Vivendo como estrangeira no primeiro mundo

01/12/2011

Vivendo como estrangeira no primeiro mundo

Pa. Ms. Iára Müller


Tivemos a oportunidade de viver cinco anos nos Estados Unidos da América. Meu marido foi fazer doutorado em Chicago, eu fiz uma especialização em Aconselhamento e Espiritualidade e nossa filha, então com seis anos, foi para a primeira série.

Viver num país estrangeiro nos deu a oportunidade de observar objetivamente as diferenças em relação ao nosso país, tanto no sentido positivo como no sentido negativo, por assim dizer os dois lados da moeda.

Apatia política

Descobrimos que os americanos, na sua maioria têm pouco interesse em votar. As eleições são monótonas, ocorrem nas escolas públicas e poucas pessoas vão às urnas. Há uma espécie de idolatria à autoridade. E por outro lado um desinteresse total. Talvez por não verem perspectivas de mudança. Talvez isso tenha mudado um pouco com a eleição de Barack Obama.

Segregação

Aprendemos que Chicago é a segunda cidade mais segregada do mundo. As pessoas de diferentes etnias vivem em diferentes bairros. Há bairros de mexicanos, de gregos, de afrodescendentes, de muçulmanos, de poloneses, de ucranianos, todos separados, como se tivesse uma linha divisória invisível.

Certa vez, inadvertidamente, fomos a um McDonald's num bairro de afrodescendentes. Sentimo-nos observados e mal recebidos. Também éramos mal atendidos por afrodescendentes, especialmente quando viam que éramos brasileiros. Era assim na biblioteca pública, no comércio em geral, no departamento de trânsito, onde fizemos carteiras de motorista. Sentíamos a diferença de atendimento na fila. Quando a pessoa à nossa frente era atendida havia um tipo de conversa, sorriso e gentileza. Quando era a nossa vez e percebiam que éramos brasileiros, uma atitude rude se instalava e dificultava todo o atendimento. Fomo-nos acostumando a isso e nos preparando psicologicamente para situações em que sabíamos que teríamos que enfrentar preconceito.

Problemas sociais

Algo que nos surpreendeu foi perceber o número de pessoas que vivem nas ruas, desempregados e sem teto. No entanto, à noite podiam ir para abrigos em que recebiam alimento, banho e cama. Mas, às 6h00 da manhã tinham que deixar o abrigo novamente. No inverno rigoroso, quando o frio chegava de trinta e poucos graus negativos, estas pessoas não poderiam circular nas ruas. Por isso havia locais em que podiam passar o dia se distraindo, jogando cartas ou fazendo peque-nos trabalhos.

O sistema de saúde é muito complicado. Há grandes empresas de seguro-saúde, muitas vezes chamadas de máfia, pois cobram preços exorbitantes em hospitais e por tecnologias de ponta. Mas grande parte da população não tem acesso a isso tudo. Há postos de saúde para a população em geral, mas nem todos são de boa qualidade. Precisa-se conhecer locais onde há postos mais humanizados e de melhor qualidade.

Escolas públicas de qualidade

A escola de nossa filha era pública. E por estar localizada num bairro onde se encontra a quinta melhor universidade dos Estados Unidos e por estar rodeada por seminários teológicos com a presença de muitas pessoas provindas de muitos países diferentes, era uma escola muito boa. Nela, a presença dos pais e mães era admirada. Por muito tempo fui voluntária na escola e ia todos os dias na sala de aula para arrumar estantes de livros, gavetas, ajudando a professora em tarefas paralelas à aula. Na sala de nossa filha sempre havia crianças com deficiência e cada uma tinha um tutor ou tutora ajudando a desenvolver as tarefas. A escola oferecia muitas saídas de campo para fazendas, fábricas de instrumentos, aquários e muitas outras atrações ligadas ao currículo. O almoço grátis a todos que comprovassem certa renda familiar. O governo pagava o transporte para a escola naqueles famosos ônibus amarelos. As crianças iam para a escola para se divertir e aprender. Não havia aquela preocupação que vejo por aqui de ir vestidos na moda e com um tênis de marca. Nossa filha ia de roupa velha, já com manchas de tinta, para poder brincar muito, fazer experiências, sem temer aventuras. As crianças eram muito desafiadas a ousar, porém, não politicamente. Não havia informações sobre esta parte, mas estímulo a ousar na ciência, na pesquisa, em descobertas.

As aulas começavam às 9h00 da manhã e iam até 15h30. Isso sempre me inquietou, pois a maioria dos pais e mães estavam em pleno trabalho quando a aula começava e terminava. Para isso, no nosso bairro, como em outros, existiam os clubes de vizinhança, um local onde os pais deixavam as crianças cedo, antes das aulas iniciarem e depois lá as buscavam. E as pessoas dos clubes levavam e buscavam as crianças da escola.

Inclusão de pessoas com deficiência

Nos Estados Unidos era bem mais fácil viver com uma deficiência, como é o meu caso, do que aqui no Brasil. Cada pessoa com deficiência recebe uma placa especial no seu carro, com um pequeno símbolo da cadeira de rodas, o que lhe garante o estacionamento em muitas vagas garantidas para pessoas com deficiência nos lugares públicos. Havia poucos casos de desrespeito de estacionar em vagas assim, por pessoas que não tinham uma deficiência. Também havia a possibilidade de se ter um estacionamento reservado na frente da porta da nossa moradia, com placas indicativas de que somente o meu veículo poderia estacionar ali. Não só havia mais respeito pelas pessoas com deficiência, como havia maior reconhecimento por elas. A maioria dê-las trabalha, tem vida participativa na sociedade. Enquanto isso aqui no Brasil estamos recém iniciando este processo de inclusão.

Experiência enriquecedora

O saldo de viver nos Estados Unidos para nós foi muito positivo. Aprendemos uma língua que nos leva a qualquer lugar, vimos bibliotecas maravilhosas, museus com tudo que existe de bonito e interessante e que vem do mundo todo. Vivemos numa comunidade internacional, com estudantes provindos do mundo todo e pudemos nos aprofundar em outras culturas. Tivemos oportunidades de viajar por lá e conhecer pessoas maravilhosas, americanos que quebraram nosso preconceito de povo consumista, povo despreocupado com o futuro do nosso ecossistema.

Tem muita gente de lá que não se encaixa no padrão de americano que nos é vendido por aqui, bem como, tem gente lá que sabe que o Brasil não é só Amazônia, carnaval e futebol.

Para finalizar, conto sobre dois períodos de férias que tivemos. Num deles fomos para Disneyworld, em Orlando, onde tudo é magnífico, de aparência, fantasia, diversão e maquiagem. Num outro período de férias fomos a uma fazenda de criação de árvores e preservação de mata. Preferimos esta segunda experiência, inclusive minha filha com oito anos então. E assim avaliamos os Estados Unidos: Muita aparência, muita opulência, mas por trás, muita gente que trabalha muito duro, sem acesso a tudo de bom que existe lá. Muita gente preocupada com o futuro da humanidade e outros preocupados em viver a sua vida sem se preocupar com o resto do mundo. Dois lados da mesma moeda.

Recentemente nossa filha voltou aos EUA para fazer faculdade de Biologia e Psicologia numa Universidade Luterana de origem norueguesa. Ela ganhou bolsa de estudos da própria Universidade. Isso mostra também a vontade de oferecer o que eles têm de melhor para estrangeiros. Ela vive os dois lados da moeda lá e com o pensamento crítico que herdou da sua educação aqui no Colégio Sinodal, temos esperança de que ela tenha oportunidade de se tornar uma cidadã capaz de construir pontes que separam dois mundos.

A autora é pastora da IECLB e atua na Faculdades EST na pastoral dos estudantes em São Leopoldo/RS


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Autor(a): Iára Müller
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2012 / Editora: Editora Otto Kuhr / Ano: 2011
Natureza do Texto: Artigo
ID: 31876
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