Hebreus 9.24-28

Auxilio Homilético

06/11/1994

Prédica: Hebreus 9.24-28
Leituras: 1 Reis 17.8-16 e Marcos 12.41-44
Autor: Leonídio Gaede e Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: Antepenúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 06/11/1994
Proclamar Libertação - Volume: XIX


[Obsservação inicial do Conselho de Redação: A leitura prevista para a pregação neste ano é l Reis 17.8-16. No entanto, como esse texto foi tratado no Proclamar Libertação XVI, pp. 292ss, os autores foram solicitados a meditar sobre a Epístola.]

1. Introdução

Assim com em l Rs, também em Mc uma viúva pobre dá de si o que tem. Apenas isso e tudo isso. Na viúva de Serepta há a confiança de alimentar o hóspede estranho, antes de seu filho e a si mesma, com o último punhado de farinha e o resto de azeite. A bênção vem pela boca de Elias: A farinha da tua panela não se acabará e o azeite de tua botija não faltará (v. 14). Na viúva pobre, citada em Mc 12, há a confiança de depositar o que possui no prato de coletas. A bênção vem pelo próprio Jesus, que, diante das grandes quantias dos ricos, valoriza a oferta da viúva.

Em Hebreus, em especial em nossa perícope, também podemos notar que alguém dá de si o que tem para dar: o povo oferece sacrifícios em adoração a Deus. Isto é, ao nível da fé, exatamente o que tinha de ser feito. O gesto corresponde ao que também fazem as duas viúvas: os judeus, ao sacrificar, como manda a lei e a fé da época, oferecem o que têm. Não se podia esperar que agissem de acordo com o que ainda não tinham recebido: a mediação qualitativamente melhor através do sacrifício único e suficiente de Jesus que superou toda a necessidade de repetir sacrifícios.

Só se pode tirar pouco onde pouco tem. Desse modo se apresentava a realidade para o autor de Hebreus. Trabalhamos aqui com a hipótese de que ele estava diante de judeus na iminência de aceitarem a fé cristã (queria convencer os judeus de que Jesus Cristo é um passo adiante na lógica do plano de salvação) e/ou judeus que há pouco assumiram o risco desse novo eixo semântico cristológico, com dificuldades para se desprender da prática sacrificial (Hb 6.4-8). De propósito não estamos usando a expressão judeus convertidos, pois o autor de Hebreus certamente respirava muito mais um judaísmo progressista do que um cristianismo que vinha substituir a fé judaica. Reunir os três textos de l Rs 17, Mc 12 e Hb 9.24-28 é muito feliz nesse aspecto. O autor enxerga positivamente a fé dos judeus, assim como Elias e Jesus valorizam o pouco ofertado pelas viúvas.

2. Considerações exegéticas

Desde o seu início, o livro de Levítico trata do assunto do sacrifício, que culmina no capítulo 16, onde se descreve minuciosamente o sacrifício no Dia da Expiação (hoje mais conhecido como Yom Kippur). O autor de Hebreus refere-se mais especificamente a esse sacrifício no Dia da Expiação, quando exalta Jesus Cristo como Sumo Sacerdote que se auto-sacrifica de uma vez por todas, produzindo, com isso, suficiente expiação.

Nessa perícope que constitui a parte final de um bloco expositivo (8.1-9.28), o autor de Hebreus contrapõe a réplica imperfeita do santuário ao verdadeiro santuário (v. 24), o sacrifício repetido a cada ano com sangue alheio ao sacrifício único e bastante de Jesus com seu próprio sangue (vv. 25 e 26), o juízo que sucede à morte única de cada pessoa humana à segunda vinda de Cristo, sem pecado, para a salvação dos que o aguardam.

A palavrinha hapax tem uma função decisiva em todo o assunto do sacrifício; em várias passagens carrega o significado de uma vez por todas, uma única vez, de uma vez para sempre (Hb 6.4; 9.7,26,27,28; 10.2). Confira também Sl 89.35; l Pe 3.18; Jd 3.5). Associada a eniautós, ano, significa uma vez ao ano (Ex 30.10, Lv 16.34, Hb 9.7). Precedido por éti, ainda, significa: mais esta vez, só esta vez, pela última vez (Jz 6.39; 16.18,28; Hb 12.26s.). Com ela o autor contrapõe o sacrifício repetido ano a ano com bodes e touros (10.4) ao sacrifício de uma vez por todas de Jesus Cristo.

Chamamos a atenção para mais duas questões:

a) Para o autor, o tempo não se cumpre na escatologia, mas se cumpre nyn, agora, com o sacrifício de Jesus. De uma vez por todas ajuda a marcar o final de um período e o início de outro período de tempo. A Bíblia pensa o tempo em pacotes, ciclos que se cumprem. Deus tem períodos de história com seu povo e dentro deles progride na qualidade de sua relação. Um período não invalida o outro, mas absolve o outro, supera o outro. Desse modo, houve o tempo dos sacrifícios, houve o período de denúncia profética dos sacrifícios e agora cumpriu-se o sacrificialismo com o auto-sacrifício definitivo e bastante de Cristo.

b) O v. 26 apresenta uma aniquilação generalizada do pecado; conclui-se aqui que o pecado já não existe mais, foi eliminado da face da terra. Já o v. 28 fala em tirar o pecado de muitos, referindo-se adiante também a uma quantia indefinida de pessoas que aguardam a segunda vinda de Cristo, para a salvação. Será isso uma contradição, ou refere-se o autor no v. 26 à expectativa messiânica judaica, distinguindo-a da expectativa escatológica cristã no v. 28?

3. Meditação

Esse texto convida para um reflexão metodológica e outra de conteúdo:

3. 1. Uma grande contribuição do cristianismo histórico para os graves problemas de hoje é, sem dúvida, a identificação direta entre fé e cultura dominante. Essa identificação serviu e ainda serve para legitimar discriminações raciais, sociais, étnicas, econômicas. Nossa história com indígenas e escravos negros é testemunho bastante para os malefícios advindos de tal curto-circuito.

Nosso falar do Deus hoje pode nos apresentar como cristãos confessos ou nos denunciar como idólatras travestidos. Por mais que queiramos responder ao amor de Deus, nossa fé falha. Como Deus habita em luz inacessível (l Tm 6.16), nosso falar a seu respeito é absolutamente limitado. Ao tentarmos achar atributos para Deus, corremos o risco de descrever criações de nossa própria mente; assim vamos fabricando nossos deuses (Is 44), de acordo com a nossa própria conveniência. Nossa confissão de fé, que é o nosso falar de Deus mais importante, deve, pois, incluir a expressão consciente de que somos incapazes de crer (Catecismo Menor de Martim Lutero, 3° artigo do Credo Apostólico) ou apenas capazes de crer imperfeitamente.

Essa postura é vital na evangelização. Naquele reino onde tudo está pronto, correto e completo, não há lugar para o outro, o diferente. O autor de Hebreus nos ensina isso com o seu método, o seu jeito de colocar Cristo acima de tudo para os judeus.

Tentemos entender o nosso autor anónimo com um exemplo de nossos dias: Frei Betto tem um interessante artigo intitulado Maria Negra de Aparecida (pp. 82ss.) sobre o resgate do símbolo de Nossa Senhora Aparecida em benefício do Movimento Popular. A devoção a essa santa — mesmo sendo algo amplo e irrestrito, ao ponto de parecer bom para classes sociais antagónicas — estava confinada ao mundo religioso e, dessa forma, dissociada do mundo público. A santa corria o risco de tornar-se desinteressante para toda uma camada social que luta por melhores salários, garantia no emprego, aposentadoria digna, casa, pão, terra e paz. Aparecida ganhara um sentido-em-si e, por isso, era capaz de aliviar consciências devotas de ricos e pobres, sem exigir compromissos com a vida de quem quer que seja. Todavia, ao perceber essa tendência, o Movimento Popular não excluiu esse símbolo — tão capaz de atrair multidões — de seus projetos. A Basílica Nacional, pelo contrário, mais e mais passou a ser palco de grandes manifestações públicas em favor de lutas sociais. Teóricos reelaboraram a história da santa, e ela, em vez de alienar, recriou sua força simbólica numa nova realidade: a presença de lutas sociais no seio da comunidade católica.

O sacrificialismo era uma realidade entre os destinatários de Hebreus. O autor considerou isso um ponto de partida. Ignorar ou anatematizar essa realidade seria desacreditar a história de Deus com seu povo até ali. Desacreditar essa história seria inocular a realidade presente e futura, que se quer afirmar agora com o mesmo germe de descrédito. Desse modo, a hermenêutica de substituição (cristãos subs¬tituem judeus como povo eleito; ao redor de 600 d.C. vêm os muçulmanos, entendendo-se como substitutos dos cristãos) decretou, no fundo, a morte da teologia ocidental, pois se reporta a um Deus que não é confiável, vira e mexe está trocando de povo eleito.

Aderir à fé judaico-cristã, não há como negar, implicava o abandono da religião de sacrifícios. Abba, o Deus de Jesus Cristo, não tem fome de vítimas. Aderir à fé cristã implicava o abandono da mania de fazer vítimas no processo de adoração de Deus, porque o sentido original do rito de sangue tinha sido desviado fundamentalmente num ponto: ele adquiriu um sentido-em-si e passou a aliviar consciências, sem exigir compromissos com a vida.

3.2. A reflexão de conteúdo é a respeito do sacrifício (veja várias contribuições no livro editado por Assmann). O sacrifício para expiar pecados faz parte do esquema ideológico judaico (veja tipologia em Pixley, pp. 91-6). O autor de Hebreus movimenta-se claramente dentro desse esquema de pensamento.

Para nós levanta-se a pergunta: Será que Deus precisa de sangue para aplacar a sua ira? (Pixley, pp. 89-109). Será que a nossa teologia compreende bem a Deus quando pensa a morte de Jesus dentro desse esquema de sacrifícios de expiação? Será que a interpretação do sangue derramado para a remissão dos pecados da comu¬nidade primitiva ainda é comunicativa hoje? Será que a nossa fé, profundamente permeada pelo pensamento sacrificial — tanto é que ele é celebrado na eucaristia — , não acaba fornecendo também a legitimidade ideológica de que é necessário continuar havendo sacrifícios para salvar o sistema global, ou será que Hebreus ajuda exatamente a dizer: depois de Jesus Cristo, absolutamente nenhum sacrifício se justifica mais?! Essas perguntas extrapolam um auxílio homilético e querem apenas fornecer a moldura para estimular a meditação.

Sacrificar um animal e oferecer o seu sangue e intestinos a Deus em um de nossos cultos dominicais seria um escândalo. Isso é macumba, é coisa da umbanda! — certamente se diria. Outros, com uma postura mais científica, talvez dissessem que ofertar manjares a Deus é um traço de religiosidade primitiva. Contudo, é bom não esquecer que o nosso Deus é o mesmo Deus que no AT aceitou sacrifícios e holocaustos e se deliciava com o seu suave cheiro (Gn 8.21). Obviamente, através de alguns profetas, Deus também se mostrou irado com a incoerência de cultuar e sacrificar, por um lado, e não praticar a justiça, por outro (Am 5.21ss.; Os 6.6; Is 1.10-17). É que os sacrifícios já tinham adquirido um sentido-em-si e não celebravam mais a justiça das relações interpessoais. No sacrifício de Jesus, o autor de Hebreus enxerga o evento conclusivo das denúncias proféticas.

Nós somos tão contra o sacrifïcialismo, que damos um giro completo e, desse modo, chegamos ao mesmo lugar. Não estávamos nós, embora de modo um pouco diferente, também infectados pelos bacilos do sacrificialismo? Senão vejamos: no capitalismo é considerado normal que ocorra miséria; sacrifica-se o salário do trabalhador no altar do capital. Guerras são necessárias, para que a população da terra não aumente demais. Indígenas só obstaculizam o progresso; por isso, faz-se uma política de genocídio encoberto ou de lenta absorção nas camadas mais inferiores. Sacrificando meninos de rua, os comerciantes salvam seus comércios...

4. Estímulos para a prédica

O método de Hebreus sugere uma firmeza compreensiva para com as crenças sacrificiais afro-brasileiras. O tom da prédica deve ser argumentativo e persuasivo. Evidentemente, não temos diante de nós um público tão claramente delimitado nem nos encontramos numa situação em que o sacrifício esteja sendo discutido nas ruas. Pelo contrário, talvez seja necessário mostrar como de maneira sub-reptícia e sorrateira continua vigorando uma ideologia do sacrifício.

Poder-se-ia discorrer sobre a relação entre os despachos de umbanda e o sacrifício suficiente de Cristo. Nesse mesmo assunto caberia também referir-se aos rituais de morte que ultimamente reaparecem nos noticiários.

Uma alternativa seria fazer uma reflexão sobre a pena de morte, segundo aquela máxima de que é melhor que morra um do que todo um povo ser prejudi¬cado, a qual também atingiu Jesus. Desde Jesus Cristo nenhuma sociedade garante sua sobrevivência com o sacrifício de indivíduos que vivem em seu interior. Isso deveria ser normativo para a nossa fé — um status confessionis!

Outra alternativa seria discorrer sobre os sacrifícios que a economia de merca do exige. O ídolo invisível, mercado livre e impessoal, que reivindica onipresença e que está convocado oficialmente para gerir a vida no planeia, é um voraz devorador de sacrifícios: de pessoas, de povos inteiros, da natureza...

Com Cristo está inaugurado o amor e a disposição de servir já prefigurados nas atitudes das viúvas. Dar de si e entregar-se são as atitudes do verdadeiro Deus, através de Jesus; a solidariedade de Jesus até a morte transformou a essência da humanidade, possibilitando salvação a todas as pessoas. Os cristãos são os imitadores de seu Senhor.

5. Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Deus da graça e da misericórdia! O amor de Jesus c um exemplo para nós; seguidamente ouvimos a respeito de sua disposição para servir e servir até a morte. No entanto, nós continuamos pensando em exigências e sacrifícios. Nossa comunidade é tão parecida com o que ditam as leis de mercado nu mundo. Perdoa-nos essa obstinação e ajuda-nos a deixarmo-nos contagiar pelo amor de Cristo.

2. Anúncio da graça: Deus retém os pecados daquelas pessoas que não si arrependem e não querem mudar de vida. Por outro lado, Deus perdoa todas as pessoas que se arrependem sinceramente de seus pecados e concede a capacidade par; o amor e o serviço. Assim ele continua sua obra de salvação iniciada em Jesus Cristo

3. Oração de coleta: HPD, p. 377, penúltima oração. Orar em conjunto com a comunidade.

4. Leituras bíblicas: l Reis 17.8-16 e Marcos 12.41-44.

5. Oração de intercessão: Pelas vítimas do sacrificialismo de hoje.

6. Bibliografia para aprofundamento

ASSMANN, Hugo. (ed.) René Girard com teólogos da libertação. Petrópolis, Piracicaba, Vozes, Unimep, 1991.
BETTO, Frei. Maria Negra de Aparecida. In: Fome de Pão e de Beleza, s. l Edições Siciliano, s. d.
PIXLEY, Jorge. Exige o Deus verdadeiro sacrifícios cruentos?. In: Poder e Violência. Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo, Vozes/Metodista/Sinodal, RIBLA 2:89-109. 1988.
VANHOYE, Albert. A mensagem da Epístola aos Hebreus. São Paulo, Paulinas 1983. (Cadernos Bíblicos).
VV.AA. A luta dos deuses. São Paulo, Paulinas, 1985.

 


 


Autor(a): Leonídio Gaede e Hans Alfred Trein
Âmbito: IECLB
Testamento: Novo / Livro: Hebreus / Capitulo: 9 / Versículo Inicial: 24 / Versículo Final: 28
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1993 / Volume: 19
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 16156
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