João 9.1-7

Auxílio Homilético

24/07/1983

Prédica: João 9.1-7
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: 8º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 24/07/1983
Proclamar Libertação - Volume: VIII


I — Considerações preliminares

A pregação sobre qualquer passagem do Evangelho de João impõe ao pregador uma dupla tarefa, por assim dizer, preliminar:

1. Ter uma ideia geral sobre todo o evangelho (ler as observações introdutórias deste volume).

2. Sob hipótese alguma desrespeitar o contexto. Isso se aplica ao texto aqui proposto, tanto que a delimitação acima é posta em dúvida (Fischer, p. 386), pelo que se anexam diversos versículos do restante do capítulo (vv. 13-17 e 32-39), com o intuito de não isolar o milagre como um acontecimento em si, mas deixá-lo na sua função de sinal visível e palpável, que tem a finalidade de colocar as pessoas diante da decisão entre a fé e a descrença (Fischer, p. 388). Em nosso texto esta função fica bem clara: aquele que fora cego, tenta, numa argumentação bastante lógica, convencer as autoridades de que Jesus não pode ser apenas um transgressor da lei (vv.25-27) e acaba colocando os seus interlocutores contra a parede (vv. 30-31), transformando-os de acusadores em acusados. O milagre tem, pois, um duplo aspecto: para quem crê, ele é a confirmação da fé, para quem não crê, ele é motivo até de confusão (v. 16). (Fischer, p. 388) Este todo deve estar presente ao pregador que tem a tarefa de transmitir o texto acima à comunidade.

II — O texto

V. 1: Sem qualquer ligação mais estreita com o capítulo anterior, este versículo sugere uma introdução a algo novo, talvez introdução a uma passagem independente em sua origem. Nesta introdução se constata apenas que um cego foi avistado. Mas, justamente este cego será personagem central, tanto do milagre de Jesus, quanto da longa discussão decorrente do milagre.

V.2: Não é possível decidir se a pergunta dos discípulos é apenas uma questão de curiosidade, ou se ela, logo de inicio, tem como intuito demonstrar que, assim como é impossível dar uma resposta precisa e definitiva, assim também a própria pergunta já é absurda. Ocorre que, na antiguidade, era corrente relacionar qualquer doença com o pecado, sendo que principalmente os fariseus se empenhavam em estabelecer tal relacionamento com toda a radicalidade. A questão — no texto — fica mais complicada ainda, porque se pergunta pela culpa do próprio cego. Essa dificuldade leva alguns comentaristas a propor que o pronome que sugere culpa do próprio cego seja desconsiderado, pois também na tradição judaica este tipo de pensamento (a pessoa ter pecado no útero materno) não é muito comum.

Entretanto, esta não é a questão principal da passagem. Pouco importa se a pergunta — na sua origem — foi encarada como curiosidade, retórica, ou se já foi feita para demonstrar o absurdo da questão toda. Importante é, isto sim, que ela se presta muito bem para introduzir o sinal e a fala de Jesus sobre sua missão, bem como a rejeição que sua mensagem e ele mesmo sofrem.

V.3: Em lugar de dar uma resposta, Jesus, desvia a atenção das pessoas para outra direção, transformando a doença em uma espécie de instrumento ou oportunidade para a manifestação das obras de Deus. É interessante o novo enfoque dado à doença: ao invés de ser um castigo, ela se presta como oportunidade para a manifestação de Deus e o consequente louvor ao mesmo Deus. Desta maneira, a tese dos fariseus é colocada em dúvida a partir de sua raiz.

V.4: Expressando-se em uma linguagem simbólica, Jesus aponta para o fato de que a sua ação no mundo é limitada. Agora é tempo de luz (conceito muito empregado no Evangelho de João), é o tempo oportuno, o KAIROS. A confrontação luz-trevas é uma linguagem simbólica para dizer que, com Jesus, o Reino de Deus irrompeu no mundo.

V.5: Aqui Jesus se auto-revela como o enviado de Deus; ele é a luz. Isso implica em que rejeitá-lo significa também rejeitar aquele que o enviou. A partir de uma pergunta que poderia ter introduzido um longo discurso teórico sobre uma questão teológica, o diálogo é encaminhado de tal forma que os discípulos (e outras pessoas) são colocados diante da pergunta pela aceitação ou não de Jesus, como enviado de Deus.

V.6: Como que para tornar o diálogo mais concreto, Jesus coloca um sinal bem visível, que começa com trabalho em pleno sábado: com saliva e terra, ele faz uma massa que aplica nos olhos do cego. Certamente o fato de isso ser relatado assim deseja alertar para a flagrante transgressão da rígida lei do sábado (v. 14). Jesus, que é a luz, é também soberano sobre o sábado (Mt 12.8).

V. 7: Para que a cura se concretize definitivamente, o cego deve lavar-se no tanque de Siloé. Segundo Bultmann, a explicação do significado do nome do tanque leva o caráter simbólico da passagem à alegoria: Assim como o cego recupera a visão através da água de Siloé, as¬sim a fé recebe de Jesus, o enviado, a luz da revelação. (p. 253) É improvável que se tenha relacionado este lavar-se nas águas do Siloé com o Batismo, apenas pelo fato de que, em ambos os casos, o elemento que se usa é a água.

III — Reflexão a caminho da prédica

O pano de fundo, sobre o qual se desenrola a cena do nosso texto e, mais ainda, a trama posterior em que o ex-cego é julgado e acaba expulso (v.34), é o confronto da comunidade cristã com a tradição judaica, especialmente com certas leis e tradições que, aqui, aparecem estereotipadas, tais como a relação culpa-doença e a obediência cega à lei do sábado, ambas grandezas que dificultam a vida das pessoas e abrem o campo para a marginalização de muitos. Estas duas leis podem ser consideradas exemplares para a caracterização do mundo que não está muito disposto a ser atrapalhado pela luz do mundo (v.5), o que fica claro no restante do capítulo 9.0 ex-cego é julgado, mas, na verdade, o alvo último deste julgamento não é propriamente ele, mas, sim, aquele que curou num sábado, curou uma pessoa que, no seio do povo, deveria ser um sinal visível do castigo de Deus. Parafraseando a linguagem de João: As trevas não se dispõem espontaneamente a ceder lugar à luz, muito pelo contrário, tentam apagar esta luz na base da argumentação refinada, tendo como ponto de partida leis e tradições devidamente interpretadas.

Nunca é demais chamar a atenção para a relação íntima entre questões espirituais e a vida concreta de cada dia, duas grandezas que repetidamente se tenta separar, também com a argumentação, por vezes refinada, em favor de mais espiritualidade. Não que esta espiritualidade não seja necessária e urgente; o problema é o seu divorciamento da realidade cotidiana e vivida concretamente. Os fariseus (v. 13) baseiam-se em leis muito espirituais e doutrinárias, dando interpretações também espirituais e doutrinárias para, na aplicação concreta e cega, infernizar a vida das pessoas. Por tudo isso, eles não podem aceitar que Deus veio ao mundo neste Jesus, como o pão do mundo (6.35), a luz do mundo (8.12) e o bom pastor (10.11), vinda esta que marca a presença do Reino de Deus e a modificação da realidade.

Uma questão importante para a pregação sobre este texto é detectar, ao nosso derredor e em nossas comunidades, as leis, preceitos e preconceitos que, sob alegação de mais espiritualidade, marginalizam as pessoas ou fazem com que elas permaneçam na mesma situação. Pensemos, por exemplo, nas questões raciais e seus preconceitos em nossas comunidades e na sociedade; pensemos na grita por uma espiritualidade desvinculada da realidade vivida e sofrida, espiritualidade que se torna desumana, porque não aceita identificar a escravidão e marginalização em que vivem seres humanos. Ou pensemos na questão da pobreza nas cidades (eles são pobres, porque preguiçosos) e no campo (o pequeno agricultor não progride, porque não quer e porque, de toda maneira, não tem futuro), no farisaísmo em muitas de nossas comunidades, nas quais o pequeno, o fraco, não pode acompanhar os planos e as aspirações dos grandes e acaba marginalizado (construções, escolas, festas, rifas e a própria linguagem que falamos), sendo que os últimos passam a constar, sozinhos, como os grandes benfeitores, cujos nomes são gravados em janelas e até em poltronas.

Jesus quebra e rompe com tudo isso, sem grande alarme e sem grandes discursos e, talvez por isso mesmo, com muita eficácia, o que fica claro na discussão que se segue ao milagre. De repente, cego não é mais aquele que assim tinha nascido, mas os verdadeiros cegos são aqueles que não querem ver; cegos, porque não querem ver e entender que o tempo oportuno, o KAIROS é agora; agora, hoje, é o tempo de realizar as obras da luz, obras que rompam com os preceitos e preconceitos reinantes no mundo chamado moderno e desenvolvido.

A par de toda esta cegueira, é interessante notar o papel do ex-cego durante os interrogatórios: Primeiro ele apenas inocenta Jesus, contando o que aconteceu. Em seguida ele o classifica de profeta para. finalmente, colocar os fariseus na prensa e testemunhar que Jesus realiza obras de Deus (cf. vv.15,17,24ss), pagando o preço que seus pais tinham medo de pagar (v.22), isto é, sendo expulso, o que, na época, era bem mais do que apenas ser posto no olho da rua (v.34).

O ex-cego se torna instrumento de Deus que, com coragem, enfrenta os que se julgam donos da verdade e estão muito interessados em deixar as coisas como elas estão. Até que ponto nós somos cegos, até que ponto nos falta coragem de testemunhar com clareza que as trevas do mundo terão que ceder à luz que é o Cristo?

IV — Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Ouvimos, Senhor, e aprendemos que tu és a luz. Tantas vezes, porém, não tomamos a sério esta luz e fechamos os nossos olhos às trevas que marginalizam as pessoas e as fazem sofrer. Abre nossos olhos, dá-nos coragem, faze-nos saber e sentir que as trevas não podem resistir à tua luz. Perdoa a nossa cegueira e tem piedade de nós, Senhor.

2. Oração de coleta: Apesar de todo o desenvolvimento e progresso, também hoje as trevas dominam a humanidade. Por causa delas, gente explora gente e seres humanos são colocados à margem da vida. Senhor, transforma a lua cristandade e abre-lhe os olhos, para que possa reconhecer a tua luz e testemunhar o teu amor. Por Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor. Amém.

3. Assuntos para a oração final: Na Palavra de Jesus Cristo, Deus traz luz para dentro das trevas e nos faz reconhecer todos os marginalizados: doentes, excepcionais, mulheres, jovens, pobres e os pequenos em geral. Por eles queremos interceder e nos empenhar em seu favor, guiados e encorajados pela luz, que é Cristo. Roguemos por ânimo para não transformar a nossa própria limitação em desculpa barata; roguemos por perspicácia para identificar os mecanismos que hoje marginalizam pessoas. Coloquemo-nos á disposição de Deus para, como seus instrumentos, nos empenharmos no testemunho em palavra e ação.

V — Bibliografia

- BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. Vol. 2. 19. ed. Göttingen, 1968.
- FISCHER, K. M. Meditação sobre João 9.1-7,13-17,32-39. Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen, 64 (15): 386-391, 1975.
- FRÖR, K. Meditação sobre João 9.1-7,13-17,32-29. Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen, 23 (4): 328-334, 1969.


Autor(a): Harald Malschitzky
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 9º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 9 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 7
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1982 / Volume: 8
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 18218
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