Lucas 7.36-50

Auxílio Homilético

14/08/1983

Prédica: Lucas 7.36-50
Autor: Otto Porzel Filho
Data Litúrgica: 11º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 14/08/1983
Proclamar Libertação - Volume: VIII


I — Considerações exegéticas

A presente perícope faz parte da matéria exclusiva de Lucas. Nela Jesus nos é apresentado como amigo dos pecadores. Este é o pensamento predominante na cristologia de Lucas. Para Lucas é sumariamente importante que Jesus veio para buscar e salvar o perdido (19.10) — e isto em sentido mais amplo. Isto não significa que pobreza, pecado e marginalização fossem por ele glorificados como condição para a salvação. Antes vale que Jesus é o Salvador daqueles que nem de Deus, nem dos homens têm algo a esperar. No entanto, é necessário precaver-se contra distorções: Jesus não advoga os direitos dos desprezados (eles não têm direitos), assim como não têm direitos os ricos e piedosos. Jesus traz a todos a graça de Deus, e dela todos necessitam.

Esta não é a única vez que Jesus está participando de uma ceia na casa de um fariseu (cf. Lc 11.37; 14.1). Ele relacionou-se com fariseus e publicanos indistintamente, já que a sua missão abrange a todas as pessoas.

O convite feito pelo fariseu a Jesus pressupõe um relacionamento mais íntimo com ele. Não sabemos se Simão mantinha este rela¬cionamento com Jesus. Mas o que podemos pressupor é que Simão, sem dúvida, já ouvira falar de Jesus. Falar sobre ele era o que todos provavelmente faziam. E Simão mostra interesse em conhecer melhor este Jesus.

A presença de pessoas estranhas a uma refeição era algo normal para a época. Estas permaneciam, contudo, apenas como expectadores. Por isso, a presença da mulher neste contexto não representa nenhuma invasão da privacidade alheia. Ela nos é apresentada como mulher pecadora, porém dificilmente isto significa que ela é uma prostituta. Devemos entender esta constatação muito mais do ponto de vista do fariseu, e, a partir disso, podemos então traçar duas hipóteses: a primeira, que ela era pecadora, por não enquadrar-se dentro dos ideais de piedade farisaica; a segunda, que ela era esposa de um homem, cuja profissão, aos olhos do fariseu, igualmente não atendia esses ideais.

Lucas mostra, no fato de Jesus aceitar esta mulher, que ele não está interessado em desvendar aos olhos do povo os seus pecados, mas muito mais em encobri-los. Perdão significa esquecimento.

A mulher sabe da presença de Jesus na casa deste fariseu, e o fato de ela trazer consigo o vaso de perfume deixa clara a sua intenção para com Jesus.

Nas refeições festivas, como esta, os convidados permaneciam deitados sobre almofadas e apoiavam-se sobre o braço esquerdo. A mulher, portanto, está aos pés de Jesus. As lágrimas são o sinal da sua profunda comoção anterior.

Anormal neste relato é que a mulher apresenta-se diante de homens com os seus cabelos soltos. Este fato, por si só, podia servir de pretexto para o divórcio. Para ela isso pouco importa. Importa, isto sim, que ela está diante do seu Salvador. E isto fica claro no fato de ela usar um dos mais caros perfumes para honrar Jesus. Ela pouco está ligando para o que acontece ao seu redor. O mais importante para ela nesta hora é demonstrar a Jesus toda a sua gratidão, todo o seu amor.

Em seu diálogo interior, chega-se também a conhecer o fariseu. O seu mundo é bem delimitado e, bem por isso, também é palpável. Se Jesus realmente fosse um profeta, ele saberia da culpa dessa mulher, e isto por inspiração divina. Na sua opinião, Jesus tem que obrigatoriamente pensar da mesma forma que ele. E, neste seu remoer interior, vê-se também com que rigidez o farisaismo estabelecia limites aos seus seguidores. Nem mesmo um gesto de afeição, fosse ele de amor, de carinho ou de gratidão, se podia receber da parte de alguém que era um pecador aos seus olhos. Aos pecadores os fariseus têm que obrigatoriamente negar todo tipo de comunhão. Assim também para o fariseu Simão é impossível pensar de outra maneira, mesmo diante de Jesus.
Os fariseus formavam um grupo muito popular na época de Jesus. Tinham adeptos em quase todas as camadas sociais. Sua teologia era muito bem elaborada, o que mantinha a sua união, apesar das diferenças sociais. A Igreja cristã tem caricaturado por demais os fariseus, fazendo com que o seu zelo pela devoção, sua dedicação e sua sinceridade em cumprir a vontade de Deus não sejam levados a sério.

Inicialmente os fariseus integravam o grupo dos macabeus. Quando, porém, a liberdade cultual foi alcançada, separaram-se deste grupo, já que o mesmo continuava agora a sua luta com fins políticos. Os fariseus opunham-se à' luta política, caracterizando-se mais pela piedade.

O termo hebraico para fariseus é PERUSHIM, que significa os separados. Talvez essa tenha sido a designação dada por pessoas de fora do grupo, pois de modo algum os fariseus eram separados de seu mundo ambientai. A separação por eles praticada era antes interior do que exterior. Negavam-se a misturar-se indiscriminadamente com aquilo que era impuro, mas não viviam em grupos fechados.

Pode-se dizer que a característica dos fariseus era seu zelo quase que fanático pela observância da lei. Esforçavam-se ao máximo para serem os cumpridores da lei por excelência. Em consequência disso, arrogavam-se também o direito de serem o verdadeiro Israel.

Da maior importância entre eles era o conceito da pureza. Entendiam a impureza como algo substancial, algo aderente e contagioso. Todo aquele que tivesse contato com algo impuro (doentes, pagãos, pecadores, etc.) tinha que se sujeitar a ritos de purificação. Outro ponto de vital importância era a observância do sábado e o pagamento do dízimo. O estudo da lei e a meditação também eram levados muito a sério por eles.

Vê-se, com isso, que os fariseus achavam que o homem é capaz de viver uma vida sem pecados. Não desconhecem a existência de pecadores também em seu grupo, mas compensam essa falha através de obras meritórias. Têm, assim, limites claros entre piedosos e pecadores. Nisto reside a sua intolerância, ou seja, o menosprezo pelos pecadores e a exclusividade reivindicada a si próprios. Nisto também reside a fervorosa crítica de Jesus a eles, pois este exclusivismo evidencia falta de amor e de misericórdia.

Em sua resposta, Jesus demonstra que sabe perfeitamente o que se passa no íntimo de Simão. Jesus conta uma parábola, cuja origem está no mundo das finanças. Este, em todos os casos, parece ser mais acessível ao fariseu do que o coração humano. Também entre os fariseus a culpa diante de Deus, muitas vezes, é comparada a dívidas financeiras. A parábola de Jesus ultrapassa em muito a compreensão do homem comum. E isso Jesus faz propositalmente. Onde é possível encontrar alguém que é capaz de perdoar dívidas vultuosas na mesma proporção que as pequenas? É desta maneira que Jesus aqui descreve o milagre da graça divina, que, aos olhos humanos, é incompreensível e, ao mesmo tempo, fantástica. A atitude da mulher, aos olhos de Simão, não passa de um gesto até desprezível de uma simples pecadora. Jesus, por seu turno, o interpreta como algo perfeitamente normal e espontâneo, pois viu que ela sentiu o que é perdão. Com a parábola, Jesus está apontando o mesmo caminho a Simão.

A parábola fala de dois devedores que não conseguem saldar as suas dividas. Um deve 500 denários e o outro deve apenas 50. Um denário corresponde ao salário de um dia pago a um trabalhador casual (diarista). O fariseu, que apenas vê a distância entre si e a mulher, mesmo depois de ouvir a parábola, não consegue entender que ele próprio também é tão devedor como a mulher (apesar das aparências externas), e que ele próprio também não consegue saldar as suas dívidas. Ele reconhece que o agir da mulher é fruto da grandeza do perdão recebido, mas escapa-lhe o fato de que, com isso, ele justamente acaba de pronunciar o veredito sobre si próprio. Ele não vê que o motivo da sua existência também é o perdão recebido.

Depois de desmascarar a Simão, Jesus confirma a descoberta que a mulher faz sobre si mesma: ela é uma pecadora, mas, agora, perdoada. Entretanto, o ponto alto da perícope não é o anúncio individual do perdão. Este anúncio do perdão apenas introduz a pergunta feita pelos demais hóspedes: Quem é este que até perdoa pecados? A perícope culmina na resposta que, apesar de não ser formulada, só pode ser esta: o Filho de Deus. Esta é a formulação da fé, que no v.50 é atribuída à mulher. E só a mulher pode ter esta fé. Fé é sempre a fé no perdão dos pecados.

II — Escopo

A vantagem que o pequeno pecador leva sobre o grande é superada pelo perdão, pois o grande amor que nasce do grande pecado perdoado está mais intimamente ligado a Deus do que o amor em pequena proporção e que, por isso, também despreza o perdão.

III — Meditação

Lucas anuncia o Evangelho em forma de uma história. Para a nossa prédica isto também é fundamental. Só que a prédica não se pode dar por satisfeita em reproduzi-la, mesmo que a ela sejam acrescidas explicações complementares. O relato de Lucas, antes de mais nada, exige uma colocação pessoal diante do ocorrido. Ele não permite que nós permaneçamos como e o que somos. O ideal seria preservar o anúncio original, deixando-o ficar transparente ao ouvinte, de tal forma que ele consiga reconhecer em si próprio o hospedeiro Simão. E isto não é fácil, uma vez que o fariseu, é, para nós, um tipo muito caricaturado. Justamente por isso, a imagem do farisaísmo precisa ser corrigida.

Se o ouvinte deve reencontrar-se na figura deste fariseu, é necessário deixar claro que o fariseu está numa busca sincera, num questionamento intimo profundo. Ele simplesmente poderia ter evitado Jesus, mas é lhe impossível passar por ele. Ele quer conhecê-lo melhor. Ele não se dá por satisfeito com o que os outros dizem sobre Jesus. Simão quer falar pessoalmente com Jesus e também espera muito dele. Ele deve contar com que seus companheiros de grupo, que há muito já têm uma opinião formada sobre Jesus, irão criticá-lo por sua atitude. Mas tudo isso não importa.

Simão entra em contato com pessoas, com as quais melhor seria nem se encontrar. E nós entendemos muito bem a sua situação: também estamos numa sociedade que possui os seus grupos (nossas comunidades são centros de tradições germânicas). Neles, nós (também pastores) nos sentimos bem, como Simão. A esses grupos, pessoas como a mulher não têrn acesso. E, quando alguém como ela consegue chegar a um destes grupos — não porque o queira, mas porque Jesus exerce esta força de atração —, ai isso acontece, unicamente porque nos nossos encontros (= cultos) ela pode ficar anônima. O limite estabelecido por Simão entre ele e a mulher não é de ordem sociológica, mas é determinado pela oposição existente entre o justo e o desobediente a vontade de Deus.

Com mães solteiras, prostitutas, (ex-)dententos, favelados, não gostamos de perder o nosso tempo. Entre nossos membros, é corrente a afirmação: Graças a Deus eu nunca roubei, nunca matei e nunca fui chamado à delegacia. Portanto, lava-se as mãos e, por sorte, alguém outro (às vezes) digna-se e rebaixa-se, indo ao encontro desse tipo de pessoas. Traçamos também limites de maneira tão violenta, achando que com isso estaremos resguardando a nossa integridade. O fariseu sabe muito bem quem e que tipo de mulher é aquela que tocou Jesus. E, com uma lógica sem precedentes, ele conta com que Jesus esteja plenamente de acordo com a sua maneira de pensar. Porém o que ele vivência com Jesus é que: Quando os descrentes externam o seu juízo sobre Deus, acabam se condenando a si próprios. (Lutero)

A nossa prédica terá, assim, a tarefa de mostrar que o fariseu está longe de Jesus, porque não tem compreensão para o perdão. E o significado do perdão fica claro no ocorrido na história.

— Enquanto que Simão se pergunta que mulher é esta, Jesus fica calado. Gostamos de nos ocupar com o pecado — especialmente com o dos outros. O sensacionalismo criado em torno de tais casos fica evidente nos noticiários dos nossos jornais, rádio, TV e nos bate-papos de bar e de comadres. O reconhecimento deste fato, por isso, desaconselha uma análise da prostituição. Veja bem: Jesus só fala dos pecados da mulher, no momento em que os perdoa (cf. v.47). Ele não desvenda pecados, mas os encobre.

— Aos olhos do ouvinte da prédica, o agir da mulher é estranho. A mulher está fora de si de alegria e gratidão, pelo simples fato de Jesus não a rejeitar. E nisto ela é autêntica. Ela não leva em conta o que os outros possam pensar sobre ela. Em tudo o que ela faz, ela está com aquele que, sem nada dizer, aceita o seu gesto de gratidão e amor. E nisto ela é exatamente o oposto do fariseu, que mostra preocupação consigo mesmo.

— O fariseu reconheceu que o perdão, proveniente do amor sem limites, evoca o amor, igualmente sem limites. Jesus não despreza a constatação de Simão, que diz ser a sua culpa menor do que a da mulher. Contudo, ele não consegue entender que ele próprio tem pecados, que ele próprio não consegue livrar-se deles. A palavra chave — perdão (v.42) — é tudo aquilo que nos alegra, sem que nos precisemos esforçar por isso. O bom tempo, a saúde, o amor, a alegria nos são impotantes, mas de modo algum podemos adquiri-los. Aqui bem que poderíamos levantar a pergunta sobre o sentido de afirmações, feitas nos momentos de dor, tais como: Eu não mereci isso. Assim, talvez pudéssemos descobrir que passamos desapercebidos e cegos por muitos sinais do perdão, e que, quando as coisas não correm a nosso contento, nós vacilamos. Deus nos perdoa, a fim de que aprendamos a amar, tanto aquele que nos perdoa, quanto aquele que precisa do nosso perdão.

Com Jesus acontece o que Paulo escreve em Rm 5.20: Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde abundou o pecado, superabundou a graça. E é por isso que também últimos serão primeiros e primeiros serão últimos.

IV — Subsídios litúrgicos

1. Intróito: Salmo 118.1,4-8

2. Confissão de pecados: Estamos aqui, Senhor Deus e Pai, ante a tua face Queremos ouvir a tua Palavra. Apesar de estarmos sentados lado a lado, muito pouco nos importamos uns com os outros. E, quando nos importamos, vemos nos outros muito mais as suas falhas, seus erros. Senhor, pedimos-te: deixa-nos inquietos, para que possamos mudar e ser diferentes. Faze de nos a tua comunidade, a fim de que sejamos membros, como os do corpo, unidos, trabalhando para o mesmo fim, o teu Reino. E então transforma-nos também em instrumentos de tua paz junto aos nossos irmãos. Nesta confiança, humildemente te pedimos: tem piedade de nós, Senhor!

3. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus! Todos nós queremos uma vida realizada. Tu vieste dar-nos esta vida em Jesus Cristo. Não permitas Que nos cansemos de procurá-la, e dá que também a encontremos, pois é dela que mais, precisamos. Isso te pedimos em nome do nosso Salvador, Jesus Cristo. Amém

4. Assuntos para a intercessão na oração final: A nossa preocupação de resguardarmos a nossa integridade e o nosso bom nome nos leva ao perigo ao acomodamento. Ela cria também, entre nós, grupos fechados e satisfeitos consigo mesmos. Pedimos que os nossos olhos sejam abertos para esta realidade e que sejamos despertados a uma luta conosco mesmos. — Pedimos que a aceitação das pessoas não seja apenas um gesto meramente formal de nossa parte, mas urna autêntica expressão de amor. A não-aceitação gera e cria revolta e sofrimento, principalmente naqueles que são marginalizados pela sociedade (e por nós) e que não têm vez, nem voz. Pedimos que sejamos despertados e levados ao encontro destas pessoas, empenhando-nos, assim, pela sua aceitação, como sinal do amor e do perdão oferecidos em Jesus Cristo. - Pedimos para que lutemos contra a nossa cegueira para com o nosso próprio pecado, e para que também deixemos de ver sempre e em primeiro lugar os pecados dos outros. — Pedimos que tenhamos coragem para sair de nosso lugar sossegado e da nossa acomodação, e que percamos o medo de nos envolvermos em favor daqueles que estão envolvidos pela lama do pecado e, lá, testemunhemos, através do nosso agir, o perdão também oferecido a eles.

V — Bibliografia

- BRAKEMEIER, G. O mundo contemporâneo do Novo Testamento. São Leopoldo, s.d. (preleção).
- GORGULHO, G. e ANDERSON, A. O caminho da paz — Lucas. 2. ed. São Paulo, 1980.
- SCHMID, J. Das Evangelium nach Lukas. In: Regensburger Neues Testament. Vol. 3. 4. ed. Regensburg, 1960.
- STOEVESANDT, H. Meditação sobre Lucas 7.36-50. In: Hören und Fragen. Vol. 3/2. Neukirchen-Vluyn, 1975.
- VOIGT, G. Meditação sobre Lucas 7.36-50. In: Der Rechte Weinstock. Göttingen, 1968.


Autor(a): Otto Porzel Filho
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 12º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 36 / Versículo Final: 50
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1982 / Volume: 8
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 18221
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