Lucas 12.49-53

30/08/1998

Prédica: Lucas 12.49-53
Leituras: Jeremias 23.23-29 e Hebreus 12.1-13
Autor: Júlio C. Schweickardt
Data Litúrgica: 13º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30/08/1998
Proclamar Libertação - Volume: XXIII
Tema:

1. Primeiras impressões

Ao lermos o texto de Lc 12.40-53 ficamos confusos. Como podemos dizer que Jesus não veio para trazer paz, mas divisão? Como é que as famílias estarão divididas, se pregamos que elas devem ser construídas a partir do respeito e do diálogo? Como pensar que o fogo virá e que o desejo é que ele já estivesse aceso? Ou pensar que a água só virá no futuro? Isso nos deixa confusos em vista daquilo que desejamos para o nosso meio social, quando pensamos a nível de ideal, na comunhão de todas as pessoas e numa sociedade com espaço e oportunidade para todas as pessoas. O texto de Lc fala de um futuro não muito promissor, no qual justamente aquilo que combatemos se tornará realidade, em que o conflito estará presente em todas as relações, a começar no núcleo básico de toda a sociedade: a família.

2. O texto em estudo

Após muito pensar sobre o significado das palavras lidas e relidas tantas vezes em línguas e versões diferentes, o texto passou a ser um enigma. Como entender o significado original das palavras, como interpretá-las e traduzi-las para um público nos dias hoje? Em meio ao corre-corre diário, aquelas palavras continuavam se repetindo, sem que encontrasse a porta da saída. Em vão procurava a chave para abri-la e achar a saída desse paradoxo que o texto trazia. Foi andando pelas ruas da minha cidade, olhando o que estava acontecendo à minha volta, prestando atenção em coisas que se tornaram comuns e corriqueiras e que já passavam despercebidas aos olhos mais críticos, que achei a chave para compreender o texto. Descobri, assim, que deveria ver o texto como a realidade que estava acontecendo e não do que iria acontecer no futuro; entendi que a realidade da comunidade de Lucas e a sociedade do seu tempo estavam falando mais alto neste momento. Gostaria de relatar as imagens que vi nas ruas e nos corredores da minha cidade para mostrar o caminho da compreensão das palavras de Lucas, de Jesus, da comunidade e dos cristãos perseguidos:

Numa segunda-feira cedo, antes do comércio abrir suas portas, fomos levar nosso filho à pediatra. Como chegamos cedo demais, caminhei com o meu filho por uma das ruas do centro. Quando passávamos por algumas poucas casas transformadas em lugar de comércio, numa área coberta, vimos oito meninos dormindo, um ao lado do outro. Tive o cuidado de contá-los, porque aquela imagem se confundia no cenário urbano e poderia ser que passasse despercebida por formar um único quadro já comum e que os meios de comunicação cansam de mostrar. Uma coisa é ver esse quadro na minha casa, enquanto tomo café; outra coisa é vê-lo à minha frente, numa segunda-feira, significando que o dia anterior não foi, para aqueles meninos, de encontro família regular, mas de convívio com a família da rua e do mundo. Pensei: ainda bem que o nosso clima é quente! Trata-se de um consolo? Ou uma desculpa para suportar tal situação?

Outra imagem me ocorreu enquanto esperava o sinal abrir:

Dois vendedores, desses que ficam nos sinais de trânsito oferecendo todo tipo de utilidades para o carro e a casa, estavam no canteiro do meio da rua sob uma centenária mangueira, jogando xadrez. Eles estavam tão absortos no jogo que o movimento de carros e pessoas não importava naquele momento. Os possíveis clientes não importavam naquele momento. As pessoas que por ali passavam eram meros espectadores que não interessavam aos dois vendedores; não importava o que os outros pensavam. Importava apenas o tabuleiro de plástico com as peças em madeira. Mas também não foi a todos que a cena chamou a atenção. Talvez alguns achassem um absurdo jogar xadrez naquela hora da manhã, quando o natural seria que o vendedor tentasse convencer os passantes da eficácia e importância dos produtos em oferta. Outros talvez vissem neles o retrato da preguiça e da vagabundagem, e esboçassem o seguinte comentário: É por isso que esse pessoal não consegue emprego e vai continuar pobre. Essa cena me chamou a atenção porque a lógica que exclui essas pessoas do mercado formal certamente é diferente da lógica dos dois vendedores que estavam temporariamente desligados do mundo.

Outra cena não tão incomum, num dos cruzamentos da cidade:

Dois hansenianos, sob um sol do mais bravo verão amazônico, andavam de carro a carro, levando consigo uma sacola de tamanho desproporcional ao que pediam, suplicando alguns trocados dos motoristas já acostumados com a cena. O sinal fechava e eles se arrastavam até os motoristas nos carros, mostrando a ponta dos dedos, que já não era mais ponta; o nariz, que, em muitos casos, já não era mais nariz. Eles usavam o que restava do seu corpo para sensibilizar os espectadores de um espetáculo surrealista. Difícil aqueles que observam os olhos desses atores, porque realmente é difícil ver e não ver muita coisa, senão ver um buraco também sem fundo, não que não tenham olhos, mas a expressão... o significado... Os que respondiam, não ao olhar, mas à cena, eram recompensados com um Deus te acompanhe e te dê saúde. Mas o melhor não era isso, mas, sim, que aquela cena passava para o retrovisor, não cobrando mais a atenção do motorista.

Fiquei sabendo que é crime mendigar. Sim, a lei prevê prisão para tal prática! Mas ainda bem que não estamos no início do capitalismo, quando não-trabalhar era sinal de oposição ao governo, ao sistema c ao espírito empresarial. As leis sanguinárias que puniam os velhos e mendigos até com a mutilação, prisão e morte, não são mais praticadas literalmente; mas são, na realidade, consequência de uma outra lei maior: o capital. Essa não manda mutilar, simplesmente deixa que se acabem, jogados à própria sorte. E como para o sistema não existe acaso, o seu destino é presumível.

Mais uma cena para seguirmos na nossa compreensão:

Em frente a uma grande igreja católica, uma mulher, com mais ou menos 30 anos de idade, fazia uma feroz pregação a um público imaginário do outro lado da rua, talvez à própria igreja instituição, talvez aos possíveis membros daquela congregação, talvez para todos os católicos. Ali estava ela, sozinha, com um velho livro na mão, dando a impressão de ser o Livro Sagrado, pregando o céu e o inferno, a salvação e a perdição, a luz e as trevas... Todos cruzavam pela pregadora como se ela não significasse nada, como se suas palavras fossem simplesmente loucura, como se aquela fosse mais uma típica cena da vida urbana e moderna. A pregadora não passava de mais uma que tinha lá os seus motivos para ter chegado a essa situação. Mas por que se importar?

Entendi, a partir dessas imagens, que o texto bíblico estava retratando exatamente o que já estava acontecendo, porque o que existia, na realidade, era a divisão, em que os filhos são obrigados a sair de casa porque o clima não dá, ou porque o pai ou padrasto não tem paciência e vai logo largando a porrada. Há divisão quando a mulher é violentada pelo machismo, quando ela não é compreendida nos seus sonhos e expectativas, quando ela está cheia de filhos e o marido cai fora. A carga recai sobre ela. Há divisão quando velhos e doentes são afastados do convívio familiar, quando não se tem mais paciência com eles, nem tempo para eles, e são largados à própria sorte. Há divisão na sociedade quando não há espaço para as pessoas se desenvolverem integralmente, quando precisam recorrer ao mercado informal ou à mendicância. Há fogo quando vidas são consumidas lentamente pela doença, pelo abandono, pela loucura e pela miséria. Há conflitos fundamentais no mundo, convivemos com eles, nos adaptamos e nos acostumamos a eles, naturalizamos-os para nos protegermos e não precisarmos nos perguntar pela origem desses conflitos. Que eles existem, existem. Não precisamos do texto para nos dizer isso. O texto bíblico os mostra às claras, e não os ignora, pois esta é a realidade e é nela que vivemos. Não só isso, é nela que interferimos e somos cidadãos.

3. E o texto

Agora ficou mais claro. E logo surgem outros exemplos. Mas tudo é, de fato, fogo, divisão, conflito? O v. 50 dá um resposta: Tenho, porém, um batismo com o qual hei de ser batizado; e quanto me angustio até que o mesmo se realize. Outra chave, preciosa chave, é que há esperança, e ela é justamente o oposto ao fogo e à condenação: a água, renascimento, vida eterna. O batismo é o que diferencia os cristãos da realidade de divisão. Mas eles bem sabem que isso apenas não é suficiente para transformar as relações sociais; não é suficiente nem com a própria família, base da sociedade, família de cinco pessoas, que não se limita a esse núcleo apenas, mas se amplia também para fora das suas paredes (a nora) e tem dificuldades em garantir a estabilidade social e emocional. Por isso, a angústia é procedente, pois não basta ser diferente se o sistema e a estrutura social estão baseados na diferenciação e na oposição.

O batismo é um sinal, mas um sinal que não chega a ser forte o suficiente para trazer a paz. Mas ainda assim é um sinal. O interessante é que o v. 50 está em Lc e não no seu paralelo em Mt. Ali as palavras de Jesus são aplicadas para o seu seguimento, e essa é a interpretação mais corrente dessas palavras. Por outro lado, Lc simplesmente as coloca e não as interpreta porque ele tem um outro entendimento desse discurso. Assim, temos a oportunidade para perceber que a comunidade de Lucas tinha lá suas razões para deixar essas palavras neste sentido, porque a própria realidade já as explicava por si só. Interessante!

4. Meditando

Não precisamos afirmar que a nossa sociedade é de divisão e exclusão porque não nos negamos a ver e enxergar o aparente e observamos o que acontece. Também não nos iludimos que isso seja coisa só para os outros e não tem nada a ver com a nossa igreja, ou que dentro de nossas comunidades não existam conflitos de interesses e diferentes visões de igreja. Quando se trata da própria casa, queremos ocultar os conflitos que nela acontecem porque ali deve ser lugar de segurança e paz; e como a casa é lugar do privado, muitos conflitos ficam abafados para a conservação do próprio núcleo familiar. O problema está que os problemas da família ultrapassam o privado, tornando-se um problema da rua, do mundo, da realidade: é o menino e a menina de rua, é a mulher vagando pelas avenidas, são os desempregados tendo que conquistar o seu pão, são os doentes tendo que mendigar. Não podemos dizer, então, que isso não é problema nosso porque os desviantes saíram do nosso meio. São problemas da sociedade, que tentamos entregar para o poder público que deve, pois, resolvê-los, porque eles nos incomodam e perturbam a paz do lar.

O maior ensinamento do texto, ao meu ver, é que ele nos ajuda a colocar os pés no chão, nos ajuda a ver que o real é muito mais complicado do que os nossos discursos de comunhão e de harmonização das relações, e que o consenso que pregamos não passa de um ideal. No momento, existimos como diferentes, como tendo ideias e visões de mundo diferentes; existimos em meio a tantos conflitos e divisões. A questão é saber trabalhá-los e transformá-los em energia de mudança, na construção de algo diferente. Temos o batismo, muito bem. Ele ajuda a nos renovarmos constantemente, perdoarmos e sermos perdoados. Porém a paz integral teremos só quando houver novo céu e nova terra.

5. Sugestões para a mensagem

Interessante é ler o texto e pedir à comunidade o que ela entende dessas palavras, assim nu e cru, para perceber como ela reage frente a um texto desse gênero. Em seguida, colocar as dificuldades em se aceitar um texto desse tipo e também a dificuldade de se entender tais palavras. As cenas são uma ótima forma para interpretar o texto. Elas podem ser tomadas da vida cotidiana das pessoas que escutam a mensagem. Por isso, o pregador deve tentar pescar na realidade da rua e da casa elementos que iluminem o texto.

É importante iniciar a pregação com as imagens para mostrar que o texto começa a falar no preciso momento quando olhamos para o nosso contexto. Esse ilumina aquele. Essa visão estimula as pessoas a verem que a Bíblia fala da sua vida e da sua realidade, e que parte dela para a compreensão da Palavra escrita para a Palavra vivida.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Júlio C. Schweickardt
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 13º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 12 / Versículo Inicial: 49 / Versículo Final: 53
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1997 / Volume: 23
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7105
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