a necessidade da partilha dos recursos e bens materiais. Na vida de mulheres oprimidas, discriminadas, o direito da palavra, o direito de pronunciar sua opinião, seu desejo, seus sonhos faz parte de tudo o que pertence ao sustento e às necessidades da vida (Lutero).

Maria, como Zacarias, perturbou-se com o acontecimento do anjo. Ela, no entanto, se impressionou com o significado intrigante das palavras, não com a presença do anjo. Zacarias, ao contrário, é tomado pelo medo com a presença do anjo, antes mesmo que ele lhe profira qualquer palavra. Maria questiona o anjo, da mesma forma que Zacarias: Como será isso? Maria recebe uma explicação do anjo, Zararias é emudecido por não ter acreditado.

Esta palavra introduz uma discussão teológica entre Maria e o enviado de Deus. O encontro está nos moldes de um chamado profético. Ela não é chamada para ser profetisa nos termos convencionais da profecia. Sua tarefa é ser mãe. Seria possível uma interpretação não convencional também da maternidade? Se no mundo patriarcal a maternidade é meritória e só com ela as mulheres adquirem valor e dignidade, aqui teríamos uma contraproposta, fazendo do ser mãe uma tarefa profética? Essa hipótese adquire fundamento se ligarmos esse momento ao cântico entoado por Maria, onde a palavra dela é uma clara denúncia da opressão e um anúncio da intervenção libertadora de Deus.

Isabel é outra a pronunciar palavras de profundo significado. Antes de oferecer ou desejar a bênção, ela a reconhece: Bendita (eulogemene) ) és tu entre as mulheres, e bendito (eulogemene) o é o fruto de teu ventre. É uma benção parecida àquela proferida por Moisés em Dt 28.1-4, ou para Jael em J z 6.24, ou ainda para Abraão em Gn 14.19-20. Nesta fórmula, a primeira linha serve para nomear, e na segunda ocorre a explicação do motivo da bênção.

Na fala de Isabel está presente mais uma palavra, que expressa a alegria do encontro: Bem-aventurada (makaria) a que creu. É a fala retomada por Jesus, no capítulo 11, v. 27-28 do mesmo Evangelho de Lucas, quando uma mulher se levanta na multidão e exclama: Bem-aventurada a que te concebeu e os seios que te amamentaram! E Jesus lhe responde, com palavras muito próximas àquelas já proferidas por Isabel: Antes bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam.

A palavra só pode ser proferida se existir espaço que a permite. Dizer a si e ao mundo, dar significado e nome às experiências vividas só tem sentido se houver pessoas com as quais compartilhar a vivência. É nesse sentido que se entrelaçam o poder de ouvir, sem intermediários, de falar, de dizer os sentimentos, pronunciar e verbalizar a sua concepção de mundo, ou seja, a palavra, com o espaço e o cultivo da amizade, que se dá no encontro, nas diferentes formas de visitas.

5. - O encontro da comunidade no culto

Sugiro que o encontro do 4° Domingo do Advento trabalhe o tema amizade. É isso que Isabel e Maria representam uma para a outra, é isso também que Deus quer mostrar quando visita seu povo. As visitas, e agora também as visitas de caráter poimênico/pastoral, precisam ser manifestações de afeto, de carinho. O contato entre as pessoas da comunidade só será enriquecedor se for caloroso, afetuoso, senão será automático, centrado unicamente no racional, e mera retórica.

Penso que uma dinâmica que pode ser recuperada/apropriada é dar testemunhos. Estamos acostumadas a ver os testemunhos, relatos da vida pessoal e de experiências de fé de uma forma muito preconceituosa, pois fomos ensinadas que essa prática não é do nosso âmbito (mas sim pentecostal, crente). Mas por que não nos re-apropriamos de uma dinâmica que é bíblica, profética? Por que não ressignificar estas práticas, dando-lhes um caráter mais comunitário, não individualista, mas que respeite a experiência pessoal orientada para o crescimento e fortalecimento da vida comunitária?

Em termos concretos, sugiro que mulheres falem da importância em suas vidas da amizade com outras mulheres. Essa amizade é muitas vezes estereotipada como comadrice, clube de fofocas, etc. Mas a experiência nos tem mostrado que no encontro e no diálogo com amigas, vizinhas, outras mulheres, problemas podem ser resolvidos, solidões podem ser vencidas, depressões podem ser superadas.

Outro desafio é pedir que homens falem de suas amizades e de frutos bons que colheram através delas. Normalmente também a amizade entre homens é vista como coisa de mulheres, que põe até em jogo a masculinidade de alguns. Mas o crescimento da vida espiritual comunitária depende de que deixemos de lado preconceitos, superemos barreiras, transcendamos limites impostos. É interessante que se recupere o modelo de Zacarias: ele era homem acostumado com a palavra. Era sacerdote, e isso lhe proporcionava uma desenvoltura com a fala. Mas interessante é que, quando ele é defrontado com o novo, com o milagre, ele emudece. Nesse sentido, a não-fala, o silêncio, pode significar uma fala também, ou seja, a incapacidade do falar sobre determinados temas e espaços. São processos... Mas Zacarias recupera a sua palavra! E isso se dá quando Isabel dá nome no filho deles.

Advento é época de espera... Mas uma espera grávida de sonhos, de utopias. É a espera que desafia para a ação, para o dispor-se a correr apressadamente como Maria em direção da outra, do outro.


Bibliografia

Este texto é fruto de vivências e reflexões profundas, comunitárias, entre mulheres. A Mara e a Marga são fonte de inspiração, bibliografias corpóreas consultadas na elaboração do texto e da vida.

LAGARDE, Marcela. Género y feminismo : desarrollo humano y democracia. Madrid : Horas y Horas, 1996.
SCHABERG, Jane. Luke. In: NEWSOM, Carol; RINGE, Sharon H. (Eds.). The Women’s Bible Commentary. Louisville : Westminster/John Knox, 1992. p. 275-292.

Proclamar Libertação 26
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia

  


Autor(a): Elaine Gleci Neuenfeldt
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Advento
Perfil do Domingo: 4º Domingo de Advento
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 39 / Versículo Final: 45
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2000 / Volume: 26
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17463
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