Lucas 7.1-10

Auxílio Homilético

29/05/2016

Prédica: Lucas 7.1-10
Leituras: Salmo 96.1-9 e Gálatas 1.1-12
Autoria: Anelise Lengler Abentroth
Data Litúrgica: 2º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 29/05/2016
Proclamar Libertação - Volume: XL

 

A fé de quem nos surpreende?

 

1. Introdução

São poucos e studos sobre o texto indicado para pregação. Vamos procurar levantar alguns aspectos da perícope e buscar pistas em seu contexto para compreender sua dimensão teológica. Iniciamos pelas luzes trazidas pelos textos de leitura.

O Salmo 96 conclama as famílias do povo de Deus para cantar louvores numa nova canção a Ele, porque fez coisas maravilhosas: Ele fez os céus! Ele merece (é digno!) o louvor e deve ser temido. Os demais deuses são ídolos, são de aparência. Nota-se um paralelo entre os v. 7-9 e o Salmo 29.1-2. Por seus acréscimos, percebemos que o Salmo 96 era usado no templo. Nele todos deveriam curvar-se e trazer as suas ofertas. Diante desse Deus toda a Terra deveria tremer. Glória e majestade são suas características.

Paulo escreve aos gálatas sobre um assunto bastante difícil de ser abordado numa carta. Já nos versículos iniciais, em meio às suas costumeiras saudações, suas palavras vão direto ao ponto. Há um outro evangelho sendo divulgado e aceito pelas pessoas das comunidades na Galácia; ao que tudo indica, esse outro evangelho coloca o acento nas exigências da fé judaica (a circuncisão e os preceitos da lei) para a salvação ao invés da aceitação e da obediência à vontade de Deus que deu seu Filho, que se entregou à morte para nos livrar dos pecados e deste mundo mau. Há questionamentos sobre a legitimidade do seu apostolado. Com isso a legitimidade do evangelho que ele anuncia está em jogo.

Lucas 7.1-10 traz com exclusividade o pedido, a intermediação de anciãos judeus, amigos de um centurião romano, para que Jesus curasse o seu servo muito doente. O argumento deles é que o centurião é digno de tal ação de Jesus, pois é amigo do povo judeu e construiu uma sinagoga. Porém Jesus admirou-se dele, pois não tinha achado uma fé como essa em seu próprio povo. E apenas com sua palavra, sem ir vê-lo ou tocá-lo, o rapaz foi curado. O centurião romano crê na autoridade de Jesus.

2. Exegese

O texto de Lucas está inserido na primeira parte do evangelho, onde é apresentada a atuação de Jesus na Galileia. A perícope em estudo vem logo após o Sermão do Campo (Lc 6.20-49) e antes da ressurreição da filha da viúva de Naim (Lc 7.11-17). Conforme E. Lohse, o evangelista tentou estabelecer uma sequência compreensível das peças da tradição, aplanando as emendas entre as perícopes e chamando a atenção para o grande contexto da história governada por Deus, que vai desde a caminhada do povo de Israel e a atuação de Jesus até o presente da igreja (p. 159). Seu autor foi um gentílico-cristão de formação helenista, que tinha a intenção de levar ao mundo helenista a mensagem de Cristo através dos seus relatos. A época do surgimento do Evangelho de Lucas deve ser fixada por volta de 90 d.C.

Uma possível tradução literal do texto seria a seguinte:

1. Quando terminou todas as palavras dele para os ouvidos do povo, entrou em Cafarnaum.
2. Um servo de um centurião, estando mal, estava por morrer, o qual era estimado por ele.
3. Tendo ouvido acerca de Jesus, enviou a ele anciãos dos judeus, pedindo a ele para que, vindo, curasse o seu servo.
4. Os que vieram a Jesus imploraram a ele insistentemente, dizendo que: digno é que concedas isso.
5. Pois ama a nossa nação e a sinagoga ele construiu para nós.
6. Jesus ia com eles. Já não longe estando eles da casa, o centurião enviou amigos, dizendo-lhe: Senhor, não te incomodes, pois não sou digno de que entres sob o meu teto.
7. Por isso nem a mim mesmo considerei digno de ti ir, mas dize uma palavra e será curado o meu rapaz.
8. Pois eu sou homem sob autoridade colocado, tendo sob mim mesmo soldados e digo a este: vai, e vai; e a outro: vem e ele vem; e ao servo meu: faze isto, e faz.
9. Tendo ouvido essas coisas, Jesus admirou-se dele e, voltando-se à multidão que o seguia, disse: Digo a vós, nem em Israel encontrei tão grande fé.
10. E tendo voltado para a casa os que foram enviados, encontraram o servo saudável.

Jesus entra em Cafarnaum, cidade de fronteira no nordeste da Galileia, onde acontece a cena. Nas fronteiras existiam destacamentos militares, cuja autoridade era um “cavalheiro, um cidadão romano”, no caso um centurião que poderia ter sido recrutado nas legiões estrangeiras, estando a serviço do exército romano. O centurião ocupava um posto entre sargento e tenente, o que corresponde hoje a um subtenente. Era um cargo de muita responsabilidade, que podia responder pelos pesados impostos indiretos cobrados por todo o transporte comercial que por ali circulava. Esse centurião apela aos anciãos judeus para que interpelem Jesus. Segundo J. Jeremias, esses anciãos deviam ser ricos, pois dentre eles os romanos escolhiam funcionários responsáveis pelos impostos.

A questão da casa também merece destaque: Jesus inverte as regras sociais da época. O templo era visto como o lugar sagrado da presença de Deus. Mas Jesus vai às casas das pessoas, do povo indigno e lá acontecem cura, aceitação, perdão e salvação. É para a casa do centurião que Jesus se dirige e, mesmo ainda distante, lá acontece a cura.

Os amigos que são enviados pelo centurião não têm uma identidade clara. São anônimos no texto. A tarefa deles é dizer a Jesus que, mesmo sem ser judeu, o centurião merece ajuda, apesar das leis de pureza e impureza que havia entre eles. Mas o próprio centurião não se considera digno dessa visita. Não é por sua pessoa que ele está pedindo, mas por seu servo. Ele está convicto de que Jesus tem autoridade para curar através de uma só palavra. Por ser militar, conhece o poder de uma ordem dada por quem tem o poder sobre os demais, assim como ele obedece fi elmente a ordens recebidas de seus superiores.

De onde o centurião conhece Jesus? Da sinagoga? De ouvir falar? O texto não nos revela maiores detalhes. O que sabemos é que ele crê na autoridade de Jesus e em seu poder para ajudar o seu servo. De onde vem isso? Da tradição e das normas humanamente formuladas e estudadas? Ou de uma vivência real e concreta com Jesus e com as pessoas que estão ao nosso redor?

Ao ver tamanha confiança e fé, Jesus admira-se do centurião. E voltando--se para a multidão que o seguia, falou sobre ele. Certamente entre a multidão havia aqueles que o amavam e os que o observavam para condená-lo. Podemos entender as palavras de Jesus como uma provocação àqueles que se consideram o povo santo de Deus. Aqui um militar gentio é enaltecido como exemplo de fé. Mais tarde, Jesus vai colocar o samaritano, o publicano, as mulheres e tantos outros marginalizados ou excluídos como exemplos de fé. Um pouco antes, em Lc 6.46, Jesus questiona aqueles que o ouvem, dizendo: Por que vocês me chamam “Senhor, Senhor” e não fazem o que eu digo? O que adianta uma relação de autoridade se não há credibilidade e confiança para colocar em prática o que foi recebido?

Qual a autoridade de Jesus para sua comunidade hoje?

3. Meditação

Conta o texto que, na casa de um centurião romano, havia um servo doente. Também aqui não se tem clareza de quem se trata. O termo usado pode designar um serviçal, um escravo comprado por dinheiro, portanto valioso para o seu dono, ou um próprio filho, que na pirâmide social da família estava sob a autoridade e domínio do pai. Em todo caso, essa pessoa estava à beira da morte, e o centurião estava disposto a fazer o que fosse preciso para salvá-lo, pois o amava.

É de se compreender que ele tivesse pedido aos anciãos judeus que falassem com Jesus, que também era judeu. Conhecedores das tradições, costumes e leis eles saberiam como sensibilizar o Mestre para essa causa. E eles usaram argumentos fortes: o centurião é digno da atenção de Jesus, primeiro porque é simpatizante dos judeus, talvez até frequentador da sinagoga e, segundo, porque construiu uma sinagoga para o povo dali. Diríamos hoje: um homem bom! Os argumentos convenceram Jesus, pois ele foi com eles. Se o texto terminasse por aqui, era isso que compreenderíamos. Porque o centurião fez o bem, merece o bem em troca. Em outras palavras: para os judeus, justo perante Deus era somente aquele que tivesse obras para exibir, como a lei as exigia.

Então, por que esse homem não se considera digno diante de Deus? Ele era bom e fazia o bem... O texto segue, e amigos anônimos do centurião vão a seu encontro e, antes que ele chegasse à casa, trouxeram um recado: “Lembre-se que ele não é judeu e não é digno da sua presença em sua casa...” Pelo menos era assim que regiam a lógica e os costumes da época. Quanto problema Jesus enfrentou por ir à casa de pessoas indignas, pecadoras e de outras origens... Comer com elas foi um dos argumentos que o condenou à morte.

Mas agora aparece algo inusitado, que faz Jesus ficar admirado: o centurião crê que uma palavra sua curará o servo doente, mesmo de longe. Porque, como militar, o centurião conhece muito bem uma ordem dada por um superior. Ordem é ordem e deve ser cumprida. Não compete ao subalterno entender o porquê dela, apenas obedecer. De onde vem a autoridade de Jesus para o centurião?

Mesmo convivendo com judeus e estando familiarizado com as suas regras religiosas, a partir de sua própria experiência o centurião experimenta algo: a fé em Jesus. Isso é novo, pois o próprio Jesus se admira! Para o centurião, a cura depende da palavra de Jesus, da sua manifestação, do seu querer. O que ele, centurião é ou faz, não o torna mais merecedor ou menos merecedor da ação salvadora de Jesus. Ele só pode pedir, acatar, acolher e crer.

Imagino que, para a comunidade lucana e para as comunidades na Galácia, essas questões ainda traziam muitos conflitos. O que impera ainda é a forte influência da lógica religiosa do judaísmo. Também Paulo é acusado de não ser apóstolo legítimo e que o evangelho que prega, por não exigir circuncisão e os ritos religiosos e legais judaicos, não era verdadeiro. Foi preciso relembrar o seu chamado para ser apóstolo, que não se deu por meio de pessoas, mas pela ação de Deus. Pois se fosse para agradar as pessoas (assim como o estavam acusando), Paulo diz que poderia ter continuado um dos “melhores” judeus, pois conforme Gálatas 1.14, ele era bom no que fazia e estava à frente de muitos. Tinha muitos méritos a comprovar. Mas o apóstolo insiste que esse não é o evangelho verdadeiro. Esse é o que agrada as pessoas. Ele apela para que a comunidade permaneça firme, obediente à vontade de Deus, seguindo o evangelho de Cristo, para a aprovação dele e não de pessoas ou líderes religiosos.

Méritos diante de Deus? Temos? O que vale para a ação da comunidade? Muitas vezes, nossa ação diaconal está condicionada para o que a pessoa faz, como ela vive, quanto participa, se paga ou não a contribuição etc. Medimos, colocamos uma fita métrica no lugar da graça e, não poucas vezes, pessoas sucumbem por falta de mãos amigas, da presença concreta, de palavras confortadoras, da força divina para transformar o seu viver.

Há poucas semanas comemoramos Pentecostes. Eis o tempo da igreja, o tempo do serviço, do ir a campo, dos sinais do reino frutificar, pois o Espírito de Deus não está mais preso ao templo nem nos beneficia conforme as ofertas trazidas como ação de graças. Ele age onde quer. Ele inspira e inflama a fé. E pela ação de Jesus, nós percebemos que ele age nas casas e nas ruas, lá onde as pessoas estão. E esse é o seu envio a todas as pessoas que o chamam de Senhor e colocam-se sob sua obediência.

Buscar forças e orientação na igreja, nos cultos e celebrações é importante. Traz-nos a lembrança, e experimentamos o grande amor de Deus em Cristo. Precisamos ser lembrados e lembradas de que a lógica do mérito, da escadinha social, de quem vale mais ou menos não funciona aos olhos de Deus. E se queremos viver o novo que Jesus veio inaugurar, então precisamos desconstruir essas compreensões meritórias sempre mais presentes diante da economia de mercado e das teologias da prosperidade e do espiritismo reinante.

No texto, foi a fé do centurião que surpreendeu todos e todas. E hoje, a fé de quem nos tem surpreendido?

4. Imagens para a prédica

Proponho que se crie uma situação “real” para a comunidade posicionar-se e ajudar a decidir. Pode-se propô-la através de uma explicação ou com uma encenação.

A Páscoa aproximava-se, os preparativos na comunidade eram intensos... Ministros e ministras com agendas abarrotadas de celebrações da Ceia a doentes e idosos em suas casas, celebrações nas comunidades. Lideranças comunitárias dividindo-se entre os preparativos para a Páscoa familiar e na comunidade. Eis que vem dois pedidos para Ceia nas casas: o primeiro de uma mulher que ninguém lembra quem é, mas está num albergue municipal. Nem foi ela quem pediu, mas um familiar que gostaria que ela tivesse a celebração da Ceia, pois suas forças estavam enfraquecendo e seu fim não tardaria. A outra pessoa era alguém muito ligado à comunidade. Membro assíduo em cultos, ativo nas atividades e grande colaborador financeiro. Também ele não pediu, mas a sua família fazia questão da Santa Ceia, pois, afinal, a Páscoa se aproximava... A agenda pastoral só permitia uma das duas visitas. A outra teria que ficar para depois da Semana Santa. Qual das duas escolher?

A reflexão poderia partir de ponderações sobre méritos a favor de um ou de outro. Poderiam entrar argumentos de classe social, de gênero, de mérito por trabalho, de abandono e de exclusão social. Lembrem que nenhum dos dois casos a pessoa pediu, mas seus familiares. Se não fosse atendido, quem cobraria ou reclamaria mais? Por quê? Como reagimos numa situação dessas como comunidade? O que é fazer o que Jesus nos pede nesse exemplo concreto?

Por fim, é importante lembrar que Jesus foi à casa do centurião porque o rapaz estava morrendo. A vida estava em perigo. Essa é a prioridade de Jesus e deveria ser a nossa, independentemente de agradar ou não as pessoas. O que importa é a aprovação de Deus e fazer o que Jesus nos pediu, enquanto esperamos a plenitude do Reino.

Bibliografia

MORIN, Émile. Jesus e as estruturas de seu tempo. Edições Paulinas, 1982.
VASCONCELLOS, Pedro Lima. A boa notícia segundo a comunidade de Lucas. 
A Palavra na Vida. CEBI, 1988. p. 123/124.


 


Autor(a): Anelise Lengler Abentroth
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 2º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 10
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2015 / Volume: 40
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 35187
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