Lutero - Reforma: 500 anos
A valorização da vida matrimonial, como um servir em Cristo, é um ponto fundamental da Reforma Luterana. É consequência da convicção de Lutero, cujo posicionamento é resultado de reflexões teológicas profundas, que o levaram a expor a sua discordância perante normas da Igreja Católica e, consequentemente, da sociedade da época. Um breve resumo do contexto histórico da sociedade e da concepção religiosa da Idade Média Posterior (século XVI) ajudam a entender a sua postura.
Naquela época, o celibato era considerado a melhor forma de vida para se alcançar a salvação. Além disso, uma vida no mosteiro garantia certo estilo de vida, proteção e bom nível de formação. Assim, apesar de estarem sujeitos a uma vida em reclusão, sob regras rígidas, muitos optavam para esse estilo de vida – ou eram conduzidos aos Mosteiros pelos pais, ainda crianças.
Martim Lutero ingressou no Mosteiro Agostiniano de Erfurt depois de uma experiência extremamente agoniante de medo da morte. O medo do Deus juiz e do castigo eterno eram tamanhos que, para agradá-lo, Lutero tentou viver uma vida de reclusão total, na abstinência e até no sacrifício corporal. Ao mesmo tempo, intensificou a leitura e o estudo profundo da Bíblia. Com a descoberta da justificação por graça e fé somente (Rm 1.16-17), esse seu estilo de vida perdeu o sentido.
A Reforma tomou o seu rumo, com as suas consequências para a Igreja e para a sociedade na época. Mudanças de valores e posicionamentos que dizem respeito ao papel da mulher na família, na comunidade e na sociedade bem como a valorização das crianças e a sua educação e formação faziam parte das suas prioridades. Surge assim, uma nova concepção de relacionamento que, todavia, hoje em dia não deverá ser interpretado a partir da nossa realidade, mas a partir do contexto histórico da época.
O nosso tema é o matrimônio ou, mais especificamente, o testemunho cristão no matrimônio: mulher e homem vivendo em conjunto na família e em liberdade, na dedicação à comunidade. O Tema da IECLB para 2013: Ser, Participar, Testemunhar - Eu vivo comunidade quer ser o fio vermelho dessa reflexão, sob a perspectiva da doutrina do sacerdócio geral de todos os crentes.
Na família, vive-se, cotidianamente, a comunidade cristã. Na família, apendemos a ser, a participar e a testemunhar o amor, a solidariedade e o respeito. A família, que é a menor comunidade, é um belo jardim que precisa ser cultivado |
A partir da doutrina do sacerdócio geral de todos os crentes, Lutero nega a hierarquia e o monopólio do sacerdócio ao clero e afirma uma paridade sacerdotal a todas as pessoas que creem. A partir do Batismo, recebem a tarefa missionária de pregar e testemunhar a Palavra de Deus. Quero, nesse estudo, segurar o aspecto da paridade do sacerdócio no matrimônio e sublinhar o aspecto missionário que casais e famílias podem exercer na comunidade. A partir da sua participação, como ouvintes da Palavra, como engajados na missão e na diaconia, na comunhão e na troca com outros e casais e famílias, acontece comunidade! No convívio, no deixar-se tocar pelo Evangelho, no envolver-se e comprometer-se com a justiça e a solidariedade, ajudam a construir comunidade diaconal.
Já nos primeiros anos da Reforma, Lutero se posicionou radicalmente a favor do matrimônio. Ele estava convicto de ser esta a forma de vida instituída por Deus, já conforme as primeiras páginas da Bíblia, segundo os relatos da história da Criação (Gn 1 e 2). É importante assegurar o fato de que ele não separava os dois relatos da Criação, mas via no primeiro relato (Gn 1.1-2.4a) uma versão mais resumida e, no segundo (Gn 2.4b-25), uma mais detalhada da criação do mundo e do ser humano. Sempre de novo Lutero cita e argumenta com esses textos nos seus chamados ‘Escritos sobre o Matrimônio’. Como exemplo, cito uma passagem do seu escrito de 1522 ‘Da Vida Matrimonia’ (Vom Ehelichen Leben, WA 10II, 275-304. Martinho Lutero, Obras selecionadas, 1995, Vol. V, S. 160ss. Introdução de Martin N. Dreher e tradução de Ilson Kayser): Deus criou o ser humano, para que houvesse um homenzinho e uma mulherzinha. Esse enunciado nos dá a certeza de que Deus dividiu os seres humanos nessas duas partes, para que houvesse homem e mulher, ele e ela. Isso lhe agradou tanto que Ele próprio o chamou de boa criatura. Lutero usa Gn 1.27ss como base para a sua compreensão de matrimônio e corporalidade da pessoa. Juntos são criados à imagem de Deus. O ser humano é homem e mulher e não existe nenhum indício sequer de que exista uma hierarquia ou uma diferença nas posições entre homens e mulheres (Gerta Scharffenorth: Den Glauben ins Leben ziehen, S. 143).
Levando-se em conta o segundo relato da Criação, é muito interessante o fato de Lutero entender que o momento que marca o nascimento do matrimônio é quando o ser humano se reconhece como homem no momento em que encontra a mulher: Então é aqui observado, que Adão (no original hebraico, adam, que significa ser humano) não encontrou nenhuma parceira matrimonial, mas assim que Deus criou a Eva e a trouxe a ele, aí ele sentiu um amor autêntico por ela, e reconhece ela como sua companheira matrimonial (WA 2,166,30-31; 167,1-3. Ein Sermon von dem ehelichen Stand, 1519). Esse segundo relato, porém, é mais problemático e, na sua interpretação, o aspecto hierárquico sempre de novo é acentuado. Segundo a sua tradução do original em hebraico, Deus cria uma ‘ajudante’ para o ser humano, embora o termo hebraico signifique ‘ajuda’, ‘alguém que esteja com ele’, para que o ser humano não esteja sozinho no cuidado da Sua Criação.
A sua reflexão acerca desta temática é bastante complicada. Não poucas vezes chega a ser contraditória, sendo que, por vezes, a sua posição é muito revolucionária, pois elogia e valoriza as mulheres. Em outros textos e ocasiões, a sua posição é machista e demasiadamente hierárquica.
Seguindo a sua reflexão sobre o texto de Gênesis, no relato depois da queda, quando Adão e Eva já estão fora do paraíso, Lutero define os diferentes papéis que homens e mulheres desempenharão no casamento, na família e na sociedade, conforme os diferentes ‘castigos’ que Deus aplica: os castigos da mulher remontam para o âmbito doméstico e familiar, na procriação, no seu corpo, no parto, na educação de filhos e filhas (Lutero usa o termo ‘reger a casa’) bem como na submissão do seu marido. Os castigos do homem, por sua vez, remontam para o trabalho fora do âmbito da casa, sendo dele a responsabilidade do sustento da sua família (sob o suor de seu rosto). Em primeiro lugar, ele é castigado por submeter-se à ordem da mulher e não à ordem que Deus lhe dera. Assim Lutero argumenta que a mulher, sendo aquela que toma a iniciativa no pecado, deve, daqui para frente, se sujeitar ao homem e o homem, que se sujeitou à voz da mulher, deve, daqui para frente, ser aquele que domina.
Interessante para a nossa reflexão sobre o matrimônio cristão é ainda o fato de que Lutero, depois de listar as normas de vida e de relacionamento entre homem e mulher, aponta para a graça e a valorização mútua: ele destaca que o homem (Adão) não vê a mulher como mulher (feminino de homem) mas a chama Eva (que significa vida) – mãe de todos os que vivem!
A discrepância que existe nos escritos de Lutero quanto à sua posição frente às questões de gênero são alvo de críticas, principalmente por parte de Teólogas feministas. Não podemos esquecer que a sua posição também freou mulheres tanto na sua época como bem mais tarde, quando a tradição da Reforma limitou o papel da mulher na família e na sociedade, argumentando, a partir do seu posicionamento, que, como vimos, chega a ser bem problemático.
Durante a minha pesquisa sobre o casamento do próprio Lutero com a sua esposa, Katharina von Bora, pude concluir que a sua experiência matrimonial e familiar mudaram a sua postura frente a vários preconceitos ou ideias fixas que afirmava e defendia. O seu convívio com Katharina, que foi uma mulher muito positiva, inteligente, decidida e com um talento administrativo bem especial, o marcaram e o influenciaram. Lutero reconhece as suas potencialidades e a valoriza muito como companheira e esposa, chamando-a de ‘sol da manhã de Wittenberg’ ou ‘Katharina von Bora, die Lutherin’... a Lutera. Portanto, a Reforma abre portas e janelas para a reflexão sobre a importância da amizade e a beleza do matrimônio, em que ambos, mulher e homem, desempenham papéis iguais na família, um não é mais o melhor do que o outro. Aprendemos de Katharina e Lutero, que, na família, vive-se, cotidianamente, a comunidade cristã. Na família, apendemos a ser, a participar e a testemunhar o amor, a solidariedade e o respeito. A família, que é a menor comunidade, é um belo jardim que precisa ser cultivado.
Pastora Heloisa Gralow Dalferth, atua como Pastora Voluntária no Dienst für Mission, Ökumene und Entwicklung, na Evangelische Landeskirche in Württemberg