Romanos 3.21-25a

02/06/2002

Prédica: Romanos 3.21-25a
Leituras: Salmo 31.1-5 e Mateus 7.21-29
Autor: Valdemar Lückemeyer
Data Litúrgica: 2º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 02/06/2002
Proclamar Libertação - Volume: XXVII
Tema:

1. Introdução

O nosso texto, ampliado por alguns versículos (l9 a 28), já foi estudado várias vezes em PL e sempre indicado para o Dia da Reforma. Com a delimitação proposta, vv. 21 a 25a, e indicado para o 2° Domingo após Pentecostes, é a primeira vez. Recomendo a quem tiver tempo ler os subsídios elaborados por L. Weingärtner em PL III, p. 263(!)ss, por A. E. Kunert em PL XX, p. 278(!)ss, por G. Brakemeier em PL XXI, p. 267ss e ainda por R. W. Rieth em PL XXV, p. 287ss. Os trabalhos exegéticos são amplos e muito valiosos. Simplifico o meu trabalho ao citar as principais observações exegéticas elaboradas pelos autores citados.

As duas leituras que acompanham o texto da pregação sublinham que todos os que confiam em Deus, na sua ação, na sua oferta, são protegidos por ele. Ouvir e aceitar o que Deus fez – nisto se resume a sabedoria humana.

Recomendo a leitura do texto na Bíblia na Linguagem de Hoje (ou outra, mas de fácil compreensão). O texto de Almeida é de dificílima compreensão – ainda mais quando apenas é ouvido. A tradução que a BLH traz já é quase uma interpretação deste texto-chave de Romanos, onde o apóstolo Paulo aborda o tema da justificação por graça e fé. “Trata-se do detalhamento da tese apresentada nos vv. 1.16ss. A situação, de fato, de todas as pessoas perante Deus é descrita: todas, judias ou não, estão sem exceção sob a ira de Deus, pois todas pecaram (1.18-3.20). Essa realidade de todo o universo é superada pela ação salvífica da justiça de Deus na morte expiatória de Jesus Cristo. Assim, todas as pessoas, judias ou não, contrariamente à sentença da lei, que as denuncia como pecadoras, tornam-se justas com base na fé em Jesus Cristo (3.21-4.25)” (R. W. Rieth, p. 287).

Vejamos, pois, detalhadamente, como o apóstolo apresenta o que Deus faz em favor da criatura humana para que esta não se perca, mas ganhe a vida (Mt 18.11ss).

2. Considerações exegéticas

Alguns exegetas afirmam que o apóstolo Paulo usou conceitos e fórmulas litúrgicas já existentes na comunidade primitiva, que interpretavam a morte de Jesus (G. Voigt, Homiletische Auslegung der Predigttexte, p. 463).

v. 21 – O “mas agora” aponta para a nova realidade, para o momento novo do agir de Deus. Está em contraposição ao que era, ao que valia anteriormente. A justiça de Deus, i. é., a maneira como Deus aceita as pessoas, exclui a necessidade do cumprimento da lei. “A desativação da lei não significa que ela seja desviada ou contornada. A justiça de Deus é eficaz justamente ali onde a lei amaldiçoa o pecador. Ela suspende essa maldição. Isso não é possível ‘na lei’, pois a lei não tem a força para suspender sua própria ação (v. 8.3). Esse é o novo modo de Deus agir ‘agora’: promove a salvação lá onde a lei só pode prometer a condenação” (R. W. Rieth, p. 289).

v. 22 – A justiça de Deus revela-se em Jesus Cristo. O ser humano é aceito por Deus, quando crê em Jesus Cristo, oferta de Deus. A lei exclui e afasta o ser humano de Deus, ao passo que em Cristo a relação e a comunhão são restabelecidas. E ninguém é melhor do que ninguém, tampouco ninguém é pior do que ninguém! Todos estão na mesma situação diante de Deus: os de perto e os de longe, os de dentro (do povo de Deus e da comunidade) e os de fora, homens e mulheres, ricos e pobres. O que é indispensável por parte da criatura humana é que ela aceite esta oferta de Deus – e a aceitação, como tal, manifesta-se na nova postura de vida, que é a fé.

v. 23 – O fato de que diante de Deus todas as pessoas são pecadoras, o que inclusive a lei e os profetas testemunham, faz com que realmente todos dependam da ação graciosa de Deus. Não há ninguém com vantagem ou outros com desvantagem. A situação de todas as pessoas diante de Deus é a mesma.

v. 24 – A aceitação dos pecadores, a sua salvação, é obra de Deus, exclusivamente. Ele age só e de forma gratuita: a misericórdia de Deus em resgatar o valor da criatura humana, em dar-lhe dignidade, em oferecer-lhe a vida é o ato salvífico que muda radicalmente o presente, o aqui e agora da pessoa. A mudança que ocorre no pecador vem de fora; não é resultado de esforço seu; não é conquista. É resultado da oferta gratuita de Deus.

v. 25 – Cristo como propiciação, como sacrifício: o apóstolo Paulo usa as palavras e as imagens do ritual do sacrifício de animais descrito no Antigo Testamento. “O termo ‘propiciação’ diz respeito à tampa de ouro (propiciatório) colocada sobre a arca da aliança, e ao lado da qual estavam querubins cobrindo com suas asas o lugar da presença de Yahweh com sua Palavra (cf. Êx .25.17-22;30.6). No ‘Dia da Expiação’, Yahweh se manifestava sobre ela para que diante dele ocorresse todo o ritual. O sumo sacerdote aspergia o sangue de um novilho sobre a frente do propiciatório como expiação do santuário e também como expiação para si, sua família e toda a comunidade de Israel (cf. Lv l6). Paulo retoma esta tradição ritual para apresentar o Cristo crucificado na função de alguém engajado por Deus como propiciatório na festa da reconciliação, substituindo-a com sua morte” (R. W. Rieth, p. 290).

Esta ação de Deus é a sua grande dádiva para todas as pessoas: basta aceitá-la mediante a “fé em Jesus Cristo”.

3. Meditação

R. W. Rieth lembra, de maneira muito oportuna, no seu auxílio homilético, uma reflexão de Lutero sobre a expressão “justiça de Deus”, contida no “Prefácio do Primeiro Volume da Edição Completa dos Escritos Latinos”, em “Pelo Evangelho de Cristo”, p. 30:

“Eu fora tomado por uma extraordinária paixão em conhecer a Paulo na Epístola aos Romanos. Mas fazia-me tropeçar não a frieza de coração, mas uma única palavra no primeiro capítulo: ‘A justiça de Deus é nele revelada’ (Rm 1.17). Isso porque eu odiava esta expressão ‘justiça de Deus’, pois o uso e o costume de todos os professores me haviam ensinado a entendê-la filosoficamente como justiça formal ou ativa (como a chamam), segundo a qual Deus é justo e castiga os pecadores e injustos.

“Eu não amava o Deus justo, que pune os pecadores; ao contrário, eu o odiava. Mesmo quando, como monge, eu vivia de forma irrepreensível, perante Deus eu me sentia pecador, e minha consciência me torturava muito. Não ousava ter a esperança de que pudesse conciliar a Deus através de minha satisfação. E mesmo que não me indignasse, blasfemando em silêncio contra Deus, eu resmungava violentamente contra ele: Como se não bastasse que os míseros pecadores, perdidos para toda a eternidade por causa do pecado original, estivessem oprimidos por toda sorte de infelicidade através da lei do decálogo — deveria Deus ainda amontoar aflição sobre aflição através do evangelho e ameaçá-los com sua justiça e sua ira também através do evangelho? Assim eu andava furioso e de consciência confusa. Não obstante, teimava impertinentemente em bater à porta desta passagem; desejava com ardor saber o que Paulo queria. Aí Deus teve pena de mim. Dia e noite eu andava meditativo, até que por fim observei a relação entre as palavras: ‘A justiça de Deus é nele revelada, como está escrito: o justo vive por fé’. Aí passei a compreender a justiça de Deus como sendo uma justiça pela qual o justo vive através da dádiva de Deus, ou seja, da fé. Comecei a entender que o sentido é o seguinte: Através do evangelho é revelada a justiça de Deus, isto é, a passiva, através da qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: ‘O justo vive por fé’. Então me senti como que renascido, e entrei pelos portões abertos do próprio paraíso. Aí toda a Escritura me mostrou uma face completamente diferente. Fui passando em revista a Escritura na medida em que a conhecia de memória, e também em outras palavras encontrei as coisas de forma análoga: ‘Obra de Deus’ significa a obra que Deus opera em nós; ‘virtude de Deus’ — pela qual ele nos faz poderosos; ‘sabedoria de Deus’ – pela qual ele nos torna sábios. A mesma coisa vale para ‘força de Deus’, ‘glória de Deus’.

“Assim como antes eu havia odiado violentamente a frase ‘justiça de Deus’, com igual intensidade de amor eu agora a estimava como a mais querida. Assim, esta passagem de Paulo de fato foi para mim a porta do paraíso.”

A maneira como Deus aceita, isto é, dá nova condição de vida à pessoa humana é expressão maior da sua generosidade: sem exigir nada, sem impor nenhuma condição, ele age a fim de que a criatura humana viva sem nenhum peso sobre os ombros. Ela está livre. O peso da lei já não existe mais, já não vale mais. Agora o que vale é a fé em Jesus Cristo, a oferta de Deus. Deus ergue o caído, aceita o pecador, dá-lhe o devido valor e reconhecimento. Nenhuma culpa, nenhum pecado mais precisa ser pago. “Na justificação está implícito o perdão dos pecados. Mas este é apenas um aspecto de um processo bem mais abrangente. Justificação é a ‘dignificação’ do ser humano, sua reinvestidura na qualidade de filho ou filha de Deus, é a concessão de um novo status. E isto por misericórdia divina. Ele se manifestou concretamente em Jesus Cristo, de modo que a justificação acontece ‘através dele’. Resta ao ser humano aceitar e assimilar o dom gratuito de Deus na atitude da fé que inaugura um ‘andar em novidade de vida’” (G. Brakemeier, p. 268).

“Justiça” e “justificação” são temas que aparecem freqüentemente no Novo Testamento e com acentos diferentes. “Também nas cartas paulinas o dom da salvação é descrito de diferentes modos, entre outros como ‘libertação para a liberdade’ (Gl 5.1-13; cf. Rm 6.7), como ‘reconciliação com Deus’ (2 Co 5.18-21; cf. Rm 5.11), como ‘paz com Deus’ (Rm 5.1), como ‘nova criação’ (2 Co 5.17), como ‘vida para Deus em Cristo Jesus’ (Rm 6.11,23) ou como ‘ santificação em Cristo Jesus’ (cf. 1 Co 1.2; 1.30; 2 Co 1.1). Salienta-se entre esses conceitos a descrição como ‘justificação’ do pecador pela graça de Deus na fé (Rm 3.23-25), que foi deslocada de maneira especial no tempo da Reforma” (Doutrina da Justificação por Graça e Fé – Declaração Conjunta Católica Romana – Evangélica Luterana, p. 10).

Este dom de Deus, a justificação por graça e fé, através da obra salvífica de Jesus Cristo renova a pessoa, dá-lhe nova vida, que se manifesta nas obras.

“Quando uma pessoa justificada vive em Cristo e atua na graça recebida produz, biblicamente falando, bom fruto. Essa conseqüência da justificação é, ao mesmo tempo, uma obrigação a ser cumprida pelo cristão, na medida em que luta contra o pecado durante a vida toda; por isso, Jesus e os escritos apostólicos admoestam os cristãos a realizar obras de amor” (Doutrina da Justificação por Graça e Fé, p. 19).

4. Pensamentos em direção à prédica

“Pastor, estou querendo entrar na sua Igreja! O que ela exige? Dá para cortar o cabelo? E que tipo de vestido dá para usar?” Estas perguntas de uma senhora, curiosa em saber um pouco da IECLB, mostram como a lei pode escravizar também no que se refere à observância de costumes, tradições, vestes, ...

Assim se quer agradar a Deus, assim se quer conquistar a sua aceitação.

Aliás, isso também vale na vida diária: quem faz muito, quem produz, quem tem muito é aceito, recebe destaque, honras, méritos. A “qualidade total” pesa nos ombros do empregado e exige dele mais e mais. A competição é cada vez mais acirrada. É indispensável produzir, produzir, produzir bem e produzir muito!

O crente pode confiar em Deus e sabe que nele encontra refúgio, destaca o Salmo 31. Deus liberta da pressão de produzir, de conquistar tudo por esforço próprio. A culpa diante de Deus foi propiciada, paga por Jesus Cristo. Quem aceita isto vive tranqüilo, em paz; não precisa mais “conquistar” o perdão, não precisa pagar, em obras ou em dinheiro, por sua salvação. Deus a oferece gratuitamente. Isto redunda em novidade de vida, em libertação.

Essa novidade de vida é notada, é percebida pela sociedade, pelos de fora? Como o “mundo” percebe essa nova vida em liberdade? Ela é o contraponto à competição, à necessidade de produção, ao espírito de que tudo deve ser pago. “Pois a graça de Deus, se acolhida pela fé, faz enorme diferença, que, aliás, consiste não tanto em novos imperativos, e sim muito mais em nova liberdade” (G. Brakemeier, p. 271).

5. Bibliografia

BAESKE, Albérico. Releitura de Lutero em contexto de Terceiro Mundo. Estudos Teológicos, número especial, p. 15ss., 1990.
VOIGT, Gottfried. Das heilige Volk. Berlin, 1979.
Doutrina da Justificação por Graça e Fé. Declaração Conjunta Católica Romana-Evangélica Luterana. Porto Alegre/São Leopoldo : EDIPUCRS/CEBI, 1998.

Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Valdemar Lückemeyer
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 2º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Romanos / Capitulo: 3 / Versículo Inicial: 21 / Versículo Final: 25
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2001 / Volume: 27
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7175
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Não há pecado maior do que não crermos no perdão dos pecados. Este é o pecado contra o Espírito Santo.
Martim Lutero
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