Hebreus 4.14-16; 5.7-9

Auxílio homilético

06/04/2007

Prédica: Hebreus 4.12-16; 5.7-9
Leituras: Oséias 5.15b-6.6; Lucas 23.33-49
Autor: P. Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Sexta-feira da Paixão
Data da Pregação: 6/4/2007
Proclamar Libertação - Auxílio avulso
 

A. Notas relativas ao texto

Inicio lembrando que a palavra “paixão” tem um duplo significado. É sinônimo de sofrimento, bem como de um forte sentimento, de um fogo ardente dentro da pessoa. Na cruz de Jesus Cristo vemos ambas as coisas. Vemos a agonia de alguém que sofre o assassinato sob brutais torturas. Experimenta cinismo, abandono e morte. Mas vemos também que este crucificado é mais do que uma vítima. É um apaixonado por Deus e sua causa, preferindo o martírio a vingar-se em seus inimigos. Nem mesmo um insulto sai de sua boca. Jesus é alguém passivo, sim. Sofre a violência e seu horror. Ao mesmo tempo é alguém ativo, tomado por profunda paixão de amor, perdoando seus algozes e entregando-se em favor da vida de outros. Ambos os aspectos são fundamentais para a devida celebração da Sexta-Feira da Paixão. O texto previsto para a pregação coloca-os em grande evidência.

Trata-se em verdade de dois textos, aliás, nem sempre previstos para exatamente essa oportunidade. Mesmo assim, sua escolha para a pregação nesse tão importante dia para a cristandade, é extremamente feliz. Com o cap. 4.16-18 inicia o segundo grande bloco da carta aos hebreus, cujo tema é o sumo sacerdócio de Jesus. A ele se subordina também o trecho cap. 5.7-9. Como veremos, a combinação faz bom sentido. Ao apregoar Jesus como o sumo sacerdote que a si mesmo se ofertou em favor da vida do mundo (9.11s), a carta aos hebreus, assim se poderia concluir, tem como tema fundamental exatamente a Sexta-Feira da Paixão.

Como exposto em meditações anteriores de Proclamar Libertação, a carta aos hebreus tem apenas um final epistolar. No mais, assemelha-se antes a uma grande exortação. Ainda assim tem em vista comunidades concretas. Nada se sabe sobre sua localização. Embora estejam bem familiarizadas com a cultura grega, devem ter raízes judaicas em razão das numerosas referências bíblicas nessa carta. Daí o nome “aos hebreus”. Em épocas já avançadas, presumivelmente nos anos 80 a 90 da nossa era, essas comunidades estão ameaçadas de cansaço. A freqüência aos cultos e às demais reuniões diminuiu (10.25), os membros temem sofrimento, o entusiasmo inicial sumiu. Por isto, o objetivo do autor consiste em animar, consolar e motivar.

Os textos em apreço o confirmam. O V 14 do cap. 4 inicia com a constatação que a comunidade cristã tem em Jesus, o Filho de Deus, o grande sumo sacerdote. Ele penetrou os céus, melhor, perpassou os espaços celestiais, demonstrando assim sua natureza cósmica. Jesus Cristo é o Senhor do universo. É esta a confissão da comunidade cristã a ser preservada. Os membros da comunidade são chamados à fidelidade confessional. Para tanto existem boas razões (V 15). Pois este sumo sacerdote é capaz da “com-paixão” (em grego: “simpatia”) com nossas fraquezas. Sofreu conosco. Foi submetido ao mesmo tipo de tentação como qualquer outra pessoa. É muito humano, portanto. Apesar de ser o Senhor do universo torna-se solidário com a criatura e mergulha em seu sofrimento. Mas há uma diferença. Foi tentado, sim, mas resistiu. Não se tornou desobediente a Deus nem o negou. Não caiu em pecado. Deve-se afastar deste termo a conotação moral. É em vão especular, se Jesus nunca mentiu, por exemplo. O que está em jogo é a fidelidade de Jesus a Deus. Ele foi “filho” de seu Pai celeste, e ele o foi de modo “impecável”, conseqüente. É no que se distingue dos demais seres humanos. Embora fosse humano, Jesus era diferente. Caso contrário, não poderia ajudar. Quem ajuda, deve ter recursos que a pessoa necessitada não tem. Jesus tem tais recursos. É compassivo e deu acesso ao trono da graça (V 16). A expressão mostra que o “trono de Deus” já não precisa ser temido. Não é “cátedra de juízo”, e sim, foro da misericórdia, de onde provém não só o perdão dos pecados, como também socorro em momentos de necessidade. Decorre daí o convite para achegar-se a este Deus de maneira destemida e confiante. Ali se encontra salvação.

O exposto recebe aprofundamento pela segunda parte do texto da prédica, cap. 5.7-9. Trata-se do fragmento de um hino cristológico, acrescentando outras características ao sumo sacerdócio de Jesus. Novamente a tônica está em sua humanidade (V 7). Ele, aos gritos e com lágrimas, suplicou a Deus que o livrasse da morte. É flagrante a alusão à luta de Jesus no jardim de Getsêmani antes da prisão (Lc 22.39s), mostrando um Jesus angustiado, aflito, desesperado. Diz o texto que ele foi ouvido por causa de seu temor a Deus. Mesmo assim, também ele, o Filho de Deus, teve que aprender a obediência (V 8). Deus não fez passar dele o cálice como pediu, não o isentou da morte, não o poupou da experiência do sofrimento. Jesus teve que aprovar a fé sob as mais duras condições. Aprendeu que Deus salva da morte, sim, mas não a suspende. Por isto mesmo ele foi “aperfeiçoado” (V 9). O termo faz referência à ressurreição, exaltação, à entronização de Jesus como sumo sacerdote, fazendo com que ele seja o autor da salvação eterna para todos que lhe obedecem e o seguem. O sacrifício de Jesus em obediência a Deus é a promessa de “aperfeiçoamento” também para nós, já agora e no futuro. Tem poder de resgate e de libertação do mal para todos quantos sofrem sob as crueldades deste mundo. Importa fiar-se neste sumo sacerdote que, a um só tempo, é misericordioso, solidário, vencedor. É a mensagem do autor da carta à comunidade destinatária.

B. Pensamentos meditativos

É dever de sacerdote “oferecer sacrifícios pelos pecados” (5.3). A carta aos hebreus é documento de uma teologia sacrificial. Apregoa Jesus como sendo a um só tempo “o cordeiro que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29) e o sumo sacerdote, que o oferece. Mas cuidado. O receptor do sacrifício não é Deus, e sim, a humanidade. Deus não precisa ver o sangue de seu filho para ser misericordioso. Desde sempre a expiação favorecia o povo e a ele se destinava. Portanto, Jesus morreu por nossa causa, não por causa de Deus. A cruz não transformou um Deus raivoso num Deus bondoso. Deus sempre tem sido misericordioso, quando implorado. É preciso afastar de vez a idéia da satisfação a que Deus teria direito. A morte de Jesus é antes a prova do amor que Deus tem ao ser humano pecador (cf Rm 5.8). Ela não produz a misericórdia de Deus, ela a comunica.

Temos um sumo sacerdote capaz de compadecer-se das nossas fraquezas (4.15). O Deus dos cristãos é um “Deus humano”. É este o sentido da cristologia. Ela parte da pessoa de Jesus de Nazaré (5.7), através da qual Deus chegou próximo de sua criatura afundada em pecado, desespero e dor. Compartilhou o sofrimento, tem “compaixão” para justamente assim superar o mal. “Misericórdia” significa ter o coração junto ao miserável. Deus tem coração, enxerga miséria, oferece socorro. Infelizmente, misericórdia é exceção neste mundo. Também no universo das religiões o é. Os deuses, por via de regra, são inclementes. Não têm dó. Você deve pagar por tudo. Um Deus misericordioso, pelo qual Lutero ansiava e que, depois de achado, lhe abriu as portas do paraíso, é singular na história das religiões. Foi revelado pelo sumo sacerdote Jesus.

Por isto mesmo, um Messias que sofre violência e mesmo a morte sempre tem sido um escândalo. Alguém tão fraco como o Jesus crucificado não pode ser salvador. Quem pretende salvar necessita de força. O resto é sentimentalismo. O combate ao terror exige armas, soldados, poderio militar. Assim se pensava antigamente, assim se pensa hoje. Sob tal perspectiva, a Sexta-Feira da Paixão parece ser a frustração das esperanças por um mundo melhor. E com efeito, o cansaço das comunidades endereçadas pela carta aos hebreus tem aí sua última razão. Onde estão os sinais da vitória de Deus neste mundo? Tudo continua como antes. Qual o proveito da fé? Pelo que tudo indica, este mundo não necessita de um sumo sacerdote compassivo à semelhança de Jesus, e, sim, de um “Senhor da guerra”, de um “warlord”, comandante de um exército de “rebeldes”.

Ora, violência gera tão somente violência. A guerra no Iraque é a mais contundente prova. Mas há outras, incontáveis evidências. Seja admitido que violência pode temporariamente reprimir o crime. Autoridade estatal não pode a ela renunciar. Necessita da polícia. Mas não nos enganemos: Violência é incapaz de construir a paz, de reconciliar inimigos, de criar amizade. A tentação a que Jesus resistiu consistiu, entre outras coisas, na sedução da força. Teve que descartar essa via e fiar-se no poder do amor. A “obediência” que aprendeu foi a opção pela “com-paixão”. É esta a lógica de Deus, a “tolice” da cruz que na verdade é a maior sabedoria (1 Co 1.18s). E com efeito, não vai haver salvação sem amor, sem misericórdia, sem o “trono da graça”, ao qual somos convidados a nos aproximar.

Misericórdia costuma ser denunciada como fraqueza. Um trágico engano. Pois a humanidade deve as maiores “conquistas” à aparente fraqueza do amor, ao cuidado com o fraco, ao espírito humanitário. Alegria, bem estar, confiança são frutos desse espírito, sem o qual o mundo tornar-se-á desumano. Armas são fabricadas para matar, enquanto o amor reconcilia. Sabe resistir, sim. Não pode conformar-se com o mal. Em determinados momentos deverá levantar o protesto. Amor pode ser intolerante. Mas sabe que violência jamais é solução. Assim o vemos em Jesus. Aliás, de que necessitamos nós de fato, senão de misericórdia? Graças a Deus por termos um sumo sacerdote “que se compadece das nossas fraquezas” (v 15). É a razão de podermos dirigir-nos a Deus como “Pai Nosso”.

C. Pistas para a prédica

Quem é o crucificado, cuja morte é comemorada na Sexta-Feira da Paixão? Os textos previstos para a prédica têm esta pergunta por tema. Ela é também a nossa. Que distingue Jesus de Nazaré dos demais crucificados, ontem e hoje? A mídia, caso tivesse existido já naquela época, como teria noticiado o evento? Histórias de terror fazem parte de nosso cotidiano, quase imunizando o público contra o crime. Mais uma vítima da violência, sim, e então? Por que damos destaque à paixão de Jesus de Nazaré?

Ora, porque esta cruz não pode passar em brancas nuvens. Quem morre, é alguém chamado pela Bíblia de sumo sacerdote. O termo é pouco comum em nossos dias, embora falemos no sacerdócio geral dos crentes e sabemos haver sacerdotes na Igreja Católica, por exemplo. Sacerdote não só oferece sacrifícios. Em sentido amplo, é pessoa que leva a Deus e que, por sua vez, traz Deus às pessoas. Nesse sentido nos ressentimos de aguda falta de “sacerdotes” em nossa sociedade. Jesus é sacerdote por excelência. É a própria encarnação da misericórdia divina. Assume a condição humana, não foge do sofrimento, prefere sacrificar-se a si, não a outros. Vai exatamente assim ao encontro dos miseráveis. Demonstra com-paixão. Vai e dá comunhão de mesa aos desprezados. Dignifica quem dignidade já não tem ou quem a jogou fora. E, se nós estivermos no fundo do poço, já sem saída e perspectivas, enfrentando a morte, ele chega, pega nossa mão e nos leva ao “trono da graça”. Jesus se submete a toda “desgraça” humana para substituí-la pela “graça” de Deus.

A peculiaridade de Jesus salta aos olhos, quando comparado com outros pretensos salvadores. Espalham horror os assassinos suicidas. Consideram-se mártires com prêmio reservado no céu. São agentes do ódio. Jesus não é nem assassino nem suicida. Está a serviço da reconciliação. Sua trilha é a do amor, mais difícil do que a das granadas, das bombas, da violência. Amor deve estar disposto a sofrer, caso contrário não é amor. O texto colateral de Lucas 23.33-49 descreve algo da paixão que Jesus carregou, o texto de Oséias 5.15b-6.6 algo da paixão de que estava imbuído, a saber da misericórdia, preferida por Deus aos holocaustos. É esta a lei com que o crucificado nos quer comprometer.

Como seria um mundo em que reinasse tal espírito? Que significa “misericórdia” na economia, por exemplo? A prédica não pode esgotar o assunto, mas deveria chamar atenção ao déficit que reina nesta tão crucial questão. É bom lembrar que Deus é diferente. Acolhe os fracos, os culpados, os marginalizados, os moribundos – todas as pessoas a que Jesus “nos dias de sua carne” (5.7) se inclinou, cujo sofrimento compartilhou e para quem tem promessa de salvação eterna.

D. Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados: Senhor, é fácil confessar os pecados de outros e difícil admitir culpa própria. A Sexta-Feira Santa quer encorajar-nos a tirar as máscaras. Dá que não joguemos a culpa na morte de Jesus tão somente em Judas, Pôncio Pilatos, Caifás e seus semelhantes hoje. Ajuda-nos a descobrir o quanto também nós temos cooperado no sofrimento de Jesus Cristo. Pois sempre que desrespeitamos tua vontade, nós te fazemos sofrer. Sempre que te ofendemos, sempre que somos cruéis em nosso juízos sobre outros e ficamos em dívidas com o amor, somos cúmplices na crucificação de teu Filho. Perdoa-nos o pecado. Concede-nos a força para combater o mal em nós e em nosso mundo. Por Cristo, sumo sacerdote, te pedimos. Senhor, tem compaixão.

Oração de coleta: Senhor, nós te damos graças por tua misericórdia. Em Jesus Cristo nos procuraste para nos oferecer a tua mão. Nós dela precisamos. Sozinhos não vamos longe. Nossas forças terminam o mais tardar na hora da morte. Mas também no mais sofremos fracassos e enfrentamos dificuldades que sozinhos não somos capazes de vencer. Tu prometeste ajuda. Queres que sejamos alegres, confiantes, vivamos em paz e tenhamos o pão nosso de cada dia. Tu nos prometeste salvação em sentido amplo. É um privilégio poder invocar-te como “Pai Nosso”. Queiras, pois, cumprir em nós as tuas promessas e conceder-nos a tua graça. Amém.

Intercessão: Senhor, Jesus, na cruz, intercedeu por seus inimigos, clamando: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” Assim intercedemos também nós. Perdoa ao nosso mundo os seus pecados. Faze com que a humanidade, os povos, as pessoas descubram a tempo o que lhes serve para a paz. Reconcilia inimigos, dá juízo às pessoas, ensina à nossa sociedade a justiça. Graves ameaças pairam sobre o Planeta Terra e espalham medo. Dá que a humanidade se una para evitar o pior. Rogamos em particular pelo nosso País, suas autoridades, seu povo. Impede que afundemos em violência, corrupção e caos. Que sejam restabelecidos valores tão fundamentais como a honestidade, a confiança, o respeito à dignidade humana. Pedimos-te por bom governo, embora saibamos ser a responsabilidade pelo bem estar da nação de todos os cidadãos. Intercedemos por tua Igreja. Queiras dar-lhe a força do teu Santo Espírito para que seja corajosa e firme em seu testemunho, seguindo a via aberta por Jesus Cristo. Motive-a a conjugar seus recursos para o melhor exercício de seu mandato. Para tanto desperta lideranças, obreiros, obreiras, leigos e leigas conscientes na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil bem como em suas Igrejas irmãs. Enfim, trazemos a teus cuidados pessoas em situação particularmente difícil. Pensamos em enfermos, desempregados, moribundos, desesperados, abatidos, pessoas em crises. Concede-lhes teu socorro para que vençam o que lhes diminui a vida. Nós o pedimos em nome de Jesus Cristo, crucificado por seu amor a este mundo. Amém

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