Lutero - Reforma: 500 anos
Por que o mal existe? Por que Deus permite a existência do mal? Deus não tem poder para terminar com o mal? Dificilmente, alguém que tenha pensado com seriedade em sua fé, deixou de se fazer estas perguntas, especialmente quando ficamos perplexos perante crimes bárbaros, como foram, por exemplo, o holocausto judeu, as guerras que produziram grandes massas de imigrantes famintos e desvalidos, os atentados terroristas, o extermínio de grupos étnicos, as diversas situações geradas pela violência humana (Gn 4.9) ou diante da realidade da fome, que revela um sistema econômico injusto e excludente que é a própria personifi cação do mal e, ainda, frente às catástrofes naturais, como o Tsunami que varreu a Ásia em 2004, os terremotos devastadores, como vimos no Haiti e no Chile, e os furacões nunca antes observados, como o ‘Irma’, que devastou muitas ilhas do Caribe. Como conciliar a presença de um Deus Pai, Todo-Poderoso, com manifestações tão concretas do mal?
Por que o mal existe? Por que Deus permite a existência do mal? Deus não tem poder para terminar com o mal? Como conciliar a presença de um Deus Pai, Todo-Poderoso, com manifestações tão concretas do mal? |
Estas são questões sobre as quais a Filosofia e a Teologia se debruçam em um debate milenar, o que revela a complexidade do tema, impossível de ser sintetizado e muito menos exaurido nas poucas linhas de um artigo. O nosso objetivo, portanto, é humilde. Ora, respostas intelectuais ou mesmo moralistas, como foram aquelas dadas pelos amigos de Jó (Jó 2, 4, 8 e 11), não fariam sentido para as pessoas que experimentaram em suas vidas as manifestações do mal nem para aquelas que perderam pessoas que amam. Está em jogo a própria justificação de Deus pelo ser humano, que, angustiado, procura perceber a presença de Deus em um mundo onde as experiências do mal são tão visíveis. Neste sentido, o livro de Eclesiastes, na pessoa do pregador, com o seu discurso pessimista e tão pós-moderno, dá voz a um grande contingente de pessoas que, diante da desesperança, está inclinado a confessar: Tudo é ilusão (Ec 1-2).
O ramo da Teologia e da Filosofia que se ocupa com as questões do mal e da existência de Deus é denominado Teodicéia. A Teodicéia caracteriza o mal como uma força oposta à vontade de Deus, um poder que domina e arrasta o ser humano para a miséria e para a morte. Ela distingue o mal em ‘mal moral’, ou seja, aquele que se expressa no pecado como ação e condição humana existencial, ‘mal metafísico’, que é a manifestação da realidade angustiante da finitude humana, e ‘mal natural’, de natureza impessoal, que provém de catástrofes naturais a que estamos sujeitos no mundo
No decorrer da história do Cristianismo, a Teodicéia estabeleceu o debate em diferentes bases. Inicialmente, as reflexões foram sendo construídas na área moral. Clemente de Alexandria e Agostinho defendiam a ideia que o mal decorre do livre arbítrio (Confl ito Pelagiano). Deus permite o mal porque o seu amor prefere criar pessoas livres ao invés de pessoas incapazes de pecar. Assim, o ser humano teria liberdade de abraçar o bem ou o mal em sua vida (mais tarde, Lutero combateria essa tese). Posteriormente, a Teodicéia arriscou explicar a existência do mal por um viés pedagógico, vendo o mal como um fator importante para a maturidade espiritual, já que a obrigatoriedade de viver e conviver com o sofrimento move a pessoa, de um estado de fé infantil, para um processo de amadurecimento da fé que nos aproxima de Deus.
Outras formulações importantes foram aquelas designadas de Teodicéia Escatológica e de Comunhão. A primeira diz que Deus encaminha a história humana para o estabelecimento definitivo do seu Reino de Justiça, onde o mal não mais existirá. Deus vê o todo da história, do seu princípio à sua consumação, e, consequentemente, o papel que o mal desempenha nela, enquanto o ser humano tem uma visão parcial e imprecisa. Em Jesus Cristo, no entanto, Deus antecipa o futuro da história, a reconciliação, como sinal que ela se encaminha para esse final preestabelecido. É necessário, portanto, neste espaço entre a existência e a essência, uma postura de confiança em Deus e a admissão que a compreensão plena do mal só será respondida na consumação dos tempos. A Teodicéia da Comunhão, por sua vez, defende a ideia que mais importante que o interesse sobre as origens do mal é o fato que Deus pode ser conhecido no sofrimento humano, pois Deus se tornou vítima do mal na crucificação de Jesus. Assim, o sofrimento, experimentado pela Criação e pelo Criador, proporciona oportunidade de comunhão entre o ser humano e Deus.
Mesmo a despeito das Teodicéias, permanece a necessidade de alguém que aponte concretamente para a presença de Deus na vida e no mundo. O apóstolo Filipe pede a Jesus: Senhor, mostre-nos o Pai e assim não precisaremos de mais nada (Jo 14. 8). Da mesma forma que os primeiros discípulos, queremos saber onde Ele está, conhecê-lo, tirar as dúvidas. Então, os mistérios seriam respondidos, a fé seria inabalável, a vida, o mundo e a própria questão do mal teriam um sentido. Jesus responde a Filipe: Filipe, já estou tanto tempo com vocês e você ainda não me conhece? Quem me vê, vê também o Pai (Jo 14. 9). Portanto, quem olha para Jesus, enxerga também a Deus.
Em Jesus, Deus visita o mundo, é o Emanuel (Mt 1.23), o Hosana (Mt 21.9), a encarnação do Verbo (Jo 1.1-4), o Messias (Mc 8. 29). O Novo Testamento fala em Jesus como aquele que, pela Palavra, tem domínio sobre o mal (Lc 9.37-43, Lc 11.14-23 e Mt 8.28-34) e como o único que resistiu às suas tentações (Mt 4.1-11). As primeiras testemunhas cristãs são unânimes neste sentido: quem quer conhecer Deus, precisa conhecer Jesus! Olhar para a história humana ou para a própria natureza, na qual encontramos tão concretamente as manifestações do mal, nos joga na desesperança e na descrença, mas é diferente quando olhamos para Jesus.
Somos pessoas chamadas a confiar na soberania e no amor de Deus, que desce, se sacrifica, cuja última palavra é amor e vida, por isso temos motivos para estarmos alegres e jubilar, pois, em Deus, vivemos, nos movemos e existimos. |
É também para este caminho que Martim Lutero conduz o nosso olhar. As suas Teses, discutidas em Heidelberg, em 1518, confrontaram a Teologia Medieval com a Teologia da Cruz. Lutero rejeitou o que ele chama de Teologia da Glória, uma Teologia que se baseia em méritos e na sabedoria humana para chegar a Deus, e afirmou uma Teologia da Cruz, revelada, cuja justiça não vem de nós, mas da graça recebida mediante a fé (Ef 2. 8-9), que nos leva a confessar Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo (Mt 16.16). Nela, vemos um Deus que não está alienado ao sofrimento da sua Criação. Em Jesus, Deus mesmo (Fp 2) sofre e padece na cruz. É ali, na cruz, loucura para a sabedoria humana, que Deus se oculta e se revela.
Assim, Deus é conhecido não na força, mas na fraqueza, não na demonstração de poder, mas na manifestação do amor que se dispõe a sofrer, se torna vitima do mal, a fim de converter o ser humano para si (Rm 3.24-25). Deus sabe o que é sofrer e Ele é solidário ao ser humano no sofrimento, porque Ele mesmo sofreu em Cristo. No sofrimento, é possível comunhão com o Cristo crucificado (Mc 8.34-38). O mal, neste sentido, não é só custoso ao ser humano, mas também ao próprio Deus. É um Deus poderosamente fraco. Não se trata de uma limitação da sua soberania. Significa, isso sim, que Ele escolheu nos salvar por meio da cruz (1Co 1.25). Deus sofreu e foi vítima nos atentados terroristas, nas guerras, no holocausto judeu, na violência humana e nas catástrofes naturais. Deus foi refugiado faminto e desvalido (Mt 25.40).
No entanto, isto é só parte da realidade. A cruz revela um movimento posterior, o da ressurreição de Jesus, que nos conduz do sofrimento à glória, do ódio ao amor, da morte para a vida. A ressurreição é o sinal antecipatório de que o mal foi derrotado. Isso dá um sentido que transcende ao sofrimento e à morte, porque, pela graça de Deus, quando somos encontrados por Jesus, o seu destino torna-se também o nosso destino.
Todavia, o problema do mal, mesmo a despeito das Teodicéias e do nosso olhar conduzido a Cristo, continua sendo um dos mistérios do Deus absconditus, do Deus não revelado, conforme Lutero. Somente quando vier o perfeito, não teremos nada mais a perguntar e isso coloca um desafio à fé: somos pessoas chamadas, a exemplo de Jó, a confiar na soberania e no amor de Deus contra a realidade empírica do mal, a não se entregar ao discurso pessimista de Eclesiastes, mas confi ar neste Deus que desce, se sacrifica, cuja última palavra é amor e vida, por isso temos motivos para estarmos alegres e jubilar, pois, em Deus, vivemos, nos movemos e existimos (At 17.28).
P. Dr. Marcos Augusto Armange, Ministro na Comunidade Concórdia de São José dos Pinhais/PR