Jornal Evangélico Luterano

Ano 2016 | número 794

Quarta-feira, 24 de Abril de 2024

Porto Alegre / RS - 02:21

Unidade

Lutero - Reforma: 500 anos

Contribuições para pensar a gratuidade da vida

   Recebi o convite para escrever um artigo que tivesse uma reflexão sobre a graça como doação. Aceitei ‘de graça’, pois achei ‘graça’ na proposta! Sim. A palavra graça tem várias ‘graças’! O convite dizia que a palavra ‘graça’ estava relacionada com doação e, na sequência, havia a palavra ‘mundo’, dirigindo-me o olhar para o contexto de que ‘nada é de graça’! Pedia, ainda, que eu dissertasse sobre a ‘graça’ na compreensão daquilo que D**s faz em relação a nós. A graça (Deus), portanto, como contraponto ao ‘exigido-cobrado-pago’ (mundo).

   Assim que aceitei, pensei no significado de todas essas palavras. O que eu não havia atentado, logo de início, é que existia um contraponto entre as duas palavras: D**s! Que graça referia-se a D**s!

   Estou encrencada! Quase sem graça!

    Então, meio sem graça, esperando não cair em desgraça, quero escrever sobre como compreendo hoje essas três palavras: Graça / D**s / Mundo, para, então, como, em uma ciranda, rodopiá-las e mantê-las sempre em movimento, trazendo algumas histórias que nos animam a pensar na generosidade desse movimento. 

Graça / D**s / Mundo

   No Dicionário Aurélio, há dez definições que caracterizam a palavra graça: 1. Favor dispensado ou recebido, mercê, benefício, dádiva; 2. Benevolência, estima, boa vontade; 3. Ato de clemência do poder público; 4. Beleza, elegância ou atrativo de forma, de aspecto, de composição, de expressão, de gestos ou de movimentos; 5. Elegância de estilo; 6. Dito ou ato espirituoso ou engraçado; 7. O nome de Batismo; 8. Privança, intimidade; 9. Dom ou virtude especial concedido por D**s como meio de salvação ou santificação; 10. Favor ou mercê concedida por D**s a uma pessoa, milagre. Os dois primeiros e os dois últimos significados rimam com o propósito dessa reflexão para a qual fui convidada e aceitei.

    Na sequência, me sinto desafiada a pensar sobre D**s como um caminho que se abre para o provisório e o inclusivo. D**s como as coisas loucas do mundo, como dizia o apóstolo Paulo, ou Jesus, quando comparava o amor do pai como o cuidado da choca com os seus pintinhos, ou seja, um modo de pensar D**s sem que Ele seja pai-homem ou mãe-mulher, mas simplesmente D**s escrito diferente para que também possamos provocar um modo de pensa-l@ diferente.

   Finalmente, o mundo, como já foi dito por mim juntamente com outros autores, (Cardoso; Eggert; Musskopf, 2006, p.7) é lindo e aflito, é frágil e abusado. Acolhe os seres vitais e vive por eles: água, terra, sol e ar, semente e florestas. O mundo é o vasto mundo com tudo que o compõe.

 Um mundo onde nada é de graça?

   Aprendi a duvidar das palavras peremptórias, ou seja: tudo, nada, nunca!

   Sim, sei, e todas pessoas sabem, que vivemos em um mundo em que tudo tem valor de uso, de troca e/ou de venda. Nos últimos séculos, as coisas foram caminhando nessa direção, mas é sempre bom perguntarmos e nos espantarmos por meio do exercício da suspeita. É por isso que me ofereço para contar algumas pequenas histórias, a fim de reunir possibilidades esperançosas de mundos que fazem a diferença porque ainda há gratuidade nas ações das pessoas.

   Certa vez, entrevistei uma mulher luterana, no sul do Rio Grande do Sul, que, na época, tinha 29 anos, e ela contou que tinha consciência do tempo que disponibilizava em prol de outras pessoas e o quanto ela, por ser solteira, podia privar-se da própria privacidade para cuidar da Comunidade. No caso, cozinhar para uma turma de Confirmandos em um fi nal de semana, durante um Retiro (Eggert, 2003). Ainda quando, em outra entrevista, uma mulher também luterana me diz que D**s ‘se manifesta através das coisas boas que tu faz’ (Eggert, 2003, p.74). Nas histórias que ela me contou, havia vários exemplos de ações em que o tempo dela e da sua família era dedicado para o trabalho coletivo, em direção de mais qualidade de vida.

   Tenho diversos exemplos de pessoas que, na simplicidade dos seus gestos, realizam coisas na direção de outras pessoas que nem conhecem. Posso imaginar que, assim, todas as pessoas que me leem também poderiam contar alguma história em que existem ‘graças’ no mundo feitas de graça.

   Somos pessoas feitas de gestos, ritualísticas como uma toalha engomada, bordada com flores e rendada com o croché feito por alguma mulher da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (OASE) e colocada no altar improvisado de uma Igreja sem torre e sem sino ou em uma Igreja consolidada em alguma capital com mais de cem anos de histórias para contar e acreditar nessa capacidade criadora que nos faz vigorosas com partilhas de simplicidade. 

   Então, de que forma podemos fazer com que, nesse mundo, em que, aparentemente, nada é de graça, as coisas que fazemos ‘com graça’ e disposição na direção de mais qualidade de vida, sejam, a cada dia, mais reconhecidas? 

Histórias para pensar sobre a ‘graça’ no mundo

   Quando conheci um pouco mais sobre a importância de contarmos histórias partindo da nossa própria, percebi o quanto temos a aprender com as nossas experiências. Uma senhora francesa, mas que vive em Genebra, na Suíça, há muitos anos, chamada Marie-Christine Josso, nos ensina que, quando falamos sobre uma vivência em nossa caminhada, damos significado a ela, pensamos sobre ela e, nesse caso, tornamos essa passagem da nossa vida uma experiência formadora. Por quê? Porque, à medida que contamos, vamos revivendo e interpretando o que vivemos. A interpretação é um modo de entendermos aquilo que, em um determinado momento, nem pensamos quando tínhamos vivido.

    Muitas vezes, já me deparei com comentários que confirmam essa observação de pessoas que entrevistei ao longo das pesquisas que realizo na área da Educação de Jovens e Adultos. Depois que faço uma pergunta, elas começam a falar e, de repente, se espantam com o que disseram. Param e dizem: ‘Eu nunca tinha pensado nisso, mas, agora, contando, vejo que foi muito importante essa passagem da minha vida!’.

   Baseada nesse tipo de observação que já fiz em mais de 25 anos de experiência como Professora e Pesquisadora na área da Educação, afirmo: há muita história a ser contada sobre doações (graças) vividas e que tem por base a graça da vida, a força que está dentro de nós e que é D**s em nós, nos motivando a entregarmos um pouco das boas coisas que temos da vida.

   É por isso que insisto com o meu argumento sobre a importância de contarmos histórias para percebermos que há, sim, da parte das pessoas no mundo, a graça de fazer coisas pelo simples fato que querer que a vida melhore em torno delas mesmas ou até muito distante delas. Muita atenção: isso se aprende! Entregar um pouco de si, daquilo que temos como nossa boa força e que as pessoas crentes indicam ser D**s, é um aprendizado.

   Em especial, as mulheres aprendem desde muito cedo que devem doar do seu tempo para os outros. Geralmente, são as mulheres que aprendem que devem tomar conta das pessoas da família. Isso é uma aprendizagem cultural. Não nascemos com essa característica, mas aprendemos e nos habilitamos para essa ‘graça’. As meninas, desde muito cedo, são disciplinadas com jogos e brinquedos que indicam um futuro de cuidados com os outros. O fogãozinho, a vassourinha e o carrinho de bebê, juntamente com as bonecas e os bonecos, são a iniciação ao cuidado. O trabalho de ajudar a mãe, a vó nos afazeres da casa é exemplo dessa doação, que, se não contarmos como funciona, não iremos enxergá-la como tal. São doações invisíveis. 

   O trabalho da ação social nas Comunidades. Horas e horas de costura e reforma de roupas, que, depois, são entregues em creches e asilos em municípios do Brasil inteiro, são aprendizagens de doações que as mulheres nem percebem, mas elas aprenderam, faz muito tempo, esse tipo de trabalho invisível. 

   Segundo Pesquisadoras e Pesquisadores das Ciências Humanas, como Michelle Perrot (2007), Heleieth Safi ott i (2004), Wanda Deifelt (2008), Adilson Schultz (2013), Marcela Lagarde (2005), as mulheres aprenderam, ao longo da história da humanidade, a ser de alguém e para os outros. Enquanto isso, os homens aprenderam que, quando se tornavam pais e maridos, eram ‘donos’ das suas filhas e esposas e, muitas vezes, decidiam por elas. Esse tipo de aprendizagem foi questionada por muitas mulheres e por alguns homens ao longo da história. Geralmente, as pessoas que duvidaram desse ensinamento tiveram problemas, mas, ao gerarem essa dúvida, marcaram outro tempo.

   Então, de que forma podemos fazer com que, nesse mundo, em que, aparentemente, nada é de graça, as coisas que fazemos ‘com graça’ e disposição na direção de mais qualidade de vida, sejam, a cada dia, mais reconhecidas? 

   Deifelt (2014) nos lembra que temos poucas histórias registradas sobre a atuação das mulheres leigas que trabalharam nas Comunidades luteranas, produzindo, desse modo, uma historiografi a de mulheres na história da Igreja.

Por uma vida mais graciosa de ser vivida

   Então, posso dizer, com tranquilidade, respondendo à pergunta do título proposto: Sim, há graça nesse mundo em que quase nada é de graça! Há muitas mulheres e homens que entregam do seu tempo para desenvolver ainda mais aquilo que acreditam vivenciar dentro delas e deles mesmos, que é a força da vida. D**s!

   De certa forma, me misturo aos grupos que acreditam na beleza da vida, que brilha quando olhamos para as possibilidades da vida como dádiva. É por isso que acredito que componho na luta por dias melhores acreditando na educação das pessoas, crianças, jovens, adultos e idosos. Compreendo, porém, que não podemos ser pessoas ingênuas para com outras partes, que tudo desejam cobrar e lucrar, e engrosso a fila das resistências e perseveranças para outro mundo necessário e possível, mundo em que a dádiva ensinada de formas muito diversas por tantos povos desse planeta persista. Desse modo, Graça, D**s e Mundo se misturam, tornando a vida mais graciosa de ser vivida.

   Sim, há graça nesse mundo em que quase nada é de graça! Há muitas mulheres e homens que entregam do seu tempo para desenvolver ainda mais aquilo que acreditam vivenciar dentro delas e deles mesmos, que é a força da vida. D**s!

 

 

Profa. Dra. Edla Eggert, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande Sul (Ufrgs), em Porto Alegre/RS, na área da Educação de Jovens e Adultos, e Doutora em Teologia pelas Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, é Pesquisadora CNPq 1D.

 

 

 

 

 

 

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