Lucas 18.1-8a

01/11/1998

Prédica: Lucas 18.1-8a
Leituras: Gênesis 32.23-31 e II Timóteo 3.14-4.5
Autor: Nilo O. Christmann
Data Litúrgica: 22º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 01/11/1998
Proclamar Libertação - Volume: XXIII
Tema:

1. Fato da vida

Nos dias em que escrevo este texto os noticiários estão ocupados em divulgar as atrocidades cometidas pela Polícia Militar de Diadema - SP. As cenas flagradas pelo cinegrafista amador mostram uma sequência de espancamentos e humilhações sofridas por pessoas na rua. Em determinado momento, a PM faz alguns disparos, assassinando de maneira brutal e covarde um mecânico. A viúva disse, em entrevista, que espera que se faça justiça, não apenas por sua causa, mas também para que fatos como esse não venham a se repetir.

Uma viúva! Pessoa simples! Clamando por justiça! Como, por acaso, uma câmara registrou a cena lamentável, há indícios de que alguma providência venha a ser tomada. No entanto, e esta é a pergunta, se a cena não tivesse sido filmada, quais seriam as chances de que aquela viúva fosse ouvida e os policiais envolvidos no assassinato indiciados e julgados? Por aí se percebe que o exemplo usado por Jesus no texto de Lc 18.1-8a é de uma atualidade impressionante! Mas vejamos o texto.

2. Delimitação e acentos na interpretação

A parábola do juiz iníquo (Almeida) é, à primeira vista, um texto de fácil compreensão. No entanto, quando analisado em seus detalhes e em seu contexto imediato e maior surgem diversas dúvidas e, com isso, a possibilidade de diversas ênfases na interpretação. Tanto assim que no PL VIII (p. 343ss.) o texto ainda inclui o v. 8b. O mesmo já não ocorre no PL XX (p. 291 ss.), no qual esta frase final do v. 8 é excluída da perícope.

O argumento é de que, pelo seu conteúdo, 8b estaria deslocado, não tendo relação direta com a parábola. Neste caso, seria melhor relacionar 8b com a perícope anterior 17.22-37 (A vinda do Reino de Deus) -, em que o tema efetivamente é a escatologia (Schmidt, p. 401). Ressalte-se, porém, que esse é o único argumento para não incluir 8b na perícope. Não há, em termos de crítica textual, nenhum indício de que o texto, assim como o temos hoje, não tenha sido a versão original de Lucas. Se alguém optar, porém, cm incluir 8b no texto, não deveria colocar ali o acento da pregação.

3. Lucas e a parábola

A parábola do juiz iníquo é material exclusivo de Lucas, assim como as duas perícopes anteriores (a cura dos dez leprosos e a vinda do Reino de Deus), bem como a perícope seguinte (a parábola do fariseu e do publicano). Note-se ainda a afinidade que o texto tem com a parábola do amigo importuno, em Lc 11.5-8, de modo especial no tocante à oração e à importunação.

Tudo indica que Jesus falou essa parábola aos discípulos (17.1,22!). Percebe-se, porém, que o v. l e o v. 7 muito provavelmente refletem, de alguma forma, a situação da comunidade onde Lucas vivia. O texto pressupõe que há inquietação por parte dos cristãos em relação às injustiças (perseguições!?) que sofrem e diante da aparente demora de Deus em ouvir o seu clamor.

4. A força da parábola

É inquestionável a força que as parábolas possuem na comunicação. J. Jeremias (p. 9) afirma que elas têm a capacidade de levar os ouvintes a um mundo que lhes é familiar, em que tudo é tão simples e claro, a ponto de o ouvinte não poder dar outra resposta que não seja: Sim, de fato é assim. E, no entanto, como as parábolas percorreram um caminho relativamente longo desde que foram ditas por Jesus até seu registro por escrito nos evangelhos, vez por outra surgem dúvidas quanto ao sentido que elas tiveram originalmente. Isso explica, em parte, as diferentes ênfases a partir de um mesmo texto e nos lembra, ademais, que a nossa busca é sempre uma tentativa de nos aproximarmos, o quanto mais possível, do texto, compreendendo-o na sua época e tentando fazê-lo falar para dentro da nossa realidade. No caso específico da parábola do juiz iníquo, a viúva tem um papel decisivo. A sua atitude dá dinâmica aos fatos. Isso justifica que perguntemos pelo lugar da viúva na sociedade judaica da época.

Não é novidade afirmar que às mulheres cabia um papel secundário. O modelo social fazia com que os seus direitos de participar, aprender e decidir eram restritos. E quando uma mulher era pobre e viúva a situação se complicava ainda mais. Não é por acaso que as viúvas (ao lado dos órfãos) são tantas vezes mencionadas já no Antigo Testamento, e via de regra no sentido de que a sua condição seja considerada. Veja-se, por exemplo, o livro de Deuteronômio: 10.18 - a justiça de Deus em relação à viúva ; 14.29 - a participação no dízimo; 16.11,14 - a participação nas festas; 24.17-18,19-22 - os direitos da viúva; 27.19 - a maldição sobre quem perverter o direito da viúva.

Os livros proféticos denunciam a exploração das viúvas. Veja, por exemplo, Jr 6.7; 22.3; Is 1.17,23. Somadas a outros textos, essas passagens confirmam que já no AT a viuvez não era apenas um estado civil sofrido, mas a perda de toda a base econômica (Kramer, p. 24), implicando marginalização, miséria e dependência.

Nada indica que no tempo de Jesus a situação das viúvas fosse outra. Dentre os evangelhos, de maneira especial em Lucas, as viúvas são mencionadas diversas vezes: 2.37; 4.26; 20.47 e 21.2-3. Elas fazem parte das categorias marginais, ao lado de pobres, doentes, crianças, estrangeiros, etc. É importante observar, sempre que mencionadas as viúvas aparecem como exemplo positivo, como alguém que deve ter os seus direitos respeitados ou que é digna e necessitada de receber a atenção de Jesus. Assim também no texto em estudo, é a luta de uma viúva pelos seus direitos que serve de exemplo para Jesus comunicar a sua mensagem.

5. Enfoques

5.1. A viúva e nós

O primeiro ensinamento da parábola vem da viúva. Ela, uma mulher com certeza pobre, socialmente marginalizada, usa as armas de que dispõe para fazer valer o seu direito. Ela não entrega os pontos, não desiste, não resigna. Ao contrário, vai à luta, com coragem, com determinação e, principalmente, com persistência. Tanto assim que o juiz julga a sua causa contra o seu adversário. Não importa, por enquanto, o que convenceu o juiz. Importa a atitude que a viúva teve.

O v. 7 indica que a atitude da mulher em relação ao juiz deveria ser a dos discípulos e nossa quanto à oração. Significa, em outras palavras, que Jesus está animando e incentivando os seus seguidores para que orem sempre, para que não desistam, mesmo diante da impressão de que não estão sendo ouvidos ou mesmo que todas as evidências racionais e lógicas sejam contrárias.

Um indicativo de como deveria ser a oração está no texto seguinte: a parábola do fariseu e do publicano. Aliás, a temática da oração é uma das ligações entre os dois textos. Ali fica claro que a oração é atitude de humildade diante de Deus, daquele que conhece os seus limites, de quem se sente dependente Dele e, por isso mesmo, confia tudo em suas mãos. Com a oração entendida desta forma, não deveríamos nos cansar de colocar diante de Deus as nossas angústias e preocupações, também as injustiças, não esquecendo que oração também é intercessão. Ela é expressão de amor ao próximo.

O exemplo da viúva legitima o direito que Deus nos concede de sermos insistentes e persistentes em nossas orações (veja também Lc 11.9ss.). É nesse ponto que também se insere o texto previsto para a leitura, de Gn 32.23-31, em que Jacó luta (com Deus!?) e insiste em receber a bênção Dele.

5.2. O juiz e nós

O interlocutor da viúva na parábola é o juiz. As suas referências para o cargo síío as piores possíveis: não temia a Deus e não respeitava as outras pessoas (vv. 2 e 4). Mesmo assim, ele resolve julgar a causa da viúva para deixar de ser importunado. Não dá para imaginar de que forma a viúva poderia molestar o juiz, conforme tradução de Almeida. Na Bíblia na Linguagem de Hoje lemos que o juiz atendeu a viúva para não acabar ficando louco. A expressão condiz melhor com o andamento da parábola. Certamente aquele homem já não suportava mais ver aquela mulher na sua frente, azucrinando a sua vida.

E aí está o segundo paralelo para a qual a parábola quer apontar. Se até um juiz insensível atende a causa de uma pobre viúva, mesmo que seja para deixar de ser amolado, quanto mais Deus fará justiça para aqueles que Nele crêem e por ele clamam. Quer dizer, o juiz serve de referência para falar a respeito de Deus, mesmo mostrando que não há comparação entre eles. E a diferença fundamental é de que Deus atende os que por Ele clamam, não para se livrar de importunação, mas por amor, bondade, misericórdia. De algum modo, pulsa no v. 7 o Deus libertador que ouviu o clamor do povo na escravidão do Egito.

Deve-se perceber, no entanto, que fazer justiça, ação à qual o juiz se refere, não tem nada a ver com méritos, a exemplo da oração rezada pelo fariseu no texto seguinte. A justiça de Deus para com o seu povo está relacionada com a sua inconformidade diante da injustiça e do sofrimento, sofrimento que pode decorrer do testemunho da fé. Esse enunciado poderia valer para os discípulos, prevenindo-os quanto às dificuldades que teriam pela frente, como também para a realidade de muitas das primeiras comunidades cristãs, que sentiram na prática os conflitos e as perseguições decorrentes da expressão da fé em Jesus Cristo. Essas comunidades foram o berço da redação final do texto, contexto no qual se encaixa perfeitamente a indagação em torno da demora de Deus em atender o clamor do seu povo.

Contudo, a aparente demora é apenas uma forma de afirmar que nem sempre o ser humano compreende os propósitos de Deus, que faz as coisas acontecerem a seu modo e no seu devido tempo. Sem que com isso se abra, no entanto, espaço para duvidar do seu amor, da sua fidelidade e da sua sensibilidade diante da injustiça. Aliás, é justamente contra esse tipo de dedução, contra esse tipo de raciocínio que a parábola quer falar. É nessa situação que os seguidores de Jesus são estimulados a não desistir, a não entregar os pontos, mas a persistir na oração,«na confiança de que Deus, apesar das impressões em contrário, está presente e não tardará a socorrer os que clamam.

5.3. O risco da parábola

Em princípio, relacionando a persistência da viúva com a persistência na oração, e ainda a confiança de que Deus ouve e atende o clamor por sua imensa bondade, o entendimento e a atualização da parábola estariam encaminhados. Contudo, permanecendo apenas nisso, abre-se espaço para uma visão fatalista de mundo, na qual o cristão apenas é convidado a orar insistentemente, confiando em que Deus, algum dia, solucionará os problemas e as injustiças tão presentes e tão evidentes em nossa realidade. Essa já seria, de antemão, uma postura que não condiz com a vivência das primeiras comunidades cristãs que, em muitos casos, proclamaram o evangelho em meio a um ambiente adverso e hostil, fazendo-o com coragem e ousadia.

Entendemos que esse risco na atualização da parábola pode ser evitado, analisando-a como tal, mas não a restringindo ao direcionamento expresso nos vv. l e 6-8.

Quando Jesus recorre a esse exemplo, ele não deixa, de forma implícita, de aprovar a atitude daquela viúva e, ao mesmo tempo, de reprovar a postura do juiz, mesmo que lenha atendido a mulher depois da sua insistência. Sugerimos, assim, que a dinâmica interna da parábola, manifesta principalmente por uma viúva que luta de forma persistente por justiça, aponta para o tipo de oração que Deus espera de nós, aponta para a vontade de Deus em tornar o seu amor e a sua justiça presentes e concretas entre as pessoas; aponta, enfim, para aquela frase já antiga, mas sempre atual, que diz: Devemos orar como se tudo dependesse de Deus, e agir como se tudo dependesse de nós!

6. Pistas para a pregação

Uma forma de abordar o texto com a comunidade seria o uso de um exemplo como aquele que é mencionado no início deste auxílio homilético, relacionando-o com a pergunta que muitos se fazem diante de situações injustas: Por que Deus permite isso?

A partir daí pode-se enfatizar o amor e a misericórdia de Deus: se até um juiz iníquo atende alguém que clama, quanto mais Deus! É importante proclamar a presença de Deus e sua vontade de fazer justiça, mesmo quando as evidências parecem indicar o contrário.

A aparente demora de Deus em ouvir o clamor abre espaço e mostra que ainda é tempo de a Igreja anunciar o Reino de Deus (Pai-Nosso) e torná-lo presente em nosso mundo. E os que crêem em Jesus Cristo são chamados a fazê-lo em constante e persistente oração.

A atitude da viúva na parábola serve como motivação para sermos persistentes e insistentes. A oração não é um convite à passividade e ao fatalismo. Ela é um convite para que confiemos em Deus acima de tudo e ao compromisso com a vivência do evangelho, o que implica olhar para o próximo e lutar pela dignificação da sua vida.

7. Bibliografia

JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. São Paulo : Paulinas, 1980.
KRAMER, Pedro. O órfão e a viúva no livro de Deuteronômio. Estudos Bíblicos, Petrópolis, Vozes, v. 27, p. 20-28, 1990.
SCHMID, Josef. El Evangelio según San Lucas. Barcelona : Herder, 1968.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Nilo O. Christmann
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 22º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 18 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 8
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1997 / Volume: 23
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7111
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