João 1.43-51

19/01/2003

Prédica: João 1.43-51
Leituras: I Samuel 3.1-10 e I Coríntios 6.12-20
Autor: Silfredo Bernardo Dalferth
Data Litúrgica: 2º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 19/01/2003
Proclamar Libertação - Volume: XXVIII
Tema:

1. Considerações exegéticas

Analisando o texto de Jo 1.43-51 do ponto de vista da sucessão dos fatos, podemos constatar um crescendo teológico, conforme um esquema de pergunta-resposta. Não há contradições e desencontros. As perguntas são respondidas claramente e numa sucessão de continuidade. Os acontecimentos preenchem algo já esperado. Neste ponto, a referência ao lugar onde Natanael está, à sombra de uma figueira, é importante, pois remete para a realidade de que se trata de um israelita no lugar de meditação e está à procura de respostas. Tratava-se de um lugar em que rabinos costumavam procurar serenidade e calma para o estudo das Sagradas Escrituras.

Da mesma forma como no desenrolar das questões teológicas, também no plano pessoal há um crescendo na intimidade. O texto é carregado de emoção. O encontro de Jesus e de Natanael não se restringe à fé/salvação e compreensão da verdade, mas inclui também a pessoalidade do encontro entre Jesus e Natanael.

A mesma sincronia mantém-se mais adiante, quando não se verifica nenhuma contradição entre fé judaica e a confissão de fé no Cristo. Aliás, o próprio Cristo refere-se a Natanael como sendo um verdadeiro judeu sem dolo (v. 47). O fato de Jesus qualificar a Natanael como um verdadeiro judeu sem dolo não quer expressar sua admiração por algum nível moral extraordinário. Devemos compreender esta qualificação de Natanael por Jesus dentro da autocompreensão da lei judaica. Para a Tora, está claro que a centralidade da lei não está simplesmente na normatividade ética e no seu aspecto proibitivo, mas fundamentalmente como compromisso de fidelidade incondicional com Deus. A lei deve ser compreendida dentro da aliança de Deus com o povo de Israel, a dádiva da liberdade, da terra prometida (Êx 19).

A centralidade da lei está, por isto, no fato de que, através dela, o povo da aliança mostra que vive através de Deus. Neste sentido, a qualificação de Jesus não ó simplesmente moral e dica, mas como a qualificação da fé e da fidelidade de Natanael a Deus. A aliança de Deus e o seu povo é, neste caso, vivida também individualmente, no relacionamento de Natanael com o Deus da aliança.

Podemos chegar à conclusão de que, para Jesus, a f é e a fidelidade a Deus não acontecem somente depois da pessoa estar no discipulado cristão, mas esta pode ser anterior, na fé judaica. A pureza da fé de Natanael percebe que muitas das suas perguntas judaicas são respondidas agora, de modo claro e surpreendente. A sintonia teológica e a sintonia pessoal superam as expectativas existentes até o momento untes do encontro.

O texto deixa claro que Jesus não inventou um novo primeiro mandamento, mas na continuidade estão as respostas para as expectativas e perguntas da fé judaica: Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiram os profetas, Jesus, o Nazareno, filho de José (v. 45). A proposição da narrativa coloca os títulos de diferentes tradições Filho de Deus, Filho do homem e rei de Israel lado a lado, praticamente como sinônimos.

Os títulos divinos Filho de Deus e Filho do homem devem ser entendidos no contexto do Evangelho de João, centrado na encarnação divina. Não se trata de uma presença de Deus em Cristo, mas do próprio Deus. Neste ponto, o texto reflete a preocupação de João em todo o evangelho. Conforme Kümmel, a preocupação de João não é, como nos sinóticos, o relato de fatos, mas a consistência da fundamentação teológica da filiação divina. Para o próprio evangelista João, esta intenção é consciente: Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome (20.30s.).

Para S. Schulz, a perícope faz parte de uma coletânea anterior a João, a fonte dos sinais pró-semítica (die semitierende Zeichen-Quelle). Natanael percebeu no saber de Jesus a divindade que supera a condição humana. Nisto está a base da confissão de fé de Natanael.
Diferentemente dos evangelhos sinóticos, onde o chamado para o discipulado está na radicalidade do seguimento, deixando tudo para trás, neste texto a compreensão assume a centralidade teológica. A sabedoria de Deus está em Cristo: Ele sabe todas as coisas; o ponto-chave para o novo discípulo é a compreensão correta. Em vários momentos, encontramos a costura das diferentes perspectivas do texto através do ver: o recém-chamado discípulo Felipe dá o seu testemunho para Natanael, convidando-o com um vem e vê; Jesus diz a Nataniel que, antes de Felipe chamá-lo, eu te vi debaixo da figueira; a promessa que Jesus faz para Natanael é que maiores coisas verá no futuro; finalmente, no versículo conclusivo, Jesus faz a promessa vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem com direcionamento coletivo. Esta última figura tem uma estrutura análoga à do sonho de Jacó, conforme Gn 28.10ss. No sonho de .Jacó (o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo), Deus reafirma a promessa da terra prometida e da grandiosidade do povo de Israel, para ser bênção para todas as famílias da terra. De uma forma nova, o portal para o céu unido às promessas de Deus ao seu povo agora está sobre o Filho do homem. Podemos resumir que os sinais ajudam a visão, para a compreensão da centralidade de tudo: o Pai e o Filho são um só. E esta unidade entre Deus e Cristo está vinculada à expectativa escatológica judaica do Filho do homem, assumindo e su¬perando as esperanças históricas e apocalípticas.

Constatamos, no Evangelho de João, a rigor, uma dependência do Filho de Deus em relação a Deus Pai: o Pai é maior do que eu (24.28); o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai (5.19). Porém, da mesma forma, constatamos que há uma identificação total de Deus com Cristo: Eu e o Pai somos um. (10.30). João acentua que a exclusividade divina está em Cristo: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim (14.6)

No reconhecimento total da divindade de Jesus está o desfecho da perícope de João 1.43-51: o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem (v. 51). Assim como o título Filho de Deus, o título Filho do homem igualmente tem significado marcante, apesar de pouco encontrado no Evangelho de João. Considerando o todo do Evangelho, João coloca ambos os títulos praticamente como sinônimos: o céu aberto sobre Jesus dá um caráter definitivo da filiação divina do Cristo. Não se trata do céu como ponto de referência, mas o céu se abre onde Cristo se encontra. Onde está Cristo, o céu se abre. Em Cristo, está o acesso a Deus e aos anjos de Deus. Da mesma forma, podemos formular a importante constatação de que o acesso de Deus ao mundo está em Cristo. Deus abre o céu para descer, ele e os anjos, ali onde Jesus está.

2. Caminhos para a prédica

A prédica deverá tematizar que a fé em Cristo é uma unidade de várias dimensões: a pessoalidade do encontro com Jesus, a compreensão e o reconhecimento da divindade de Cristo e a vinda de Cristo como preenchimento das expectativas históricas. Os três aspectos não se sobrepõe, mas formam uma unidade de várias dimensões que se permeiam, sem que possa haver separação entre elas. Parece evidente que a fé não é simplesmente aceitar verdades divinas, mas um encontro pessoal de Deus conosco. Neste encontro de Deus conosco, percebemos que as nossas expectativas históricas e humanas são respondidas. Assim como respondeu às perguntas religiosas/políticas do seu tempo, Cristo é a resposta às perguntas e expectativas humanas implícitas da nossa história e situação.

A centralidade teológica do Cristo não deve ser tratada simplesmente como dogma ou verdade doutrinária, mas como a forma mais profunda possível que Deus encontrou para ser humano, partilhar a nossa angústia e plenificação espiritual. É fundamental constatar que Deus não está no céu, mas em Cristo; o céu está onde Deus vem habitar entre nós, isto é, o céu está onde está Deus. No acesso de Deus a nós em Cristo, o céu acontece e faz parte da história e vida humanas.

Depois dos fatos narrados no texto, temos até a liberdade de perguntar pela necessidade dos conflitos na comunidade e até entre diferentes confissões de fé. Há necessidade de conflito? Há necessidade de que vários pontos de vista sejam contrapostos? Não poderiam ser complementos e aprofundamentos uns dos outros? Na textura teológica do texto, podemos afirmar que, no tocante ao diálogo religioso, Cristo não veio para destruir a religião, mas aprofundá-la até o seu cerne, na medida em que dá o sentido mais profundo à vida humana. Conforme o texto, podemos afirmar que Cristo não trouxe uma nova fé e novos mandamentos, mas a humanidade de Deus para se confundir com a vida humana, na partilha da vida divina e humana.

3. Subsídios litúrgicos

Oração de oferta:

Deus, tu deste a tua vida por nós e nos ofereces o teu perdão, acolhendo-nos e curando a nossa vida. Necessitamos da tua palavra de amor, dita pessoalmente e com todo o sentimento para a humanidade. Pedimos que envies o teu Santo Espírito para que a tua igreja não fraqueje, mas permaneça fiel ao testemunho de transformar o mundo. Em gratidão por teu amor, queremos corresponder com nossa vida, com nosso fazer e deixar, com o que somos e o que não somos, o que temos e não temos. Ajuda-nos, Senhor e Deus nosso. Por Cristo Jesus, na força do Espírito Santo, junto a Deus Pai. Amém.

Confissão de pecados:

Deus, Mãe e Pai, em cada dia da nossa vida temos a oportunidade de ter boa convivência. Por outro lado, temos dificuldades de relacionamento e nos sentimos frustrados quando vivemos irreconciliados com o nosso próximo. Sabemos que, a longo prazo, a vida centrada em nós mesmos é sem sentido, pesada, levando-nos para a solidão.

Deus dos nossos dias, diariamente perdoas tanta culpa; deveríamos nós, então, ser impacientes com nossas irmãs e irmãos e não perdoar a quem tu perdoas, e a não amar a quem tu amas?

Querido Deus, pedimos-te perdão por falhas conscientes e pelas que escapam da nossa percepção. Somos tão pequenos e fracos para perdoar. Tu, porém, sabes fazer nascer de madeira morta novos brotos para reiniciar a vida, sabes transformar nossos rostos e corações.

Por nós mesmos não conseguimos melhorar nossas atitudes. Por isto, pedimos-te: faz com que enxerguemos a realidade em que estamos e concede a força do teu Santo Espírito para melhorar a nossa vida.

Liberta-nos do pecado e da culpa para que possamos viver em comunhão contigo e entre nós. Cura a nossa vida. Perdoa o nosso pecado e nos liberta da culpa para um novo começo. Por Cristo Jesus: Tem, Senhor, piedade!

Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Silfredo Bernardo Dalferth
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: 2º Domingo após Epifania
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 43 / Versículo Final: 51
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2002 / Volume: 28
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7146
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