Marcos 9.2-9

Auxílio Homilético

10/02/1991

Prédica: Marcos 9.2-9
Leituras: Êxodo 34.29-35 e 2 Coríntios 3.12-4.2
Autor: Romeu R. Martini
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 10/02/1991
Proclamar Libertação - Volume: XVI


1. Contexto da perícope

No firme propósito de apontar para a relação entre o ressuscitado e a vida do crucificado Mc narra momentos importantes da vida de Jesus. Para os discípulos, que conviveram com Ele, e para a comunidade à qual Mc escreve, o evangelho revela aspectos do Reino: a oração (1.35); as curas/saúde (tantos textos!); os conflitos (3.6; 11.15-19); a partilha do pão (6.30-44); a função da lei (3.1-6); e a essência do Reino: o serviço (10.35-45). Além desses aspectos, nossa perícope está inserida no bloco de 8.27-10.52, no qual o acento forte recai nas três vezes em que Jesus prediz sua morte e ressurreição (8.31-33; 9.30-32; 10.32-34). Creio que Mc conseguiu reconstruir de forma muito precisa e palpável a dificuldade que os discípulos tinham (a comunidade de Mc certamente também a teve, como hoje continuamos tendo!) em entender as razões da cruz de Cristo.

Na hora da confissão (da palavra), Pedro diz bem: Tu és o Cristo (8.29). Mas na hora de assumir as consequências que podem advir desta confissão Pedro se acovarda (8.32). Jesus, assim entendo eu, continuou com muita tática na instrução dos doze. Quanto diálogo com eles (ou na presença das multidões)! Quantas oportunidades para crer neste Jesus e vestir a camisa na sua caminhada (9.14-29)! Mas os discípulos eram de dura cerviz (Êx 34.9). Ocupavam-se com o que é secundário para a proposta do Reino (10.37). E é neste contexto que a perícope precisa ser entendida, ao meu ver. Ela quer ser um documentário que identifica Jesus com Cristo.

2. A perícope

V. 2 — Parece que dentre os doze mais achegados a si, Jesus tinha três que testemunharam momentos centrais da sua vida: Pedro, Tiago e João foram os escolhidos para acompanhar a ressurreição da filha do chefe da sinagoga (5.37), que testemunharam a agonia do mestre (14.33) e agora serão testemunhas da transfiguração. À parte os três testemunharão um fato (diante deles) que quer visualizar que o ainda Jesus será o Cristo glorificado. Esta cena de glória manifesta o que na realidade era e em breve definitivamente será aquele que deve passar, por algum tem pó, pelas humilhações do servo sofredor (Bíblia de Jerusalém NT, na nota sobre o título da perícope). Isto tudo se deu num alto monte. Lembra o que deve acon-tecer no últimos dias também (Isaías 2.2).

V.3 — Vestes ... resplandecentes ... e brancas destacam a manifestação divina (cf. Êx 34.29-35), à semelhança do que as mulheres viram no jovem dentro do túmulo (16.5).

V. 4 — Elias e Moisés são duas figuras nas quais também se manifestou o paradoxo da missão que Deus lhes dera: são perseguidos por não serem reco¬nhecidos como enviados de Deus. Sofrem, e muito, por causa da tarefa que devem levar a cabo.

V. 5— Pedro novamente (como em 8.29; 10.28; 11.21; 14.29) agarra o microfone! É pra falar? Deixa que eu falo! Mas aqui ele fala besteira. Naquilo que diz, demonstra que não entendeu o que na transfiguração deveria ser patente. Pedro ocupa-se como que é secundário: construir tendas, i. é.: Vamos ficar por aqui mesmo, Jesus. É tão emocionante experimentar o gozo celestial! Não vamos voltar ao pé do morro, na baixada, pois lá há muita turbulência. Os discípulos projetam aqui, sem dúvida, sobre Jesus um conceito triunfalista do Messias (Hoefelmann, p. 115).

V. 6 — Aqui se confirma, ao meu ver, o que entendi no v. 5: confusos (ou de dura cerviz mesmo!), atemorizados, sem ter o que dizer (cf. 14.40), os discípulos reagem... mas apontando para algo que a cena não quis evocar.

V. 7 — Nuvem é imagem que evoca a presença divina. Os envolveu: em Jesus Deus se manifesta plenamente. E agora é o próprio Pai que vai dizer o que desde o início a transfiguração quis evidenciar: Jesus é (não há como duvidar) meu Filho. Ele é o que será rejeitado... morto... ressuscitado (8.31). Ouçam o que Ele tem a dizer!

V. 8 — O evangelho foi novamente anunciado (provado, ou não?) e é isso que interessa. É o que basta! Ficam eles novamente com Jesus e a caminhada preci¬sa prosseguir. Mesmo assim, nos vv. 10ss fica evidente que a transfiguração ainda não foi o suficiente para que os discípulos entendessem o que seria necessário (8.31) acontecer ao Filho.

V. 9 — Mc é o evangelho do segredo messiânico. Poderíamos entendê-lo assim: Pedro, Tiago, João (mais a comunidade ouvinte de Mc, mais o povo de Deus hoje)! É esta a situação. Jesus será o Cristo glorificado e vice-versa. Neste processo a cruz é indesviável (não é por acaso que nossa perícope é precedida e sucedida pelo anúncio da cruz). Disso não se faz alarde. No terceiro dia tudo virá à luz. Agora o importante é seguir persistente na caminhada. E o que sustenta a caminhada é a fé de que a cruz vai manifestar a glória e não o fim que os inimigos de Jesus (8.31) querem.

3. Mensagem

Os discípulos de Jesus, especialmente Pedro, Tiago e João, embora tivessem tido chances concretas de enxergar para entender que Jesus é o Cristo e vice-versa, não captaram o cerne da questão. Assim certamente foi com a comunidade de Mc. Assim continua na atualidade para a grande maioria dos fiéis membros das igrejas cristãs.

Foi lá e é aqui tão difícil de entender e aceitar que na ação cristã (e aí podemos falar de missão da Igreja, de testemunho cristão) se manifesta a cruz, a força do mal, a morte, encarnada em pessoas e estruturas que se opõem ao que Deus deseja ver acontecer na vida de seus filhos e suas filhas.
Diante do anúncio do Evangelho de Marcos há diferentes reações e, consequentemente, diferentes maneiras de viver a fé cristã. Destaco estas:

a) Cristãos que acompanham tudo o que as igrejas oferecem: Deus é um só! Não há diferença entre luteranos e católicos! É tão bonito o enterro na Assembleia de Deus! Foi bonito ver a inauguração daquela loja com a bênção dada pelo pastor. Tudo o que é feito em nome de Deus é bom, é certo, é aceitável.

b) A Igreja não deve se meter em política e nas questões sociais. Em resumo: a Igreja deve ficar de fora de todas as angústias e reivindicações da classe trabalhadora no Brasil. Não apontar para as causas da morte prematura. Mas na hora da morte consolar, sim!

c) A Igreja deve anunciar o evangelho puro, da salvação eterna. O/a pastor /a precisa trazer uma mensagem mais espiritual. Pastor! Eu quero a Santa Ceia porque se eu morrer aqui no hospital quero ao menos ter garantido a salvação da alma. A mensagem no culto de Páscoa foi bonita. Só não gostei quando o pastor disse que a paixão de Jesus continua naqueles/as que agora (abril/maio de 1990, depois do Plano Collor) são roubados no preço da soja. Jesus morreu por mim. Eu entregarei minha vida nas mãos Dele e herdarei a vida eterna.

Os discípulos estavam muito preocupados com o número da cadeira que possivelmente ocupariam na eternidade (Mc 10.35ss). Enquanto isso, Jesus deixa claro que a glória eterna é garantia como consequência do comprometimento na caminha da, no serviço (diaconia, Mc 10.43s).

A perícope aponta para o que não é desviável: a glória eterna é antecedida por uma caminhada onde se age como Jesus agiu (derrubando leis de opressão que impedem a vida, a saúde — Mc 3.1-6; partilhando o pão e fazendo de tudo para que o pão seja partilhado — 6.30-44; hoje a caminhada da Igreja como instituição e membros da comunidade se expressaria na solidariedade com os atingidos por barragens, os que lutam pela terra, pela saúde, enfim caminhada como Igreja de Jesus Cristo no Brasil) e onde se sabe conscientemente que nesta caminhada correm-se muitos riscos (aquilo que a cruz expressa e o que ela mesma pode significar).

O difícil é fazer com que isso seja entendido. Jesus levou o trio para o monte. Para onde poderemos levar os que hoje duvidam que a proposta de vida cristã é a mesma que Jesus procurou viver com os seus?

Creio que a melhor forma de levar a comunidade é recontar a perícope no contexto de Marcos. Daí a necessidade de nós pregadores/as conhecermos a conjuntura e as estruturas do tempo de Jesus e de Marcos (e de cada livro da Bíblia!). Além disso, constato cada vez mais que os membros entendem a relação da glória com a cruz na medida em que o/a pastor/a e presbíteros (devidamente preparados e comprometidos!) conversam com os membros ao pé do ouvido a partir das suas cruzes. A partir do luto, por exemplo, dá pra chegar na dor provocada por outras forças nocivas à vida que Deus deseja. A partir dos que sentem na carne o suor não compensado no preço da soja dá pra refletir sobre toda a roubalheira que pesa sobre o assalariado. Mas isso não é fácil! Como articular isso numa estrutura paroquial de atendimento? Por aí é importante pensar e achar brechas.

4. Sugestão para a pregação

1. O último domingo após Epifania é sucedido pelo tempo da Paixão. Isso é ponto-chave a ser considerado na pregação! A prédica pode ser uma introdução geral a toda a problemática que hoje envolve a relação entre o Jesus no caminho da paixão e morte e o Cristo ressuscitado. Nesta direção proponho que: a) a comunidade seja sintonizada com o tempo da Paixão e b) se contextualize a problemática que a perícope tanto trabalha, i. é., a dificuldade dos discípulos e da comunidade de Mc em entender a relação cruz e ressurreição.

2. Abordar questões básicas da perícope. Creio que as leituras previstas para o dia (Êx 34.29-35 e 2 Co 3.12-4.2) ajudam em alguns aspectos. Especialmente a leitura do NT aborda a questão da necessidade de tirar a venda dos olhos (2 Co 3.18, rosto descoberto, Bíblia na linguagem de hoje). A teologia da glória é uma venda desgraçada. Ela ofusca a cruz e tudo aquilo que a cruz expressa. Tudo que aconteceu no alto monte (Mc 9.2) tinha como grande alvo as vendas nos olhos dos discípulos.

3. Sobre o altar poderiam ser colocados uma cruz rústica e um símbolo que expressa a ressurreição, e mais que isto, que faz alusão à eternidade da forma como a comunidade melhor puder entender (este símbolo poderia ser um buque de flores).

— A transfiguração quis ajudar (convencer?) os discípulos a entender a indesviabilidade da cruz.

— Embora Jesus sempre falasse da cruz e da ressurreição, os discípulos parece que só enxergavam a cruz. Por isso seu medo dela (8.32). (Aqui se poderia tirar o símbolo da ressurreição do altar. Deixar só a cruz. Enfatizar bem este aspecto.)

— Os discípulos, porém, ainda não tendo testemunhado a ressurreição, estavam preocupados com a morada celeste (tirar a cruz do altar e recolocar o símbolo da ressurreição). Não conseguiam fazer a relação entre glória e cruz.

— Nós hoje (assim já Mc) enxergamos a cruz a partir/através da ressurreição (colocar os dois símbolos sobre o altar, com o símbolo da ressurreição à frente da cruz).

— Nós, portanto, temos com a ressurreição (Páscoa) testemunho maior que a transfiguração queria dar. Podemos refletir sobre a cruz sabedores que a ressurreição já aconteceu.

— Mas para nós a lógica da caminhada continua sendo a mesma que para os discípulos e a comunidade de Mc: a ressurreição/a glória/o céu (onde o efeito desta expressão ajudar mais) é consequência de uma vida no caminho da cruz (colocar agora a cruz antes do símbolo da ressurreição); no caminho em que agimos sempre de acordo com a verdade (2 Co 4.2); no caminho da derrubada de leis que impossibilitam a vida (3.1-6); no caminho, enfim, que pode nos custar a própria cruz. Aqui dá pra acentuar aspectos que condizem ou mexem mais com o Sitz im Leben da comunidade.

— Em tudo que for abordado, em todos os casos, o desafio é manter a dialética entre cruz e ressurreição.

5. Subsídios litúrgicos

1. Em vez de um versículo, proponho ler um Salmo ou parte do Salmo previsto para o domingo. Conferir nas Senhas diárias.

2. Confissão de pecados: Deus da vida, Senhor sobre a morte! Nós cremos na ressurreição para a vida eterna, mas custa-nos entender os motivos da cruz de Jesus. Nós desejamos herdar a eternidade, mas relutamos em nos engajar na superação das diferentes forças do mal que encurtam e acabam com a vida. (O contexto da comunidade permite que se digam mais coisas fáceis que gostamos de fazer e desafios que não assumimos.) Tem piedade...

3. Oração de coleta: Único e eterno Deus! Num ritmo de vida agitado e cheio de insegurança é bom poder parar para, no silêncio, na companhia de irmãs e ii mãos em Cristo, ouvir e refletir sobre tua palavra. Concede-nos a presença do Espírito Santo, para que a semente da tua palavra encontre em cada um de nós terra fértil. Por nosso Senhor Jesus Cristo, que vive e reina contigo na unidade do Espírito Santo

4. Oração final: O conteúdo e a participação da comunidade na oração precisam receber o mesmo peso. Creio que não é justo o/a pastor/a puxar a oração sozinho. Além disso, disse-me uma senhora: Pastor! Quando a oração é participativa a gente se sente mais comprometido. Melhor ainda é distribuir os agradecimentos e preces para que sejam falados por diferentes membros. Experiência interessante é dar um tempo depois da prédica, na hora dos avisos, para que a comunidade escreva em bilhetes que se encontram à disposição pequenas preces e agradecimentos.
Após cada agradecimento a comunidade diz: Obrigado, Senhor. Após a prece: Escuta, Senhor, a nossa oração.

6. Bibliografia

HOEFELMANN, Verner. O caminho da Paixão de Jesus na perspectiva do Evangelho de Marcos. In: Estudos Teológicos n° 2, 1986, São Leopoldo.


Autor(a): Romeu Ruben Martini
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: Último Domingo após Epifania
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 9 / Versículo Inicial: 2 / Versículo Final: 9
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1990 / Volume: 16
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14054
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