Luteranos em Contexto



ID: 2650

Martim Lutero - Contribuições para a Ética

Palestra - Câmara dos Vereadores de Curitiba - Dia da Reforma 2012

07/11/2012

grupo
Pastor Dr. Mario Fraancisco Tessmann
Tribuna Presidência, Pastor Célio Meier e Pastor Nelson Lauthert
Vereador Pedro Paulo
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MARTIM LUTERO

Contribuições para a Ética*

Mario Francisco Tessmann**

I - Preliminares

A pessoa e a obra de Martim Lutero são, inegavelmente, um ponto de inflexão nos caminhos da cultura ocidental. Existe um mundo antes dele, outro depois dele. O mundo que vai começar a se encerrar junto a Martim Lutero é o mundo da totalidade. Na Idade Média ocorria o domínio da instituição religiosa sobre a sociedade secular. A influência da religião estava em todas as esferas da vida (educação, ciência, economia, política). Já o mundo que se descortina com Martim Lutero é o mundo das distinções. É indispensável, de acordo com o pensamento de Lutero, distinguir o que é temporal do que é eterno; o que é institucional do que é individual; o que pertence à cultura e o que pertence à religião. Lutero é um mestre na arte das distinções. Esta é, sem sombra de dúvida, uma das maiores contribuições metodológicas para o mundo em que vivemos, estejamos nós conscientes ou não deste fato. Como Martim Lutero chegou a este raciocínio?

II – Elementos biográficos:

Movido pela angústia de culpa, uma marca típica do ser humano medieval, Lutero ingressa na vida religiosa em 1505, com intuito de encontrar os instrumentos necessários, que pudessem ajudá-lo a viver sem a aflição da mesma. Como filho fiel da igreja de então, Lutero dedica-se a seguir as pegadas que seus instrutores lhe passam para a vida monástica. Já dentro do convento, Lutero aprendeu a lidar com a filosofia de Aristóteles – a rainha dos conceitos da época – tornando-se inclusive professor de ética filosófica por um curto período. Seus pares neste período perceberam logo que Lutero era um homem singularmente sensível, tanto em termos de espiritualidade como de reflexão cristã.

Em função desta sensibilidade e do anseio que tinha por aprofundamento nas verdades do cristianismo, Lutero foi enviado por seus superiores do convento para a pequena cidade de Wittenberg, que na época tinha uma população aproximada de 2.500 habitantes e uma recém-fundada universidade. O objetivo era claro: Ajudar o jovem monge a firmar suas convicções a partir do livro fundante da igreja, a Bíblia. Após 2 anos de estudos intensivos, Lutero torna-se doutor em Bíblia. Recebe a partir daí a tarefa de orientar seus irmãos de convento nos fundamentos da fé cristã, conforme as regras da igreja da época. Esta incumbência do ensino, Lutero a exerceu por mais de 3 décadas, até o fim de sua vida em 1546.

O que Lutero encontra na Bíblia, que o leva para caminhos de resistência, confronto e, por fim, ruptura com a igreja da época? É oportuno neste momento desfazer uma lenda, que percorre a mentalidade de muitos evangélicos, de que Lutero somente teria conhecido uma Bíblia, quando de seus estudos em Wittenberg. Era prática comum na época de que todo jovem – homem ou mulher – que ingressasse na vida religiosa, logo cedo aprenderia a lidar com os textos da Bíblia, em especial, os Salmos nas orações. Dito isto, permanece a pergunta: o que Lutero encontrou testemunhado na Bíblia, que o marcou de maneira tão enfática, a ponto de entrar em rota de colisão com a organização mais poderosa de sua época, a igreja?

Lutero mesmo nos dá a resposta a esta pergunta, quando ele, já no final de sua vida, recapitula sua trajetória pessoal. Ele nos diz que durante muito tempo, seguindo os caminhos de interpretação que a igreja lhe havia disponibilizado, lia a Bíblia como um livro de exigências, fossem elas doutrinárias ou morais. E a exigência tem um código embutido em si: ela sempre acusa! Cabe lembrar, neste momento, que Lutero era um homem afligido pela consciência de culpa, sentia-se continuamente em débito com Deus e a igreja. Foi em busca da libertação desta culpa, que Lutero voltou, em boa medida, os seus olhos para dentro da Bíblia, mas num primeiro momento não a encontrou. Com o passar dos anos, após estudos intensivos, foi que ele, segundo suas próprias palavras, teve “as portas do paraíso abertas” para si.

Que portas eram estas, que haviam sido abertas para Martim Lutero? Na busca pela verdade – testemunhada na Bíblia – Lutero depara-se com a afirmação de que o “justo viverá pela fé”. Para quem tinha sido treinado na filosofia aristotélica, como Lutero, o entendimento de justiça pressupõe a prática crescente de atos justos. Neste sentido, ele entendia que a fé era mais uma exigência de Deus. O drama tornou-se, então, insuportável e o próprio Lutero chegou a mencionar que o Deus de tantas exigências era digno de ódio!

Perante tamanha aflição, Lutero experimentou o inimaginável. Percebeu que o significado da palavra fé não poderia ser visto como mais uma exigência, mas sim, como uma dádiva, que Deus oferece a todo e qualquer ser humano. E no que consiste esta dádiva divina? Segundo Lutero, ela é a possibilidade que o ser humano tem de confiar em Deus, que – antes do cumprimento de qualquer exigência - nos acolhe, nos recebe, independentemente de nossas realizações. Deus, em seu rosto visível – Jesus Cristo – vem buscar os exaustos e fadigados de tantas exigências, sejam elas religiosas, sociais, políticas, jurídicas e econômicas. Neste sentido, “o justo” para Lutero é o ser humano fragmentado, desconstruído, que sabe, no entanto, que está primeiramente perante o Deus da compaixão e não o Deus da exigência. Esta inversão da imagem de Deus é o que a teologia luterana clássica designa, no linguajar técnico, como a passagem do Deus da ira para o Deus da graça.

Vale lembrar aqui, que para Lutero, Deus não deixa de exigir. Contudo, toda e qualquer exigência somente é possível a partir daquilo que Ele mesmo concede. Deus não solicita, o que Ele antes não tenha ofertado em abundância, enfatiza Lutero. Com esta reflexão, nos encontramos no fundamento de ética de Lutero, uma ética cuja preocupação pelo humano é a marca fundamental. Olhemos uma vez, como esta preocupação pelo humano, se desdobra no pensamento ético de Lutero.

III - Concretizações éticas:

Desde 1520, Lutero ocupa-se com temas voltados à ética em geral, seja por necessidades pessoais ou por pressões oriundas de seu ambiente. Partindo de abordagens mais generalistas, como a interpretação dos Dez Mandamentos, Lutero vai focando suas aproximações em temas éticos mais concretos. Seus temas envolvem a realidade do casamento e da família, da prática de juros, da obediência devida, ou não, à autoridade secular, do envio de crianças para escola (em especial de meninas) e da manutenção das mesmas pelos governantes, entre outros tantos.

Por ser um homem voltado às preocupações regulares do dia-a-dia, Lutero procura orientar, sem complicar. Como disse, em certa ocasião e de maneira apropriada, o filósofo Nietzsche: “A Reforma Luterana foi a indignação do simples contra algo complicado”. Este olhar de Nietzsche aplica-se muito bem, quando voltamos nossa atenção para as orientações éticas de Lutero. Ele não é um homem preso aos princípios éticos da fé cristã, como se os mesmos fossem leis férreas e eternas. Antes, Lutero volta-se continuamente às situações concretas, que envolvem, por exemplo, o comerciante e o estabelecimento de preços no mercado; o drama de consciência no uso das armas no serviço militar; a lida do marido ou da esposa com cônjuge enfermo ou incapaz. Perante esses dilemas, Lutero age e orienta, olhando, como já dissemos anteriormente, primeiramente, para o ser humano, somente num segundo momento para os princípios. É como se ele quisesse de alguma forma nos dizer que os princípios éticos somente tem significado, se dignificarem o ser humano e não o contrário.

Por mais que Lutero tenha se empenhado em viver desta forma – e orientado pessoas nesta direção – sua prática também teve debilidades. Seja por convicção pessoal e/ou por ser fruto da época, a lida de Lutero com pessoas de crenças diferentes da sua, foi marcada muitas vezes pela incompreensão e pela intolerância. O exemplo mais drástico disto foram os judeus. Lutero também tendia a um conservadorismo político, que o impossibilitava de enxergar nas aspirações dos trabalhadores da terra de então, por exemplo, uma manifestação concreta da liberdade cristã.
Estes dois pontos limitantes, entre outros condicionados pela época, não devem, contudo, nos impedir de perceber a riqueza da contribuição de Lutero para a reflexão ética, em especial, sua ênfase numa ética que prioriza o ser humano real. Esta visão não elimina os princípios cristãos norteadores da vida, mas simplesmente procura direcioná-los para dentro da vida como ela é.

Concluindo, é possível dizer que Lutero lançou as bases para uma ética, que modernamente, chamamos de ética da responsabilidade. Esta é uma ética que pergunta não apenas pelas intenções dos atos, mas antes, pelas práticas e suas conseqüências, nesta e nas futuras gerações. Esta ética tem a marca indelével do compromisso com o ser humano e com o ambiente que o circunda. A ética da responsabilidade, cujos fundamentos podemos encontrar em Lutero, encoraja o ser humano a viver de maneira adulta, assumindo a cada decisão que precisa ser feita o risco da culpa. Ela também fortalece o compromisso com aquilo que é o mais precioso em nossa existência, a preservação da vida, seja ela na forma que venha se manifestar. Que os estímulos da ética de Lutero também nos ajudem a afirmar os elementos que qualificam a vida política e cidadã de cada um de nós.

Grato pela atenção.

* Palestra proferida por ocasião da comemoração do Dia da Reforma, no dia 07.11.2012 na Câmara de Vereadores de Curitiba.
** Pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), Professor da Faculdade de Teologia Evangélica de Curitiba (FATEV) e Doutor em Teologia pela Universidade Karl Ruprecht de Heidelberg na Alemanha.


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