Palavra indispensável

07/11/2016

 

Lado PALAVRA

PALAVRA INDISPENSÁVEL

Catequista Louis Marcelo Illenseer

Em muitas de nossas casas, a Bíblia tornou-se um livro empoeirado. Em algumas ela tem um lugar de destaque na estante, aberta sobre um suporte. Em outras casas ela está suja, amassada, rasgada até de tanto uso. Assim, e de muitas outras formas, a Bíblia faz parte do cotidiano de muitas famílias cristãs e também de pessoas de outras crenças.

Lutero a princípio não tinha Bíblia no seu cotidiano. Quando ele começou a estudar, teve seu primeiro contato com a Bíblia, conforme ele mesmo relatou em 1540:

Como adolescente em Erfurt, vi a Bíblia na biblioteca da universidade e li uma passagem de Samuel. Mas a sineta chamou-me de volta à preleção. Eu tinha uma enorme vontade de ler todo aquele livro. Só que, naquele tempo, não surgia nenhuma oportunidade.

Lutero, como sabemos, passou por uma crise existencial. Ele pensava: “como pode um Deus que se prega como justo ser tão mau e carrasco com suas criaturas?” A partir deste pensamento, ele se autoflagelava, na esperança de conseguir o perdão de Deus por seus inúmeros pecados. Outra forma de conseguir perdão era com severas penitências, como, por exemplo, subir vários degraus de uma escada de joelhos.

Com o estudo da Bíblia, Lutero descobriu o ingrediente indispensável que iria mudar a sua vida (e a vida de muita gente). Na carta aos Romanos, leu: “O justo viverá pela fé”. Lutero descobriu um outro Cristo, um Cristo amigo, solidário, que sofre por nós e se coloca ao nosso lado, no nosso sofrimento, e não um Cristo que exige o nosso sofrimento.

A partir disso, sua nova interpretação das escrituras incomodava quem sempre teve o domínio do estudo e da interpretação dos textos. Suas palavras geravam uma postura desafiadora, que enfrentava tradições e pessoas importantes, como bispos e o próprio Papa.

Seus escritos tornaram-se públicos e suas ideias começaram a ser debatidas. Um momento marcante nesse sentido foi a sua convocação para a dieta de Worms. Lá ele foi pressionado a negar ou afirmar os seus escritos e suas convicções, diante do Imperador. Lutero até queria debater com seus oponentes, mas a questão foi colocada categoricamente, em duas questões: “Estes escritos são seus?” (Colocaram diante de Lutero os textos que circulavam na Alemanha). Lutero respondeu que sim. “Você nega o que você escreveu ou afirma isto?” Diante da questão, Lutero pediu um tempo para pensar, mas ganhou apenas um dia para isto. No outro dia, chegando diante dos estudiosos, autoridades e do Imperador, Lutero colocou o seguinte:

Sendo que Vossa Majestade e Graça Imperial deseja uma resposta simples, quero dá-la de forma não ofensiva nem agressiva: A não ser que seja convencido pelo testemunho da Escritura ou por argumentos evidentes (pois não acredito nem no papa nem nos concílios exclusivamente, visto que está claro que os mesmos erraram muitas vezes e se contradisseram a si mesmos) – e minha convicção vem das Escrituras a que me reporto, e minha consciência está presa à Palavra de Deus – nada consigo nem quero retratar, porque é difícil, maléfico e perigoso agir contra a consciência. Deus que me ajude. Amém.

Alguém, aí, fala, lê ou escreve em latim?

A Bíblia usada nas universidades e igrejas estava escrita em latim. Somente os clérigos e estudiosos entendiam o latim. Lutero acreditava que o povo deveria conhecer este Cristo que ele conheceu, e por isso traduziu a Bíblia para o alemão. Estas palavras de Lutero nos mostra a sua convicção:

Não se deve querer falar alemão como se encontram as letras na língua latina. Isso fazem esses asnos. Ao contrário, devemos perguntar à mãe em casa, às crianças na rua, ao homem comum no mercado, olhar atentamente para suas bocas, como costumam falar e traduzir correspondentemente. Aí essas pessoas entendem e notam que se fala alemão com elas.

Na Bíblia dá para ouvir a voz de Cristo

A Bíblia fala do testemunho do povo de Deus que vive com Deus. A Bíblia é fruto dessa relação entre Deus e seu povo – esse Deus fala para o seu povo através do Espírito Santo. Lutero diferenciava a Bíblia escrita da “viva voz do Evangelho”. Os ministros e as ministras, quando pregam sobre textos do Antigo Testamento, aprendem a elaborar o que se chama de “curva cristológica”, ou seja, a Palavra de Deus que vem do Antigo Testamento (primeira aliança) deve ser refletida a partir da mensagem do Evangelho. Tudo aquilo que está na Bíblia deve promover o Evangelho de Jesus Cristo.

Aquilo que não ensina a Cristo não é apostólico, mesmo que Pedro ou Paulo o ensine; inversamente, aquilo que prega Cristo é apostólico, mesmo que Judas, Anás Pilatos ou Herodes o façam.

Essas palavras de Lutero são radicais. A Bíblia perde seu caráter divino, no sentido de que ela, em si, não tem poder de salvar alguém. O que está na Bíblia pode ser usado contra ou a favor da vida, como, por exemplo, os primeiros colonizadores que chegaram às terras brasileiras em 1500: trouxeram a Bíblia, mas em nome dela (da Palavra de Deus) mataram milhares de pessoas indígenas e agiram em favor de interesses mercantilistas. A Bíblia deve ser elemento que promove a mensagem de vida de Cristo. Lutero falou assim contra interpretações das escrituras que não promoviam vida: “Se os adversários promovem a Escritura contra Cristo, então nós promovemos Cristo contra a Escritura.”

A ação do Espírito Santo guia a interpretação da Palavra. É Deus que vem e fala a nós, através de nós mesmos e mesmas. Lutero entende essa ação como uma experiência:

Ninguém poderá compreender direito a Deus nem a palavra de Deus a não ser que o tenha diretamente do Espírito Santo. Ninguém, entretanto, pode tê-lo do Espírito Santo sem experimentá-lo, prová-lo, senti-lo, e nessa experiência, o Espírito Santo ensina, como que em sua própria escola, fora da qual nada se ensina senão palavras ilusórias e conversa fiada.

Com isso, a Bíblia e a experiência humana se complementam na construção ou processo que chamamos de crescimento na fé. O texto escrito nos testifica a ação de Deus em favor da sua criação. Hoje a leitura e interpretação da Palavra são guiadas pelo Espirito Santo, no meio em que atuamos. Cada um e cada uma de nós que quer desempoeirar a Bíblia precisa aprender a desempoeirar também as relações humanas, na família, no grupo de jovens, no trabalho, na sociedade. A palavra de Deus escrita há tantos anos atrás é chave para nossa vida hoje. Se estamos estudando essa Palavra, queremos que ela determine o nosso caminhar de fé, de lutas por uma sociedade mais justa. Devemos experimentar, ler, falar, expressar:

“Ninguém, depois de acender uma candeia, a cobre com um vaso ou a põe debaixo de uma cama; pelo contrário, coloca-a sobre um velador, a fim de que os que entram vejam a luz.” (Lucas 8.16)

Lutero acendeu uma luz. Somos hoje também desafiados e desafiadas a manter esta luz da interpretação da Palavra de Deus viva entre nós.


Este estudo teve a linguagem revista e atualizada. A proposta integra o volume 3 da Coleção Palavração denominado “Graça e Fé: temperos para a vida”, publicado em 2003 pelo Departamento Nacional para Assuntos da Juventude da IECLB – DNAJ, sob a coordenação de Cláudio Giovani Becker e impresso por Contexto Gráfica e Editora (ISBN 85-89000-14-1).


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