Lucas 18.31-43

Auxílio Homilético

13/02/1983

Prédica: Lucas 18.31-43
Autor: Clemente João Freitag
Data Litúrgica: Domingo Estomihi
Data da Pregação: 13/02/1983
Proclamar Libertação - Volume: VIII


I — Considerações iniciais

Numa primeira observação constata-se que as perícopes em pauta não representam uma unidade em si, pois são portadoras de assuntos diversos (anúncio de sofrimento e ressurreição — cura). Os assuntos e seus enfoques são tão diversos que a sequência em Mateus e Marcos difere desta de Lucas. Ao dar esta sequência aos relatos em questão, o evangelista Lucas perseguia certas intenções. Estas intenções dizem respeito à compreensão da história salvífica que aconteceu em Jesus, à compreensão da concepção cristológica salvífica que envolvia a comunidade e, ainda, à situação da Igreja, dentro da sociedade.

Lucas acentua o que está para acontecer, como sendo aquilo que os profetas haviam anunciado (v.31). De acordo com a visão de Lucas, o martírio de Jesus faz parte das profecias. Dessa forma, está garantida a continuidade da ação histórica de Deus entre os homens, na pessoa de Jesus Cristo. Nessa continuidade histórica, Lucas coloca que o agir salvífico de Jesus já acontecia nos dias do Jesus terreno. Assim a salvação estava presente antes do acontecimento de Jerusalém, contudo em escala menor. Esta ação de Jesus, em escala restrita, era voltada essencialmente para aqueles que estavam mortos ou doentes para a sociedade. Com esta sua maneira de agir, passou a ser o Salvador, o libertador dos desprezados e perdidos daqueles dias. A partir da sua ressurreição, é o libertador de todos os oprimidos.

Nas duas perícopes, a multidão ou os seguidores de Jesus não conseguem captar o falar de Jesus e os seus atos, como sendo partes Integrantes do plano salvífico que ele estava consumando. Tanto assim, que na primeira parte eles não entenderam nada e, na segunda, dão uma informação incompleta ao cego sobre Jesus. Além disso, impedem-no de chegar a Jesus. Mas nem o cego e, menos ainda, Jesus concordam com a atitude da multidão. O cego desobedece a multidão e Jesus manda que a multidão o traga para perto.

A atitude dos seguidores de Jesus, da multidão que o assistia, alerta-nos para uma cristandade que ainda não vive o Reino de Deus em sua totalidade. Reflete uma comunidade perseguida em todos os setores da vida e acuada. Por causa disso, talvez queira o Mestre apenas para si. Diante disso, o relato da cura e sua ligação com a perícope anterior passam a ser de fundamental importância. Pois poderia ser que a linha histórica da salvação estivesse sendo esquecida ou transferida para o além. E com esse retrospecto histórico, acrescido da ressurreição de Jesus e ligado com as curas que ele fez, Lucas quer que a comunidade procure viver a sua fé — evitando assim o enclausura-mento dos cristãos.

O texto de Lc 18.31-43 está inserido nos relatos da viagem de Jesus a Jerusalém (9.45-19.27); podemos constatar que Jesus e sua comitiva estão se aproximando do centro da vida dos israelitas, na medida em que abandonam a Galiléia e seu arredores. Numa época turbulenta, o fim de qualquer figura controvertida que aparecesse em Jerusalém não era dos mais promissores. Contudo, a comunidade primitiva precisava confessar que este Jesus, que anunciavam, não tinha sido um simples revoltado ou inimigo dos romanos, mas, sim, alguém pro-metido — portanto, bem mais importante do que os outros que já haviam sido mortos por questões políticas. Lucas, para expressar e qualificar esta ideia, recorre ao AT (Is 53.1-12).

Dessa forma, sintoniza o acontecido com Jesus com aquilo que fazia parte da vida do povo de Israel. Nessa busca pela memória histórica, neste texto, surge uma diferença em relação a Mateus e Marcos, que não citam esta afinidade do acontecimento relatado com as profecias.

Por outro lado, Lucas quase que ignora a participação direta dos israelitas naquilo que irá acontecer ao Filho do Homem. Nesse ponto, também distancia-se de Mateus e Marcos, que citam ou incluem os israelitas nesse acontecimento. Contudo, fica evidente que alguém haverá de entregar Jesus aos gentios. A partir disso, pode-se dizer que Lucas pressupõe indiretamente a participação dos israelitas. Talvez quisesse evitar o crescimento de um pensamento que ligasse a perseguição com a participação da comunidade na morte do Senhor. Isso descaracterizaria o conteúdo da mensagem do Reino, que Jesus viveu e praticou. Para justificar a aparente impotência e fragilidade do Mestre — e, talvez, os momentos difíceis da comunidade — Lucas acentua, colocando mais um adendo no relato, a incompreensão dós discípulos (v. 34). Neste ponto, nossa passagem difere mais uma vez dos paralelos que encontramos em Marcos e Mateus, caracterizando, com isso, outra preocupação da comunidade.

A segunda perícope também, possui paralelos em Mateus e Marcos. Comparando as passagens, notamos uma série de alterações que bem explicam o lugar desse texto no contexto de Lucas.

Lucas difere de Mateus e Marcos nos seguintes pontos: ao realizar a cura, Jesus estava chegando a Jericó; o cego não sabia quem estava passando — era necessário comunicar-lhe; a multidão dá uma informação incompleta ao cego; Jesus manda trazê-lo; o cego e a multidão glorificam e louvam a Deus. Aqui transparece, outra vez, a preocupação de Lucas com a comunidade.

Aquele Jesus que anunciavam ou deveriam anunciar, de fato havia morrido indefeso na cruz, mas também ressuscitado. Contudo, antes disso, havia realizado obras que denunciavam o seu poder e que poderiam auxiliar na compreensão do plano salvador que Jesus seguia. A cura do cego pode ser interpretada como uma amostra grátis do Reino de Deus. A cura passa a ser um sinal visível do Reino de Deus para o cego e, aos poucos, para os seguidores. Aos poucos para os seguidores, porque o título que eles dão a Jesus dificulta a sua identificação com a linhagem de Davi, enquanto que o cego o identifica imediatamente como Filho de Davi — ou seja — como aquele que haveria de libertar os oprimidos.

Também neste relato encontramos uma alusão ao AT, agora expressa por um cego. Esta confissão feita pelo cego, surpreende a todos os seguidores de Jesus. Este cego mexe com a crença dos seguidores de Jesus. Eles não aguentam os gritos de socorro do cego. Aí, o enfoque eclesiológico deste relato sobressai bem mais do que em Mateus e Marcos. Lucas acentua a dificuldade dos seguidores em relacionar Jesus com aquele que fora prometido por Deus através dos profetas. Eles vão com esse homem, porque esperam dele o reino da paz e da liberdade, e ele vai a Jerusalém ao encontro da morte. Eles vão com ele à cidade santa, para festejar festas religiosas e fazer discursos piedosos, e ele estraga sua alegria, ao preocupar-se seriamente com um esmoleiro. (Traduzido de Josuttis, p. 125). Tal dificuldade, o cego não a percebe, e por isso não desiste de gritar por Jesus. Quando o cego rompe a barreira da multidão e os seus gritos chegam ao Mestre, algo começa a mudar. Jesus ordena aos seus seguidores que o tragam para perto. Depois de tudo o que ali ocorre, acontece a glorificação de Deus por mais um ser humano que volta a fazer parte da sociedade.

Em resumo, esta passagem de Lc 18.31-43 apresenta-nos três elementos essenciais da fé da comunidade primitiva. Nos dois trechos, Lucas coloca a questão apologética, a cristológica e a eclesiológica de uma maneira bastante entrelaçada e intrínseca; tanto assim que, após um estudo, percebe-se uma unidade de conteúdo e interesse nessas duas passagens previstas para o Domingo Estomihi.

III — Meditação

No texto abordado, a multidão que segue a Jesus, não o compreende quanto ao seu fim e, menos ainda, quanto a sua atuação terrena. Também não informa ao cego que Jesus é aquele que veio para trazer vida e libertação aos desprezados. O cego, que vivia marginalizado e desprezado, é quem percebe a hora da salvação e luta por ela.

Quem diria?. Um cego levando a multidão dos seguidores de Jesus a louvar a Deus... Mais uma vez o relato bíblico inverte os valores defendidos pela sociedade, fazendo com que esse desprezado passe a ser um elemento fundamental, para que os seguidores de Jesus o compreendam.

Nós, como Igreja, agimos de modo semelhante em acontecimentos dessa natureza. Basta lembrar a posição das chamadas instituições cristãs, do clero e de muitos líderes que são cristãos, nas lutas de libertação de Nicarágua, de El Salvador, da Guatemala, do Chile, da Bolívia e de outros países da América Latina. Sem medo de errar, podemos dizer: aqueles que estão caminhando ao lado de Jesus, ou supõem que estão, são os que mais empecilhos colocam entre Jesus e os marginalizados. Esses cristãos convencionais (líderes da sociedade civil-militar-religiosa) estão tão contentes ao lado de Jesus, que nem percebem o sofrimento do Senhor e a necessidade da cura dos marginalizados. O Jesus dos cristãos convencionais não pode parar para dar ouvidos aos gritos dos sofredores. Antes que Jesus pare, os seguidores de hoje tentam calar a boca dos marginalizados com sua intervenção assistencialista. Intervenção esta, que não devolve a vida e a integração social ao necessitado. Além disso, gostamos de apresentar Jesus como um sujeito obediente aos costumes vigentes, e que exige o sofrimento dos que sofrem.

Voltando os nossos olhos mais especificamente para acontecimentos passados e presentes no Brasil, percebemos, através da história, algo semelhante. Desde os primórdios, vê-se as Igrejas, como um todo, agindo com cautela, com incompreensão tal, que facilmente podem ser identificadas com os seguidores de Jesus que tentaram impedir a saúde e a salvação do cego. Se não, vejamos: onde está o nosso ser cristão na hora em que os cegos começam a gritar o nome verdadeiro de suas esperanças? Esses gritos acusam os líderes de terem anunciado um Jesus passivo, pacato e que não gosta de reclamações. Em 1964, as Igrejas abençoaram a opção política feita, e com isso acabaram sacramentando a pesada cruz que estava destinada aos fracos, pelos poderosos. Hoje, alguns poucos percebem essa falha, contudo sua ação não move a grande maioria dos cristãos. Diante de qualquer tipo de greve ou reivindicação, os cristãos que seguem Jesus, falam a mesma linguagem dos defensores do poder; isto, quando não chegam a aplaudir suas ações.

Os cristãos não conseguem ou não querem explicar que os meios apresentados para atender o grito dos marginalizados servem sobretudo para impedir que Jesus os ouça e que eles cheguem a Jesus. Os cristãos que seguem a Jesus hoje, não desconfiam que o exército, a policia, a justiça existentes e defendidas pelos poderosos nunca atenderão o clamor dos marginalizados. Quando aprovamos a intervenção de tais grupos para calar o sofredor, estamos evitando, de forma indireta, a salvação deste sofredor. Certamente admitimos tal intervenção, porque temos medo de que os marginalizados descubram em Jesus o libertador dos fardos de miséria que colocamos sobre os seus ombros, como Igreja ou sociedade cristã.

Outra forma de abafar o grito dos sofredores é taxá-los de anarquistas, antipatrióticos, de terroristas ou comunistas. Isto representa a voz oficial da sociedade cristã. Mas a fórmula mais usada pelos evangélicos em geral é dizer que os marginalizados vivem assim, porque são vagabundos, preguiçosos e não querem trabalhar. Estas são as armas que nós, cristãos evangélicos, costumamos usar para mantê-los longe de Jesus e da nossa sociedade. Desempenhamos, com isso, o mesmo papel que a policia, o exército e a justiça desempenham nas greves, nas invasões de terrenos e em outros acontecimentos que visam o inicio da libertação. Na maioria das vezes, nem desconfiamos que fazemos o jogo daqueles que aceleram, que favorecem a desgraça do próximo. Onde nós nos encontramos, como clero cristão, diante do aumento das favelas e suas misérias? Quantas Rondas Altas temos em nossa comunidade? Ou somos tão cegos que não vemos nada disso ao nosso redor?

Os seguidores de Jesus, no século XX, são todos aqueles batizados que possuem terras, conhecimento, poder, riquezas em abundância e extravagância, contudo não querem perceber que esses elementos estão em falta na vida dos demais brasileiros. Isso mostra que, para uns, Jesus é um sujeito que veio de Nazaré para transmitir coisas piedosas e paz ao coração; para os outros, ele é aquele que dá vida, saúde, salvação e participação na sociedade.

Resta aos cristãos, seguidores de Cristo, aceitar ao menos a ordem dada por Jesus, a qual consiste em trazer para perto dele aqueles que clamam por socorro e auxílio. E ainda, anunciar que Jesus ressuscitou para que todos recebam vida em abundância, já nesta terra. Pois este Jesus, que Deus ressuscitou, ainda tem poder para curar e salvar as chagas da vida nos dias de hoje. Poder, não só para dar sossego ao nosso coração e fazer com que estejamos em paz conosco mesmos, mas principalmente para curar as chagas e a dor daqueles que gritam por não terem tido participação na vida. Caso o nosso Jesus ainda não seja aquele que pode ajudar os marginalizados, ainda não estamos aptos a entrar em seu Reino.

IV — Sugestão para a pregação

1. A Igreja, os cristãos, embora a caminho do Reino, ainda querem viver a mesma vida que o mundo propõe, excluindo a grande maioria.

2. Os marginalizados, que na maioria das vezes estão excluídos da lista dos cristãos atuais, são aqueles que gritam por causa de sua miséria e sofrimento. Eles só gritam, quando conseguem identificar o Libertador e Salvador. E este, na história dos oprimidos e desprezados, se manifesta de diversas formas e através de diversos meios (greves, invasões, protestos, movimentos e outros).

3. Jesus, o Filho de Davi, ordena aos seus seguidores que tragam os marginalizados, para que sejam atendidos e façam parte da comitiva. Contudo, essa tarefa deve ser cumprida sem o uso da policia e outros meios que confundem a compreensão do Salvador. Dessa forma, Jesus passa a ser o Salvador dos marginalizados e não só dos cristãos convencionais.

Esta seria a sugestão de um pequeno esqueleto para uma possível pregação. Contudo, as questões que a perícope apresenta são tantas, que há uma gama de possibilidades e alternativas em termos de pregação.

V — Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor Jesus, Filho de Deus, confessamos que, na maioria das vezes, quando paramos diante dos gritos dos sofredores, o fazemos para confundi-los e impedir que descubram o caminho da libertação. Nossos atos não visam a participação dos marginalizados na nova sociedade; antes, fortalecemos crenças falsas a teu respeito. Muitas vezes, fazemos de conta que não entendemos a tua mensagem e seguimos os trilhos já escolhidos por nós anteriormente. Senhor, tu nos ordenas ir ao encontra daqueles que gritam, e nós colocamos uma série de obstáculos e problemas para não realizar tua obra. Na maioria das vezes somos pessoas que tentam diminuir a dimensão e a oferta do teu Reino. Tu segues insistindo conosco, e nós teimamos em não entender. Por isso, te pedimos: Tem piedade de nós Senhor!

2. Oração de coleta: Senhor, nós nos encontramos hoje aqui para que tua Palavra inicie transformações em nossa vida. Para tanto, concede a presença do teu Espirito. Dá que ele abra a porta do nosso coração, enquanto estivermos aqui dentro e depois, lá fora. E que então, quando sairmos daqui, não estejamos repetindo a dureza de coração que tem caracterizado a nossa vida anterior. Por podermos ouvir tua Palavra e por ela nos alertar, somos-te imensamente gratos. Amém.

3. Assuntos para intercessão na oração final: Orar pela paz no mundo; por uma justiça verdadeira; pelo governo, para que ouça e atenda o clamor dos desfavorecidos; pelos partidos, para que cumpram, pelo menos, o seu programa partidário; pelos movimentos em geral que visam alertar os crimes que o re-gime vem cometendo através dos mais diversos órgãos oficiais, ou alertar contra crimes que outras instituições estão cometendo com o aval de quem governa; para que a Igreja deixe de calar os marginalizados com suas obras assistencialistas que não diminuem e nem mudam a situação; agradecer a Deus por ter ressuscitado a Jesus, dando assim uma esperança real para todos os que vivem em situações de desprezo; louvar a Deus pelo fato de a salvação não partir ou ser realizada por aqueles que detêm o poder e geram a morte e a servidão; agradecer a Deus pela esperança e certeza de que o Reino acontecerá aqui entre os homens desprezados.

VI — Bibliografia

- GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Vol. 3. 8. ed. Berlin, 1978.
- JOSUTTIS, M. Meditação sobre Lucas 18.31-43. Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen, 61(11), 1972.
- KÜMMEL, W.G. Síntese teológica do Novo Testamento. São Leopoldo, 1974.


Autor(a): Clemente João Freitag
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: Último Domingo após Epifania
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 18 / Versículo Inicial: 31 / Versículo Final: 43
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1982 / Volume: 8
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 18200
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O verdadeiro cristão não vive na terra para si próprio, mas para o próximo e lhe serve.
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