Lucas 9.10-17

Auxílio Homilético

17/07/1983

Prédica: Lucas 9.10-17
Autor: Haroldo Reimer e Dario Schaeffer
Data Litúrgica: 7º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 17/07/1983
Proclamar Libertação - Volume: VIII


I — Observações exegéticas

Dentro do contexto literário, deve-se dizer:

— O ensino dos discípulos é anterior ao ajuntamento do povo ao redor de Jesus. O ajuntamento do povo é uma consequência da atuação de Jesus.

— Ao interromper o fluxo da narração, a interpolação dos vv.7-9, mostra que a atuação de Jesus e de seus discípulos enchia a autoridade constituída de perplexidade. Com sua atuação, Jesus traz insegurança a Herodes, que não consegue descobrir quem ele é na verdade.

Ao contrário do grande, do mandante, que não reconhece e não identifica Jesus, o povo é acolhido por ele. Esse povo é constituído possivelmente de doentes (Lc 4.15; 6.18), de publicanos (Lc 5.29), de mulheres (Lc 11.27), de gente de todas as cidades (Lc 8.4). Importante é notar que Jesus não afasta o povo de si, mas o recebe. Fala-lhe do Reino de Deus e, ao mesmo tempo, concretiza-o no socorro aos que procuram cura. Quer dizer, anuncia e traz um mundo novo para o povo. Um mundo onde as doenças são curadas.

Conforme nossa passagem descreve, a situação em que o povo está, traz mais uma possibilidade de mostrar e concretizar esse mundo novo. Jesus, contra as expectativas dos discípulos, alimenta 5 mil homens (só homens?) num lugar deserto. Isso ele faz com 5 pães e dois peixes, como é dito no v.13.

No v.14, Jesus ajunta as pessoas em grupos de 50. Organiza-os em agrupamentos de mesa!

O v. 16 é muito compacto. Toda a ação do evento central dessa perícope acontece nele. O autor usa muitos verbos, numa sequência que sugere a grande intimidade e proximidade das ações. E é nessas ações que se transforma toda uma situação. Jesus toma os pães e os peixes e dá graças, abençoa. Não usa nenhuma fórmula mágica! Simplesmente agradece. Este bocado de comida è colocado a serviço do Reino de Deus, a serviço do novo mundo. Isso é bênção! Ai Jesus parte e reparte a comida e, com isso, todos se fartam. No momento em que o pão e o peixe são colocados a serviço do Reino de Deus (são abençoados), não mais estão a serviço de um pequeno grupo, dos donos da comida, mas estão a serviço de todo o povo. É ali que acontece o milagre: todos têm o suficiente para comer e ainda sobra. Sobram 12 balaios de pedaços de pão.

II — Ideias

Para fazer considerações sobre o nosso texto, é importante não privá-lo da parte inicial do cap. 9. O envio dos 12 acontece como uma fase preliminar ao ajuntamento da multidão. Os discípulos são enviados por Jesus para falar do mundo novo que acontece com a concretização do Reino de Deus. Os doze são aqueles que conscientizam as massas excluídas de tomar decisões sobre os seus próprios rumos. Essa gente colocada de lado são os povos de nosso texto.

Os povos são grupos constituídos de gente doente, de pecadores, de mulheres, de gente de outras cidades, de andantes que não têm comida para levar em suas andanças. Gente sem emprego e sem trabalho fixo. Gente como essa que constitui também 70% da população brasileira, impedida de tomar decisões sobre sua própria situação, sejam essas decisões de ordem política, econômica ou social.

Os povos de nosso texto, hoje, são aqueles que não conseguem prover o mínimo necessário para a subsistência, nem própria nem da família. São os bóias-frias. São os milhões de migrantes expulsos de suas terras, que saem a pé ou montados em caminhões à procura de qualquer tipo de trabalho. São os pequenos colonos sobretaxados com pesados impostos. São analfabetos. São doentes. São miseráveis. São os esquecidos. São os presos, tragados por celas escuras e câmaras de tortura. Esses milhões de migrantes à procura de uma situação mais justa e melhor são as multidões que conseguem vislumbrar o mundo novo trazido pelo Reino de Deus. Esses povos, de que fala o texto, hoje têm nome: São todos os marginalizados de nossa sociedade, que procuram uma saída. Jesus os acolhe, fala-lhes do mundo de Deus e mostra como ele é. Neste mundo novo acontece o que Deus quer. E isso significa um mundo sem ódio, sem divisões de classe, sem opressão, sem avareza (Lc 12.15ss), um mundo onde não mais haverá palácios habitados por opressores (Lc 13.34-35), um mundo onde a comunhão das pessoas acontece como grupo familiar que se assenta à mesa para cear. Esse mundo novo acontece para as pessoas que são curadas. Acontece para o louco, a quem a sanidade é restituída (Lc 4.31ss). Acontece para o leproso que é purificado (Lc 5.12ss). Acontece para o paralítico que novamente anda (Lc 5.17ss). Acontece para os pecadores que são aceitos (Lc 5.29ss).

Interessante é ver a intima conexão entre o falar do mundo novo e sua concretização. Isto é, o falar desse Reino e a participação na sua organização não andam separados. Em Jesus, falar desse Remo implica curar as necessidades do povo.

Nossa sociedade é uma pirâmide. Muitos sustentam uns poucos. Os poucos oprimem os muitos. Imediatamente anterior ao nosso texto, nos vv. 7-9, fala-se da insegurança do mandante Herodes frente àquele que está mexendo com o povo. Quer saber atrás de quem o povo corre. Está inseguro! A sua insegurança é fruto da consciência de que sua situação palaciana está assentada na opressão e na miséria do povo Do seu lado, é palácio subindo e, do lado do povo, é barraco caindo. É situação de injustiça. É injustiça que não mais haverá no mundo novo trazido pelo Reino de Deus. Jesus não se interessa em responder as perguntas que Herodes e os grandes fazem a respeito dele. Sua preocupação é com o povo. Nossa situação nos desafia a lutar pela superação de situações assentadas na injustiça. Nossa luta, nosso engajamento, seja onde for, deve ter em vista a construção de uma sociedade alternativa, um mundo novo onde Deus tem lugar e, por isso, todos os homens têm lugar.

Dentro desse contexto é possível entender melhor o que Lucas nos quer comunicar com o episódio do repartir dos pães e de peixes a 5 mil homens. Os discípulos estão diante de um problema que para eles e insolúvel: saciar a fome do povo. Quantas vezes, tratando do assunto da fome no Brasil em grupos de comunidade, ouve-se que não podemos fazer nada. Diz-se que cada um deve se virar, para ver se consegue ficar por cima da água. De fato, parece que estamos diante de um muro intransponível. O melhor jeito de resolver o problema é tirar o corpo fora. O capitalismo nos ensinou a ser individualistas e é para este individualismo que nos retiramos: Eu estou bem. Eu quebrei o gamo. Trabalhei. Os outros que façam o mesmo. Não é essa a resposta dos discípulos? O povo está com fome. A conclusão lógica é manda-lo embora, para dentro da incerteza de achar comida por aí. Imaginem: 5 mil homens num lugar deserto. Imaginem: 60 milhões de brasileiros com fome, subnutridos, sem escola, sem casa, sem emprego, sem esperança, diante de uma inflação que rói os últimos trocados guardados ou a receber.

Nesta situação é bom virar as costas e despedir o povo! Mas Jesus diz: Dai-lhes vós mesmos de comer. Curto e certo. Sem meias palavras. Os que querem se colocar em cima do muro são tirados dali e chamados à responsabilidade. A Igreja luterana é desafiada a descer do muro e acolher o povo, dar de comer, achar um modo de resolver o problema da fome. No desafio aos discípulos, o governo é chamado à responsabilidade. Um governo brasileiro que não se preocupa com o povo. É dito ao governo: Dá-lhes de comer!

Jesus pensa e age no contexto do Reino de Deus, onde o individualismo capitalista é superado pelo socialismo de Deus. Dentro desse Reino, as soluções são achadas na comunhão dos homens e no repartir das coisas. Quem está fora deste contexto não capta essa possibilidade Os discípulos fazem o papel dos que não entenderam o que Jesus quer, fala e faz. Eles calculam, fazem contas: têm 5 pães e 2 peixes. Propõem soluções absurdas: comprar comida para 5 mil pessoas. (Contaram muito bem para que esses números fossem guardados, anotados e transmitidos até nós, hoje! E hoje continuamos os cálculos: a divida externa é tanto, por isso é preciso exportar. Exportar carne, trigo, soja — exportar nossa comida, para encher os bolsos de países ricos, pagando juros e dividas. Aqui, dentro do país, é preciso que os ricos ganhem sempre mais. São eles que fazem a política, o progresso, a ordem e o desenvolvimento.

O que acontece com os que têm fome? Hoje grupos políticos, Igrejas (algumas, em parte, pelo menos!), sindicatos apelam para o repartir. Mas aí é dito: Que adianta repartir? Esses pobres não sabem aplicar, nem cuidar do que se dá a eles! O capitalismo é constituído de cálculos, onde o ser humano é apenas objeto de uso, objeto de pro¬dução, descartável, se for necessário ao interesse dos que estão no mando. Os cálculos capitalistas impedem que as necessidades funda-moniais do ser humano sejam satisfeitas.

Jesus põe um fim ao calculismo que não quer e não pode achar soluções. E a primeira coisa que ele faz é um momento de organização. Agrupa o povo em grupos de 50. O povo precisa ser organizado. A organização antecede o evento da multiplicação. Nisso não está nada de excepcional. Está a realidade da força do povo. Povo organizado consegue caminhar sozinho. Somente aqueles que se organizam têm condições de satisfazer as suas necessidades. Em grupo acontece a aceitação. Em grupo acontece a reflexão. Em grupo acontece a comunhão. Em grupo se verifica a necessidade do próximo. Em grupo acontece a superação das necessidades do próprio grupo e do próximo.

Dentro dessa organização primitiva, e por isso fundamental, do povo lascado e marginalizado, acontece um mundo totalmente novo. Jesus toma os pães e os peixes e ergue os olhos para o céu. Ali acontece algo que transcende o que até aí se viu e se conheceu. A comida é algo que vem de Deus e está a seu serviço. Por isso Jesus olha para o céu. Deus age, e um mundo novo se cria. Jesus abençoa a comida. A bênção é o gesto e o momento de colocar a comida dentro e a serviço do Reino de Deus. Não é mais um pão individualista, nem calculista, nem é capital nas mãos de exploradores. É comida! Por isso também não são mais apenas 5 pães e 2 peixes, mas é comida para todo o povo. Com isso é quebrada a exploração capitalista da comida. E levado ao absurdo o fato de que se especula com os preços do feijão, do pão, da terra, enquanto que tem gente que morre de fome ou quer trabalhar na terra e não pode. O milagre reside no abençoar e no distribuir, no saber que dar graças à Deus não é um gesto de satisfação pessoal pelo que se possui, mas leva ao repartir, ao dar sem calcular.

Aqueles 5 pães e 2 peixes são a comida existente no mundo inteiro. Parece pouco para tanta gente, quando está nas mãos de poucos. Mas no momento em que essa comida é colocada a serviço do Reino de Deus, ela é repartida. Jesus parte o pão e os peixes e os discípulos distribuem. O resto é apenas consequência: todos têm o que comer, e até sobra.

Jesus não quer nos mostrar seu poder miraculoso. Não quer fazer um show individualista, para que hoje pudéssemos admirar seu poder e ficar tristes que isso não acontece mais. Essa atitude de Jesus e radicalmente fundamental na construção de um novo Brasil. O capitalismo não permite nem o raciocínio, nem a ação de Jesus. As estruturas e os fundamentos da sociedade construída em cima do mámon” são subvertidas pelo convívio e pela distribuição das riquezas. Nossa sociedade brasileira, tal como ela existe atualmente, é incapaz de ter a perspectiva do Reino de Deus. Ela precisa ser revoltada pelo povo organizado, que sabe e aceita colocar o que tem e o que é a serviço do Reino de Deus e, assim, a serviço da coletividade. Só assim, um dia, os povos com fome poderão dizer, e isso cremos firmemente: Todos comeram e se fartaram; e sobrou comida!
É para construir esse mundo que Deus nos deu a vida.

III — Para a prédica

A prédica precisa analisar o contexto, para o qual é falada. Nossos cultos também são ajuntamentos de gente, de povos. Mas eles ainda vêm à igreja procurar por soluções para problemas imediatos. Como faziam quando vinham a Jesus? Ou vem à procura de religiosidade? Ou cumprem apenas uma tradição? Se é isso, não vamos culpar o povo, mas olhar para o discurso religioso de nossos cultos. Não é ele que colabora para alienar e corromper os povos?

É importante que, nesta prédica, isso seja dito com clareza. O texto aponta para a multidão que ouve Jesus falar do Reino de Deus é necessário, pois, que a prédica se volte a isso, concretize esse Reino.

A multidão vê Jesus curando. É preciso que a prédica aponte para lugares e momentos, nos quais isso acontece na comunidade ou no Brasil. Ou aponte para onde pessoas, grupos e organizações se omitem de dar socorro. Pense na saúde do povo brasileiro, no INAMPS, no FUNRURAL, nas condições de vida do povo. O discurso e a prática do Reino devem se encontrar.

Sobre esse pano de fundo, a ação de Jesus, especifica desse texto, pode ser trabalhada e entendida.

Jesus acolhe o povo. Este é um aspecto importante.

Os discípulos fazem o papel daqueles que têm soluções excludentes e marginalizantes. Quem assume isso hoje, na sua localidade, no Brasil?

Jesus mostra o totaliter aliter, o opostamente novo:

— organiza a massa em grupos;

— vê o que tem para comer;

— agradece, abençoa, coloca a serviço do Reino e, com isso, da coletividade;

— alimenta a todos e ainda sobra.

Esse mundo novo, essa fartura para todos, só pode existir nu¬ma organização social oposta a que hoje conhecemos como capitalismo. Esta deverá ser a proposta final da prédica: conclamar à mudança total de perspectiva; conclamar à transformação da sociedade. A Igreja está a serviço da construção de uma ordem social completamente nova, como o Reino de Deus.

IV — Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor Deus, tu és o criador que nos dás a vida. Tu queres que tenhamos vida em abundância. Ensinaste-nos, através de Jesus Cristo, a promover vida em nosso redor. No entanto, precisamos chegar agora diante de ti e confessar que falhamos nessa tarefa. Ainda hoje as palavras meu e teu são motivos de discórdia entre nós. Nós nos omitimos e deixamos que ainda exista o pão individualista, a terra só para mim. Confessamos-te a nossa negligência na construção de uma sociedade, na qual o pão seja o nosso pão, na qual a terra seja a nossa terra. E na qual podemos te agradecer e assim dizer: Senhor, obrigado, porque, através de nosso trabalho, podemos tirar de nossa terra o pão nosso de cada dia. Senhor, perdoa-nos a nossa omissão e fraqueza. Amém.

2. Oração de coleta: Senhor, agora temos mais uma oportunidade de ouvir sobre a distribuição do pão, sobre esse mundo novo, teu Reino, que se realiza ali, onde pessoas fazem a tua vontade. Deixa claro em nossa mente que vida em abundância è realizar a tua vontade ali onde estamos, trabalhamos e vivemos. Faze com que a tua Palavra seja um estimulo para que nós, como Igreja reunida, nos coloquemos a serviço de um mundo novo. Amém.

3. Oração de intercessão. Senhor, tu nos mostraste que, para construir uma sociedade melhor e mais justa, ternos que colocar aquilo que temos e o que somos a serviço do teu Reino, a serviço da coletividade. Assim fazendo, estamos sendo uma bênção. É da tua vontade que assim o façamos ainda não alcançamos em plenitude essa nova sociedade, pedimos-te: Fortalece a todos aqueles que lutam na busca do teu Reino; reaviva o ânimo daqueles que sofrem perseguições por querer te seguir e fazer a tua vontade, tantos migrantes e andantes, expulsos da terra por causa do interesse individualista e calculista; dá que o pão seja distribuído através de nós e que os desabrigados sejam por nós acolhidos; reanima os doentes e desvalidos de nossa sociedade; reata a tua aliança com os que te rejeitam e faze-os também ver e sentir manifestações do teu Reino. Ajuda-nos a escolher governantes justos; faze-nos ser comunidade que, em teu espirito, busca a libertação e a transformação. Tudo isso nós te pedimos em nome daquele que nos ensinou a dividir e distribuir o pão, Jesus, que vive e reina contigo e com o Espirito Santo. Amém.

V — Bibliografia

- LÜTHI, W. Das Lukasevangelium. Vol. 1 Basel, s.d.
- RENGSTORF, K.H. Das Evangelium nach Lukas. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 3. 14. ed. Göttingen, 1969.
- SCHMOLLER, H. Handkonkordanz zum griechischen Neuen Testament. 13. ed. Stuttgart, 1963.

Sugestões para a leitura:
- BETTO, Frei. Batismo de Sangue. Rio de Janeiro, 1982.
- HUBERMAN, L. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro, 1979.


Autor(a): Haroldo Reimer e Dario Schaeffer
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 8º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 9 / Versículo Inicial: 10 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1982 / Volume: 8
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 18217
REDE DE RECURSOS
+
Portanto, já que vocês aceitaram Cristo Jesus como Senhor, vivam unidos com ele. Estejam enraizados nele, construam a sua vida sobre ele e se tornem mais fortes na fé.
Colossenses 2.6-7
© Copyright 2024 - Todos os Direitos Reservados - IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Portal Luteranos - www.luteranos.com.br