1 Coríntios 6.9-14,18-20

Auxílio Homilético

01/08/1976

Prédica: 1 Coríntios 6.9-14,18-20
Autor: Erhard S. Gerstenberger
Data Litúrgica: 7º. Domingo após Trindade
Proclamar Libertação - Volume: I


I - Apóstolo e Igreja

Paulo foi um bom pastor? Como pode intervir tão rigidamente nos negócios da congregação em Corinto? Inclusive proferindo sentença sobre um malfeitor (5.3-5)? O Apóstolo não abusa do seu mandato missionário, desrespeitando a nova experiência dos cristãos em Corinto, que se manifesta pelo entusiasmo da congregação (v 6.12; 4.8; 14.12; 15.12 etc.)? Grandes teólogos também podem errar; os pensamentos e sentimentos do povo proletário, apesar de todas as manifestações entusiásticas, poderiam conter um núcleo de verdade (cf W. J. Hollenweger, Lebendige Symbole des Heiligen, Luth. Monatshefte 14, 1975, págs. 423-426).

Precisamos verificar os argumentos do Apostolo com cuidado. Na primeira carta aos Coríntios ele está preocupado com vários assuntos concretos da vida comunitária: Começa com o fracionamento interno da congregação (1.11s), atinge, p. ex., questões de casamento (7.1), de usufruto da carne sacrificial (10.23ss), de glossolalia (14) e trata finalmente da insistência de alguns membros de que os mortos não vão ressuscitar (15.12; aparentemente estão convictos de que a ressurreição já se realizou pela fé em Cristo e pelo regime vigente do Espírito). Nesta pluralidade de temas atuais o trecho 5.1 até 6.20 constitui um bloco mais ou menos independente. São dois acontecimentos concretos que provocam a violenta reação do Apóstolo: Um certo homem está vivendo com a sua madrasta (5.1) e um irmão leva ao tribunal (não-cristão) a queixa contra o outro (6,6). Estes fatos, relatados a Paulo, quando ele estava morando em Éfeso (At 19.1), levam-no a expor a sua teologia da libertação e da responsabilidade, da incorporação ao corpo de Cristo e da moral sexual, do reino de Deus e do regime de Espírito (6.9-20).

Mais uma vez: O Apóstolo tem uma legitimação para intervir? Como relacionar com isso o papel do pastor (ou: funcionário eclesial) de hoje referente à vida da congregação? Trata-se, em última análise, de uma questão da estrutura eclesial, baseada na fé cristã. Consideremos os seguintes fatores: No tempo de Paulo ainda não havia uma hierarquia eclesial; sob a impressão da vinda iminente de Cristo não se pôde desenvolver aquela escala dos ofícios; o corpo comunitário cristão, conforme Paulo, está sob a direção exclusiva do seu cabeça, Cristo (Ef 4.15s; 1 Co 12.12-31; Rm 12.5); nas decisões concretas a congregação cristã tem que cooperar com todos os seus membros, cujas funções e poderes individuais certamente são diversas (cf 5.4; 12.27-31). Portanto, Paulo não é um autocrata infalível; ele se acha incumbido dum cargo especial (cf 1.1; 3.10; 4.9; 2 Co 3.7ss), isso é certo. Mas a autoridade de suas exortações apostólicas sempre depende da autorização divina, pela direção do Espírito. Quer dizer: Cada afirmação do Apóstolo pode ser verificada pela congregação, que é, na verdade, a parceira de Deus. ... todas as coisas pertencem a vocês: Paulo...(etc) ..., e vocês pertencem a Cristo, 3.21ss; vocês sabem que são o templo de Deus, e que o Espírito de Deus vive em vocês, 3,16.

Aplicando este modelo de autoridade a nossa situação, podemos dizer: Cada cristão, como um membro de Cristo, deve atuar na certeza de ser guiado pelo Espírito. Consequência: As vezes ele vai lutar contra a maioria da congregação. - Por outro lado: - Cada cristão deve estar consciente da vida da igreja toda e buscar a íntima cooperação entre todos os membros. Consequência: Ele vai ser capaz de exercer autocrítica e tolerar outras funções e atividades na sua comunidade. Em resumo: A congregação cristã está peregrinando em conjunto, a fim de apreender mais e mais as manifestações do Espírito. No seu caminho os cristãos podem praticar a democracia do povo de Deus. Quanto ao papel do pastor de hoje: Como os outros membros da comunidade cristã, o pastor também pode asseverar a sua fé e os seus conhecimentos especiais. Mas, em contraposição ao desejo popular, que quer torná-lo um super-apóstolo, ele vai limitar as suas funções e encorajar a atividade de todos os membros.

II - A perfeição cristã

Purificar uma congregação? Admitir só os moralizadores? Excluir quaisquer malfeitores (cf 5.6-13; 6,9-10) para garantir a pureza corporal e paroquial e, conseqüentemente, a coabitação do Espírito na igreja (6.18-20)? Mas é impossível separar mal e bem neste mundo! (cf Mt 13.24-30 e 25.31-46). Ainda mais importante, a função da comunidade cristã não é justamente oposta: Aceitar o pecador, perdoá-lo e reabilitá-lo (cf Sl 51; Mt 18.21s; Rm 14.10; 2 Co 2.5-11)? Além disso, se nos vemos esses vícios, que, conforme Paulo, provocavam a expulsão da igreja (cf 6.9s; 5.11; Gl 5.19s; Rm 1.29-31), temos que protestar enfaticamente. Pelo menos a nossa atitude em relação aos homossexuais, bêbados e marginais (6.9s, trad. da Bíblia na linguagem de hoje; Almeida: efeminados, sodomitas, bêbados, roubadores) está mudando. Sabemos que alguns vícios são hereditários e, conseqüentemente, naturais, enquanto outros são produtos da mesma sociedade que os condena. A igreja, portanto, deveria integrar alguns tipos de malfeitores como membros regulares ; talvez até ordenar pastores homossexuais para servir esta classe dos homens. Em outros casos a igreja deveria recuperar os fracos das margens da sociedade e conscientizá-la, a fim de eliminar as condições da marginalização.

Mas nós entendemos mal a argumentação de Paulo, se, de modo casuístico, copiarmos as suas motivações para a purificação e disciplina eclesial. Devemos perseguir as suas ideias à raiz teológica e cristológica , para sermos capazes de julgar os resultados concretos, inclusive a ética de Paulo. O julgamento mesmo vai levar-nos também à adoção e criação de regras oportunas para edificar a igreja.

III - A nova realidade

Correspondendo ao ensino do próprio Jesus, Paulo anuncia a chegada do Reino de Deus já realizada em Cristo (Gl 4.4; 2 Co 5.17; 1 Co 5.7). porém, ainda não completamente conhecida e finalizada (cf Fp 3.12-14; 1 Co 13.12), Assim o Reino de Deus é uma força dinâmica e atual (4.20) que não sofre a presença do mal; o Reino de Deus liberta todos os fiéis a si mesmos, ao seu ser original; o Reino de Deus é oposto a toda corrupção do mundo. A partir da tradição e da experiência do Deus único do AT, Paulo crê num Deus onipotente, a quem é subjugado cada poder no universo (Rm 8.37-39). Ele em si é perfeitamente incontestável e puro. O mal se manifesta em cada aberração da vontade de Deus, em cada contradição a sua salvação. Deus mesmo, a suprema realidade saudável para a humanidade, vai superar todas as contradições. Ele exige que os seus fiéis, os libertados de toda impureza humana, também sejam perfeitos. A medida para avaliar o comportamento do cristão e da igreja é, conseqüentemente, o amor último e a santidade última de Deus mesmo (cf também Mt 5-7).

Enquanto o testemunho de Paulo acerca do Reino de Deus é relativamente plausível, torna-se difícil entender os detalhes de sua ética. Bornkamm (op. cit. 210s) indica as várias fontes de onde o Apóstolo retira as regras de comportamento, quase indiscriminadamente: Do AT, da filosofia estóica, dos costumes populares, da revelação direta, da tradição cristã. Tudo o que é bom e merece elogios: o que e verdadeiro, digno, justo, puro, amável e honesto (Fp 4,8), ele o recomenda as suas congregações. Isso, porém, significa que a suprema medida do comportamento cristão sempre permanece o Reino de Deus; quer dizer, Deus mesmo - como ele se manifesta na salvação de Cristo e pela orientação do Espírito. Conseqüentemente as regras concretas devem ser verificadas na realidade das ações de Deus. Para nós isso também significa uma variabilidade das regras éticas dentro do imutável amor de Jesus Cristo. Cada época, de novo, deve aprender e articular os seus mandamentos específicos dados pelo Espírito; cada congregação deve participar na busca do que é bom na presente situação.

IV - O corpo comunitário cristão

Paulo descreve ainda a realidade do ser cristão de um outro aspecto. Cada cristão pertence não a si mesmo mas ao Senhor, ao seu corpo (6.13.15); este, ao mesmo tempo, está animado e possuído pelo Espírito Santo (6.19). A afinidade dos cristãos com Jesus Cristo, não só simbolicamente, mas na verdade, tem uma qualidade corporal. Quer dizer, Paulo não fala sobre uma união mística; não indica só uma ligação espiritual. O cristão de fato é incorporado a Cristo, pelo batismo (6.11; Rm 6.3) e, conforme o seu usufruto do corpo de Cristo, na santa ceia (11.16s; cf 12.12ss). Esta comunhão dos cristãos com o Senhor e entre si mesmos, segundo Paulo, produz uma imunidade biológica contra o mal e os malfeitores. Não para excluir aqueles que não correspondem à pureza do corpo de Cristo, mas para assimilar e purificá-los. Alguns de vocês eram assim (6,11), mas, devido a incorporação em Cristo, a vida antiga desapareceu. As forças más permanecem fora do corpo de Cristo. Enquanto o homem tem pecado, ama o pecado e está subjugado ao pecado, ele não tem parte no Cristo. O homem incorporado no Senhor verdadeiramente está morto para a força do mal (2 Co 5.17) e participa - como um homem libertado inteiramente na existência renovada de Cristo. Assim parece lógico que Paulo quer excluir sobretudo todas transgressões sexuais (6.18). Cada perversão sexual atinge profundamente a corporalidade da associação cristã. Para Paulo, e para todas as tradições ascéticas no antigo judaísmo, a sexualidade do homem é suspeita em si (7.1ss; cf também Mt 22.30), ela permanece uma força sedutora de primeira importância. Por isso o mal não deve entrar no corpo de Cristo através do desejo sexual.

Acho que podemos, com alívio, concordar com Paulo na avaliação do corpo de Cristo: Por demais tempo a igreja perseguiu uma falsa espiritualidade, descuidando o corpo humano com todas as suas carências e possibilidades. Ao mesmo tempo temos que considerar as alegações de alguns psicólogos e sociólogos de que a repressão da sexualidade no cristianismo levou a neuroses e, num desenvolvimento contrário, ao culto do sexo (cinema!). Portanto, na teologia de hoje, nós não vamos exagerar a importância da vida sexual, quando falamos da corrupção do homem. O abuso do sexo, que danifica todos os envolvidos, só é um modo de sujar a comunhão com Cristo, além de todos os crimes contemporâneos contra o homem e a sociedade. Buscando clarear os verdadeiros pecados de hoje, nós também devemos ouvir o testemunho do AT: a sua atitude tranquila e positiva quanto à sexualidade, bem como a sua denúncia violenta de atos anti-sociais e egoístas. (Quanto à mudança da moralidade e da estrutura social, cf S. Keil e C. A. de Medina, op. ci t.).

V - Excomunhão evangélica?

Que comportamento pode ser considerado cristão hoje? ou pecaminoso? Sob o enfoque da comunidade perguntamos: Que maneiras de viver, que atitudes são toleráveis dentro da igreja? Que atos provocam a exclusão do culposo? Podemos, sem dúvida, aceitar todas as pressuposições fundamentais de Paulo: O Reino de Deus, a participação do homem no corpo de Cristo e o regime do Espírito. Podemos concluir, também, que a nova realidade, criada por Deus, não permite tais atitudes, atos ou pessoas que contradizem o amor de Deus. São inflexivelmente iguais as manifestações de desobediência? Não, não são iguais. Conforme mudam as condições da vida humana (cultura, tecnologia, sociedade, esperança, fé, etc.) , assim não se mudam somente as regras do que é bom, mas também os modos de rebelião contra o Reino de Deus e a salvação por Cristo. Sim, é possível ainda que alguém proteste contra Deus por libertinagem ou sadismo sexual. Em geral, contudo, os protestos de hoje acontecem (muitas vezes sob formas religiosas ou pseudo-religiosas) nos campos econômico, científico, etc. Assim temos que definir e praticar a exclusividade da comunhão cristã principalmente nestes setores. Seria impossível, p. ex., que alguém racista poderia ser um membro da igreja cristã. Porque o racista, obviamente, nega o evangelho do amor de Deus e o fato da unificação dos cristãos no único corpo de Cristo. Da mesma forma: O que deveria acontecer para aqueles que oprimem e exploram os semelhantes para o próprio enriquecimento ou a auto-satisfação? Isso vale para as relações entre homens e mulheres, pais e crianças, empregadores e operários, donas-de-casa e empregadas, professores e estudantes, etc. Mais ainda: Como tratamos aqueles que abandonam o próximo carente? Como aqueles que se aproveitam de qualquer fabricação ou comércio de meios destrutivos (armas, drogas, remédios prejudiciais, filmes brutais, utensílios ruins, etc.)? E aqueles que vivem de mentira, falsa propaganda, especulações criminosas? E aqueles que pregam ódio, irreconciliabilidade, vingança? A igreja cristã certamente é a assembléia dos fracos e pecadores, dos homens que estão sofrendo numa vida culposa. Mas, com certeza, a igreja também não pode suportar ou apoiar atitudes e atos contra o Reino e amor de Deus; ela tem que se afastar daqueles que vivem em contraposição a eles (cf, por ex., as negações de I. Illich).

VI - Pregar o Reino de Deus hoje

Cada culto é uma tentativa de atualizar o testemunho bíblico. Cada atualização implica uma viagem até o texto e sua situação, uma apreensão da mensagem original no ambiente antigo e um retorno para o nosso próprio tempo. Aqui, dentro da nossa situação particular, esta mensagem de antigamente deve ser reconstruída e divulgada.

Infelizmente, o presente trecho sugere, nas cabeças de muitos ouvintes, que as leis de comportamento sejam decisivas na vida cristã. (Perversão do evangelho em lei!) A nova tradução na linguagem de hoje, por causa da sua compreensibilidade, pode reforçar esta falsa impressão: Cada ouvinte conhece aqueles imorais, ídolos, adúlteros, homossexuais, ladrões, avarentos, bêbados, difamadores, marginais (6,9s); cada ouvinte imediatamente fixa a sua atenção nos maus, que não herdarão o Reino de Deus e abençoa a si mesmo por não ser avarento, desonesto nem imoral, como os outros homens (Lc 18.11). A prédica cristã, portanto, vai expor o erro desta atitude, seja explicitamente ou implicitamente; vai destacar a nova realidade do Espírito vigente no corpo de Cristo. Assim se inicia um processo de conscientização de que nós mesmos formamos uma comunidade salva de ansiedade, libertada por Cristo e, consequentemente, aberta para todos os aflitos e culposos, mas fechada para cada tipo de orgulho e autonomia humanos. Quer dizer: Temos que pensar, na prédica e nos diálogos com os membros da congregação, sobre a dinâmica da nova vida, as suas oportunidades e obrigações; temos que pensar sobre a construção adequada da igreja (cf A. Gregory), e o problema da excomunhão, na grande maioria dos casos, vai ser resolvido automaticamente: Os malfeitores de hoje vão fazer penitência ou sair da igreja.

A respeito da moral individual, que é uma consequência (não pressuposição!) da vida comunitária, nós temos que insistir: Precisamos definições certas dos pecados atuais; sobretudo, porém, definições concretas do amor de Deus, que nos obriga e facilita amá-lo a Ele e aos nossos semelhantes (cf D. von Oppen; S. Keil).

Bibliografia

- BORNKAMM, G. Paulus. Stuttgart, 1969.
- GONZÁLES-RUIZ, J. M. O sentido biológico da moral de São Paulo. In: FABRO, N., ed. A redescoberta do homem. Petrópolis, 1973.
- ILLICH, I. Celebração da consciência. Petrópolis, 1975.
- KAESEMANN, E. Meditação sobre 1 Co 6.19-20. In: Exegetische Versuche und Besinnungen. 3a. ed, , Göttingen, 1964, vol. l, p. 276-279.
- KEIL, S. Sexualität, Erkenntnisse und Masstabe. Stuttgart, 1966.
- MEDINA, C. A. de. Família e mudança. Petrópolis, 1974.
- OPPEN, D. von. Moral. Stuttgart, 1973.
- SCHMITHALS, W. die Gnosis in Korinth. 2a. ed., Göttingen, 1965.
- WENDLAND, H. D. Die Briefe an die Korinther. In: Das Neue Testament Deutsch. 12a. ed., Göttingen, 1968.

Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Erhard S. Gerstenberger
Âmbito: IECLB
Testamento: Novo / Livro: Coríntios I / Capitulo: 6 / Versículo Inicial: 9 / Versículo Final: 14
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1976 / Volume: 1
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7198
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Ó Deus, meu libertador, tu tens sido a minha ajuda. Não me deixes, não me abandones.
Salmo 27.9
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