João 14.23-29

Auxílio Homilético

24/05/1992

Prédica: João 14.23-29
Leituras: Atos 14.8-18 e Apocalipse 21.10-14,33-23
Autor: João Guilherme Biehl
Data Litúrgica: 6º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 24/05/1992
Proclamar Libertação - Volume: XVII

Flores de plástico não morrem

Existem somente cerca de mil Chipayas. Tribo milenar, milenarista, que anda pelas áridas e planas regiões de Oruro, na Bolívia. São corpos e terras afluentes que desaguam nas estórias do Imenso Rio.

Perdidos para sempre, eles não sabem quando tudo aconteceu. Quem sabe? O que importa é a montanha nevada com a qual conversavam, o deserto vermelho pelo qual caçavam vestimenta e o grande Rio com plantas amarelas, do qual tiravam a vida diária.

Eis que chegou o futuro, o tempo das guerras com os Quechuas e os Aymaras, os povos agrícolas. Os Chipayas não podiam mais cambiar seus peixes por batatas, milho e folhas de coca, que seus corpos necessitavam. Foram derrotados. Partiram. Para não serem dominados e forçados a falar uma outra língua, estranha a seu cotidiano. Não on the road. No road. Agora: nenhum caminho. Simplesmente indo. Exilados para sempre, desde sempre, da Montanha Saana e do Rio Lança.

Nômades, os Chipayas descobriram a vida suportável como poesia. Ou como diz Octavio Paz! (…) el tiempo de la poesía no es el de la revolución, el tiempo fechado de la razón crítica, el futuro de las utopías: es el tiempo de antes del tiempo, el de la 'vida anterior' que reaparece en la mirada del niño, el tiempo sin fechas. (Los Hijos del Limo, p. 69). Desejo de contradizer a história. De transfigurá-la na imaginação. A própria natureza mirando-se no túnel daquelas almas índias. Em meio a lugar nenhum, sendo o tempo, os Chipayas começaram a contar que era uma vez uma pacarína, um lugar de origem: na palavra poética. Das trevas da saudade, de um horizonte que anda, o mundo foi assim criado por suas palavras à imagem e semelhança de um poema.

No princípio tudo era obscuro. Os antigos viviam com a luz da lua. Até que um dia, ou noite, chegou um desconhecido. Até hoje clandestino. Dizendo que o sol estava por vir. A única maneira de continuar vivendo era escondendo-se no Imenso Rio. Muitos não deram ouvidos ao desconhecido. Os muitos não ouvem o desconhecido, sequer o percebem. E foram queimados pelo sol, que também sempre vem. Os poucos que ousaram viver as profundezas do silêncio verde das águas foram devagar, vagando, voltando à terra.. São os Chipayas. Devagar, pois para se acostumar à vida, ao sol, é preciso o tempo de pouco a pouco e a saudade de alguma narrativa, palavra poética, para a qual é possível voltar quando a luz é excessiva. Luz demais cega a poesia.

O imenso Rio é o deus dos Chipayas. É o espaço que os gerou e para o qual rclornam em tempos de muito sol. Buraco negro. Desejo projetado. Imaginário atualizado. Inconsciente real/izado. Realismo Fantástico. No qual a arte recria a vida a partir do caos... No princípio tudo era sem forma e vazio... havia trevas sobre a face do abismo... (Gn 1.2)... Sem ordens, nem futuros, nem verdades. Só um presente desconhecido. Uma história que não está escrita, pois cabe no ar: entre uma boca e um ouvido, durante as noites em que as mulheres, venerando os cerros, pedem chuva. É também contada no dia de todos os mortos, quando os Chipayas, a exemplo de tantas tribos andinas, colocam sobre a sepultura dos seus amados aqui-lo que eles mais gostavam. Então dançam, e dançam, e dançam com as memórias daqueles que estão agora abraçados por Pacha Mama, deusa/mãe terra, também lembrando de um Rio que agora é palavra...

No princípio era a palavra, e a palavra estava com Deus, e a palavra era Deus, assim a comunidade joanina começa o seu poema, a contar sua pacarína, isto é, de onde vem e para onde vai (Jo 1.1). Ela está órfã. Quem sabe uma criança abandonada? Sofrendo perseguições — de esquadrões eclesiais e estatais de morte (Jo 15.18), em diáspora... Teria então o contato com os gregos lhes possibilitado a universalização do seu discurso religioso? Exilados da sua terra, da encarnação do mito, estaria a comunidade a partir do confronto grego da palavra como verdade conceitual (dogmática para os correlates eclesiásticos emergentes) — enunciando agora palavra como poesia?... Isto é, nas palavras de Octavio Paz:

Damos voltas e voltas no ventre animal, no ventre mineral, no ventre temporal. Encontrar a saída: o poema. Obstinação desse rosto onde se quebra meu olhar. Fronte armada, invicta, diante de uma paisagem em ruínas, depois do assalto ao segredo. Melancolia de vulcão... Arrancar as máscaras da fantasia, cravar uma lança no centro sensível: provocar a erupção. Cortar o cordão umbilical, exemplar a Mãe: crime que o poeta moderno cometeu por todos, em nome de todos. Cabe ao novo poeta inventar a Mulher... (Transblanco, p. 197.)

Se assim o é, para a comunidade joanina chegara a hora da poesia: religião como ponte pênsil entre um futuro que já não é mais conhecido e um passado, que como chama de vela, apaga na memória. É esta a imagem que livre associo: lá no Jammertal (Vale das Lamentações, município de Dois Irmãos, RS) fotografei uma mulher atravessando uma ponte pênsil, flores nos braços, invadindo minhas retinas, e indo ao cemitério visitar seu Amor que agora habitava a Morte. Todos os sábados ela recria o mundo do qual ela é sujeito. No sétimo dia Deus descansou e os poetas continuaram a obra da criação (Quintana). As flores são suas palavras. Colocadas sobre o corpo da memória do seu Amor agora terra... à terra. Ela também rearranja as flores de plástico. Daí cantam os Titãs: Flores de plástico não morrem... Enquanto ela reza um silêncio imenso, disforme, túnel solitário sem fim. Eis que é bela a tragédia de que a coisa mais importante na Vida é a Morte, subindo ao palco e sendo beijada pelo Amor... Então as memórias não são só, solitárias, memórias, elas são vida aberta... Para a comunidade joanina (que nos habita! Amém!) que tem fé, isto é, fala a linguagem do desejo, que vaga exilado para sempre da sua encarnação, a Mãe, a Natureza, Deus... Que, é então vivido como Palavra. Como crêem os Huitotos, tribo colombiana:

Quando ainda
não existia ninguém,
Deus criou as palavras
e as nos deu
como nos deu as raízes para comer.
(Poesia Indígena da América, p. 28)

Nosso texto, Jo 14.23-29, e mais os versículos 30 e 31 compõe a cena final dos discursos de despedida do Amor a aqueles que o seguem. João revela Jesus como o próprio amor divino (Jo 3.16), assim diz Bultmann. E mais:

nos capítulos 3-12 é mostrado este amor na luta por trazer o mundo a si; também é mostrado como este Amor implica necessariamente em escândalo para o mundo; e como o mundo permite o escândalo tornar-se sua própria condenação.

O contexto menor ao qual pertenceria nosso texto é Jo 13.1-17.26. Continua Bultmann: (...)esta parte mostra o 'Amor' revelando-se aos seus... (The Gospel o f John, p. 457). Quer dizer, a comunidade joanina é a própria Cordélia nas palavras de Shakespeare Não consigo trazer o coração à boca... A liberdade está longe, o exílio é aqui... (Rei Lear). E coloca na boca de Jesus a possibilidade de tê-lo como palavra. Pertence à memória o tempo mítico em que a Palavra era Carne, em que o Amor era cor encarnada. Agora o tempo é o de angústia:

ela é o temor de um luto que já ocorreu, desde a origem do amor, desde o momento em que fiquei encantado. Seria preciso que alguém pudesse me dizer: Não fique mais angustiado, você já o(a) perdeu. (Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoro¬so, p. 22).

Agora a Carne, o corpo amado, vira Palavra...

Respondeu Jesus: Se alguém me ama, guardará a minha palavra... (Jo 14.23). É na poesia que Deus nos possui para todo o sempre. A eternidade cabe na Palavra. Pronunciada na noite, que é a vida, antes da Morte. Jesus, o desejo da comunidade joanina, é Cacahuazin da cultura Nahuatl, México:

Vendrá la muerte.
Donde iremos, corazón?
Perforado seré,
aunque sea esmeralda;
fundido he de ser,
aunque ora fuera.
Pero gozad, amigos,
desterrad la tristeza.
Dejad el tormento para mi,
Cacahuazin,
el cantor.
(Poesia Indígena de América, p. 78.)

Isto vos tenho dito, estando ainda convosco... (Jo 14.25). É a poesia da Palavra que nos ensina todas as cousas e nos faz lembrar de tudo... (Jo 14.26). É por isso que vemos embaçado, como em espelho. A imagem desejada e o corpo solitário grudados de repente, e então se foi, pela Palavra, fraternidade sobre o vazio (Octavio Paz, Vuelta, p. 80). Daí a ambiguidade de Deus, da Palavra: vou e volto para junto de vós (Jo 14.28). Errantes no deserto... Chipayas... hebreus... comunidade... joanina... sem saídas, nem viadutos, nenhum sentido, todos os sentidos em polvorosa, pororoca, mar e rio se beijando. Chega de saudade: Palavra: não se turbe o vosso coração (João 14.27). O temor é para a morte, assim como a Palavra é para que quando aconteça... creiamos.

Bibliografia

ARÉVOLO, G. A. (ed.). Poesia Indígena de América. Bogotá, Arango Editores, 19SH
BARTHES, R. Fragmentos de um Discurso Amoroso. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1985.
BULTMANN, R. The Gospel o f John. Philadelphia, The Westminster Press, 1971
BIEHL, J. G. João 13-17. In: Informativo CEBI-SUL. São Leopoldo, ano s, n° 14, março de 1986.
PAZ, O. Los Hijos del Limo. Barcelona, Editorial Seix Barrai, 1974. PAZ, O. Transblanco. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1986. PAZ, O. Vuelta. Barcelona, Editorial Seix Barrai, 1989. SHAKESPEARE, W. Rei Lear. Porto Alegre, L&PM.


Autor(a): João Guilherme Biehl
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 6º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 14 / Versículo Inicial: 23 / Versículo Final: 29
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1991 / Volume: 17
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17981
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