Gênesis 8.15-22 - Ações de Graças (urbano)

Auxílio Homilético

27/07/1976

Prédica: Gênesis 8.15-22
Autor: Bertholdo Weber
Data Litúrgica: Domingo de Ação de Graças (em ambiente urbano)
Proclamar Libertação - Volume: I
Tema: Ação de Graças

O dia da graça pela colheita (Erntedankfest) tem o seu lugar vivencial no contexto de festas tradicionais, aliás muito antigas, cultivadas especialmente entre a população rural por ocasião da sega dos primeiros frutos ou da colheita quando recolheres do campo o fruto do teu trabalho (Êx 23.16).

Em Israel - isso é importante ainda para nós! - os profetas lutavam contra a tendência de transformar Jahvé, o Deus que age com o seu povo na história, em divindade pagã, que garantiria a fertilidade da natureza (Baal). Sendo uma festa tipicamente agrária - qual é o sentido de um culto especial de ações de graça pela colheita no ano eclesiástico? Tem ela uma mensagem também para os habitantes da cidade em nossa era tecnológica, caracterizada por racionalização, domínio sobre a natureza e automação crescente? Não são as obras criadas pelo homem em nossos dias as que causam a nossa maior admiração?

Em nossas comunidades rurais este dia é comemorado por um culto especial, com a oferta de frutos e verduras que enfeitam o altar em sinal de gratidão ao Criador e doador de todas as boas dádivas (do qual nos falam especialmente os salmos, p. ex. Salmo 104.27-33)- Mas será que este dia da graça tem sentido somente para os agricultores e a população rural, que sente - assim se diz -.de maneira mais imediata sua dependência de fatores naturais e condições meteorológicas, portanto de um poder fora do seu alcance? O habitante da cidade, que compra os produtos agrícolas prontos no armazém ou no supermercado, não sente tanto na própria carne esta dependência como o colono - assim se poderia pensar. E realmente, a festa da colheita para muitos moradores da cidade se tornou estranha! uma festividade da colônia artificialmente transplantada para a cidade, que lhes diz muito pouco para sua vida urbana.

Para os ex-colonos, que se mudaram do interior, esta festa apenas desperta saudades nostálgicas dos bons tempos quando ainda cultivavam suas terras.

De fato, a vida do habitante da cidade, seu êxito profissional como comerciante, industrialista, empregado, funcionário, etc., não dependem em primeira linha de fatores da natureza. Mas seria precipitado concluir daí que o colono, por ser mais ligado à natureza, estivesse automaticamente mais próximo de Deus, e que por outro lado o homem moderno, envolvido no processo econômico racionalizado e na produção mecanizada, não possuísse mais uma antena para Deus. O Deus da Bíblia, em todo caso, não é uma divindade restrita aos acontecimentos da natureza, e sangue e solo podem transformar-se em ídolos tão bem como o motor, o progresso econômico, a produtividade e o consumo na sociedade moderna...

O dia de ações de graça tem por finalidade agradecer a Deus por tudo o que temos recebido em bens materiais, se já diretamente da terra ou em forma de produtos manufaturados, e em bens espirituais que o Senhor nos confiou como dons para administrá-los responsavelmente em benefício do nosso próximo, de todos enfim. Mesmo se não colhermos frutos ou verduras no quintal com os quais poderíamos enfeitar o altar, temos motivo de agradecer e de ouvir o que Deus nos quer dizer neste dia.

O texto da prédica não nos é fornecido pelos frutos do campo e não é através dos produtos que chegamos a conhecer o coração e a benignidade do Senhor, mas abrindo a Bíblia e ouvindo a sua palavra, sua verdade libertadora. A partir desta palavra do Deus vivo chegamos a compreender que a natureza e tudo menos um poder independente e autônomo, mas é determinada e mantida pela ordem daquele que criou e quer conservar a vida. Sua promessa de fidelidade invariável nos dá a confiança na bondade da vida que fundamenta a certeza: na raiz da realidade, da criação, impera, apesar das desordens e da experiência do absurdo, uma ordem fundamental e permanente. Compreendemos à luz desta palavra que não é natural que, se plantamos, também colhemos, que não é lógico que o dia segue após a noite, e que após a tempestade reaparece o sol.

Atrás e acima de tudo que o homem esclarecido chama de leis da natureza, na verdade está aquele do qual o salmista confessa: Tu me cercas por trás e por diante, e sobre mim pões a tua mão. Quão maravilhosas são as tuas obras, Senhor.' Toda a nossa existência e a da criação inteira depende, inclusive o nosso trabalho e esforço, em última instância, dos cuidados, da bondade e da bênção do Pai, que não é somente o doador das dádivas espirituais, mas também do pão de cada dia. Todos, não somente o colono, não somente os crentes e piedosos, vivem desta fidelidade generosa e imerecida de Deus, que faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos. Este reconhecimento nos torna gratos e humildes, nos conscientiza da nossa responsabilidade que temos na administração dos bens da terra em nossos dias. Onde falta essa gratidão e responsabilidade do homem como cooperador e mordomo de Deus, onde ele mesmo quer ser seu próprio senhor, que acumula bens materiais e explora os seus semelhantes, aí está em jogo o mundo e a vida nele existente.

As primeiras páginas da Bíblia nos relatam de como o homem provocou, por sua rebelião e desobediência, a ira e o juízo de Deus, em forma do dilúvio. Disso fala o nosso texto:

Gênesis 8.15-22

O contexto nos mostra que neste trecho não se trata apenas de um relato de uma catástrofe cósmica, da qual falam também mitos e sagas de outros povos. A Bíblia interpreta todo este evento como o juízo de Deus sobre uma humanidade perversa; a separação e o distanciamento do homem de seu criador, da qual nos fala a história da queda, tem as suas consequências em todas as dimensões da vida: A terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violência. A situação não era diferente da de hoje: Assim como nos dias anteriores ao dilúvio, comiam e bebiam, casavam e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca (Jesus). E, como hoje, adoravam e serviam a criatura, em lugar do Criador (Rm 1.25). Deus se arrepende de ter feito o homem e, vendo que toda a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era mau todo desígnio de seu coração, resolve fazê-lo desaparecer da face da terra. E veio o dilúvio, que manifesta de modo inequívoco quão sério Deus toma o pecado da rebeldia de suas criaturas, mas também revela sua vontade salvífica e sua graça em meio ao juízo destruidor. Sua misericórdia e fidelidade triunfam sobre sua ira de juízo: Noé é salvo, porque achou graça diante do Senhor (6.8), e com ele seus filhos e as criaturas que garantem a continuidade da criação. Também agora Deus toma a iniciativa, abre a arca e faz sair dela todos os seres sobreviventes para um novo começo de vida. Com os seus holocaustos Noé quer propiciar a Deus e agradecer-lhe pela salvação. E Deus, aceitando este sacrifício reconciliador, faz, de livre e espontânea vontade, uma aliança com Noé cuja atitude corresponde a este pacto de Deus. E nesta aliança de Deus com o homem esta incluída toda a criação restante. Aqui transparece a conexão do destino do homem com as demais criaturas, sua responsabilidade pela preservação da vida e sua esperança de redenção (Rm 8).

Também agora continua sendo verdade - e o autor parece auscultar a disposição resignada do coração de Deus: é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade. Mas em face da oferta de Noé, Deus resolve conter a sua santa ira: Não tornarei a ferir todo o vivente, como fiz. - O coração do homem é mau - esta verdade não deve ser atenuada por um humanismo romântico que afirma ser o homem bom de natureza. Justamente este é o milagre da graça para com este homem: Deus faz prevalecer sua paciência, transige e cede, dando-lhe uma chance no futuro. A humanidade, que merecia ser extinta da face da terra, está agora, com toda sua maldade, incluída na aliança de sua graça, é carregada pela paciência divina.

Deus não se retirou do mundo depois da criação, deixando-a entregue a seu próprio destino, como o relojoeiro o relógio, mas continua fiel a sua criação; e nem a maldade do coração, nem a infidelidade e ingratidão do homem podem desfazer a sua vontade de preservar e recuperar a sua criação caída. Nesta vontade salvífica se baseia a ordem da natureza: Sua fidelidade nos sustenta e nos dá a confiança no viver, trabalhar e planejar. Nós todos vivemos desta fidelidade nas ordens estabelecidas por Deus: Sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite. Sem esta fidelidade contínua não haveria condições para a vida humana. Apesar dos desígnios maus do homem Deus resolve não mais extinguir os viventes e entregar o mundo aos poderes do caos, que é destruição... Deus concede e garante a continuidade da vida por seu amor e por sua bênção contida nas dádivas da natureza.

Certamente Deus não dispensa o nosso trabalho e o nosso suor para ganhar o pão de cada dia. Ele quer a nossa cooperação criativa, o emprego de nossas forças e da nossa razão. A fé que tudo depende de Deus não nos torna passivos, mas nos mostra a nossa responsabilidade que temos pela humanização da vida neste mundo.

Não podemos comemorar o dia da graça sem refletir sobre a situação de nossos dias. Não precisamos ser futurólogos para conscientizar-nos da gravidade da situação atual e futura. A humanidade se torna sempre mais uma grande família caracterizada pela interdependência dos povos. (Crise provocada pelo petróleo). As reservas da natureza, assim os cientistas no-lo provam, não são inesgotáveis, elas diminuem tanto mais rapidamente quanto mais cresce a população do mundo. No entanto a terra poderia alimentar todos os viventes deste planeta se todos tivessem a possibilidade de participação justa nos bens produzidos e na renda global.

Conscientes de que a produção agrícola constitui o alicerce primeiro, sobre o qual haverá de assentar-se o processo do desenvolvimento integral, nós, neste dia, dando louvor e graças ao Criador, também queremos reconhecer o esforço e a rude lida do homem que trabalha a terra. O pão de cada dia e o pão comunitário, e antes de chegar em nossa mesa, em nossa casa, tudo o que necessitamos para a subsistência da vida passa pelas mãos calejadas de nossos irmãos. Sabemos também que não são só a má sorte, as intempéries e as práticas superadas no cultivo da terra que obstaculizam a integração e participação, de uma alta percentagem da população marginalizada, do bem-estar social e da prosperidade reservada ainda a uma minoria privilegiada. Estamos ainda longe de uma justiça social eficiente. Todos têm o direito de viver uma vida digna da pessoa humana e participar da justa distribuição dos bens. Formamos uma família de filhos do Pai cujo amor e bondade não são discriminatórios e diante do qual não vale o que temos, mas o que somos pela vivência de fé em comunhão e amor. Ele, neste dia, também nos pergunta pelo nosso irmão necessitado, injustiçado e oprimido, o faminto e espoliado. Nossa gratidão a Deus não pode consistir só em palavras, nem limitar-se a uma esmola oportunamente dada a um pobre mendigo. A misericórdia imerecida do Criador, que nos faz colher o que plantamos, nos obriga a empenharmo-nos em solidariedade eficaz pela sorte de nossos próximos, vítimas de uma voraz sociedade de consumo, de estruturas injustas, de egoísmo e de discriminação social. Agradecer a Deus é repartir o pão com o pobre, e engajar-se por uma justiça social mais concreta, e dar ao outro uma chance de viver como filho de Deus.

Mas não nos iludamos: Os desígnios do coração do homem são maus. E aqui não adiantam apelos morais visando a mobilização das forças construtivas da sociedade. O pecado é um poder dominador. E não logramos sair da nossa situação de escravos do pecado, se o Filho de Deus não nos libertar para uma nova vida. Deus conserva a sua criação caída com paciência, mas o que lhe importa é a nova criação inaugurada na morte e ressurreição de Cristo. Só homens renascidos pelo Espírito de Deus, só corações em que Cristo é o Senhor, são capazes de ser testemunhas, em palavra e ação, desta nova criação, do novo céu e da nova terra em que reinam justiça e paz.

Quando seu amor nos conquista e orienta podemos contribuir com nossa parcela para a renovação da sociedade e do mundo. Deus tem uma paciência incrível com esta humanidade, que hoje como nos tempos de Noé mereceria o juízo. Não sabemos que tempo futuro Deus reservou em seus desígnios para os homens. Em parte o futuro se decide já no presente. O equilíbrio ecológico é abalado, a poluição e o caos do trânsito tornam a vida das grandes cidades sempre mais problemática. A defasagem entre os ricos, seja em bens materiais ou espirituais, e os pobres e analfabetos aumenta e cria um clima de mal-estar social. Aquele que reconciliou o mundo consigo nos chama para sermos seus cooperadores, mensageiros da salvação do homem inteiro: ele necessita tão bem do pão de cada dia como do Pão da vida, da vida plena em comunhão com Deus e os irmãos. A cristandade toda e cada membro em seu lugar têm hoje a missão de testemunhar, com sobriedade e pela vivência do dia-a-dia, o reino daquele que é o Senhor do mundo e da história e que nos proporciona o pão e a paz. Nossa gratidão consiste no servir a Deus nos irmãos, repartindo fraternalmente a riqueza da bênção que Deus em sua bondade proporciona a todos nós. Suas dádivas que nos sustentam são sinais de sua paciência e espera que voltemos Aquele que na cruz sofreu o juízo em nosso lugar e no qual Deus oferece a vida ao mundo.

Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Bertoldo Weber
Âmbito: IECLB
Testamento: Antigo / Livro: Gênesis / Capitulo: 8 / Versículo Inicial: 15 / Versículo Final: 22
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1976 / Volume: 1
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 6937
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Porque nem eu nem tu jamais poderíamos saber algo a respeito de Cristo ou crer nele e conseguir que seja nosso Senhor, se o espírito não o oferecesse e presenteasse ao coração pela pregação do Evangelho.
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