1 Coríntios 10.31-11.1

Auxílio Homilético

13/02/2000

Prédica: 1 Coríntios 10.31-11.1
Leituras: 2 Reis 5.1-14 e Marcos 1.40-45
Autor: Clemente João Freitag
Data Litúrgica: 6° Domingo após Epifania
Data da Pregação: 13/02/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Epifania


1. O texto

A Igreja de Deus que está em Corinto também é fruto da migração dos cristãos helenísticos, após a morte de Estêvão, em Jerusalém. A controvérsia de Jerusalém (At 15) fez o cristianismo receber um novo rumo, já nos primórdios de sua existência. De um cristianismo atrelado aos ditames judaizantes, caminhou-se para uma liberdade de fé que extrapolou as fronteiras da lei do antigo povo escolhido. A migração, o crescimento do cristianismo fora de Jerusalém trouxeram uma série de conflitos. Conflitos iguais e outros diferentes dos vividos em Jerusalém. Conflitos que ameaçaram a unidade da mensagem cristã. Logo no início da Primeira Carta aos Coríntios, em l .12, Paulo cita as contendas: Eu sou de Paulo, e eu de Apoio, e eu de Cefas, e eu de Cristo. Comunidade nova com pelo menos quatro grupos fortes que são admoestados e ensinados com e por uma carta. Não aprendemos muito sobre os grupos. Somos informados de que os seguidores de Apoio primavam pelo conhecimento e sabedoria. Não só a sabedoria da ciência, mas sim aquela revelada pelo poder do Espírito, em êxtase. Nesse navegar da fé, sentiam-se superiores aos demais cristãos. Viviam noutra dimensão. Um segundo grupo, bastante radical e cumpridor do AT, sendo por isto mais judaizante, era o dos/as seguidores/as de Cefas. Eram os propagadores, em potencial, do decreto dos doze (At 15).

Na compreensão diversificada do evangelho e na luta por um espaço maior dentro da comunidade cristã, cresceram os arautos de Cristo. Estes desautorizavam qualquer ação humana. Era Cristo e eles. Nada de apóstolos ou outra figura de fé. Propagavam uma ação direta de Cristo. E, por último, numa escala diferente, os defensores e seguidores de Paulo. Por serem mais tolerantes, também estavam granjeando seu espaço dentro da comunidade cristã.

Essa cisão de cunho partidário era quase que um vírus dentro da vida cristã em Corinto. Não havia mais um grande investimento na missão, na evangelização e na ação social. O tempo e a sabedoria eram usados para combater e confundir as outras correntes. O vírus do embate estava se alastrando de uma forma incontrolável. Invadiu o campo da fé, o terreno da ética e os olhos do estômago. Tanto o andar como o falar e o comer eram motivos de confusão. Vivendo e sentindo o perigo dessa guinada cristã, os da casa de Cloé chamam o apóstolo Paulo.

Assim, a perícope de l Co 10.31-11.1, indicada para o 6° Domingo após a Epifania, neste segundo milênio, é a reação de Paulo diante da divergência estomacal entre os grupos cristãos em Corinto.

2. Imitadores

De todas as controvérsias, o capítulo 10 também é uma mina de assunto. Deste assunto, os versículos indicados (31-33) são uma parte. Esta parte precisa ser estudada com os olhos voltados para l Co 1.12 e l Co 10.30.

V. 31: O ato de comer e beber simboliza uma parcela de nosso poder em subjugar a criação do Criador. Esse subjugar nos dá a falsa impressão de ser o dono da criação. Desde os primórdios da humanidade, o comer e beber são portadores de uma força mística que fascina, lista fascinação levou e leva o mais forte a controlar, com rituais e mecanismos obscuros, o seu semelhante, pelo estômago. Nem mesmo o cristianismo primitivo se viu livre dessa força mística que envolve o comer e o beber. No auge da controvérsia, os mais fortes de espírito e fé alegavam que podiam comer e beber de tudo. Já os novatos na fé e os judaizantes viam isto como uma afronta para o exercício cristão. Para quem se encontrava regularmente na refeição como ceia o peso da cisão calava fundo. No calor da discussão e na prática estomacal do é pecado ou não é, a ideia humana e o vocabulário não contribuíam para a edificação da comunidade. Nesse jogo de poder, quem estava perdendo era a comunidade e os possíveis convertidos que não mais estavam sendo atendidos. O centro da preocupação era o estômago, não mais o evangelho do Cristo morto e ressurreto. O papel do alimento é alimentar e não determinar um controle religioso sobre o/a irmão/ã ou qualquer outra criatura.

Paulo! Qual é a saída? De olho no v. 30, captamos a mensagem conciliatória de Paulo. Não condena com as acusações das facções descritas no capítulo 1.12. Elogia pelo gesto comum entre os rivais: Se participo com ações de graças.... Se dou graças a Deus, qual o motivo da confusão? (Consultar l Co 10.25-30; Rm 14.13ss. e l Tm 4.4ss.). No arremate deste ensino, Paulo vai além do dar graças a Deus. Tudo é feito para a glória de Deus. O litígio pelo poder subnutriu o corpo reflexivo e desidratou o espírito comunitário da cristandade, impedindo a compreensão de que tudo é feito para a glória de Deus, ainda mais se se deu graças a Deus pelo alimento.

Esta é a chave da leitura do comer e beber ou se abster de comer e beber certas dádivas. Dádivas estas que são frutos do poder criador de Deus. O alimento, a matéria não é má.

V. 32: Quando o comer e beber ou qualquer outra coisa ocupam o lugar do evangelho, na vida cristã, fica evidente que os interesses humanos próprios estão se sobrepondo. Assim sendo, os protagonistas desse embate são portadores do vírus do tropeço. Fazer alguém tropeçar, com a minha própria liberdade, é algo que atesta a distância do Cristo crucificado e ressuscitado. O mal não é o comer e beber ou deixar de beber e comer, mas, sim, a confusão que a discussão causa. Essa discussão não contribui para a edificação da comunidade e a salvação dos pecadores. A polêmica em questão ofuscou a compreensão dos judeus, no tocante à fé cristã. Problematizou o ingresso de gentios na vida comunitária cristã. E, não por último, afetou todo o ser da Igreja em Corinto. Refletia a mesmice de toda a sociedade em subjugar o próximo pelo estômago, pela fé e pelo poder do conhecimento. Pois o mais forte poderia suportar a fé do princi¬piante com mais facilidade. Já o mais fraco tem dificuldade em aceitar e viver o estágio de fé dos mais desenvolvidos. Nem por isto estão autorizados a realizar o juízo no sentido de quem é mais cristão. Isto traz desordem e compromete a vida da comunidade.

V. 33: A controvérsia fundamentada nos aspectos discordantes não traz crescimento. Paulo se oferece como protótipo diferenciador. Pois se intitula servo de Cristo. Como tal, vive na perspectiva de ser agradável a todos em sua vida e ensino. Este ser agradável está alicerçado na perspectiva de que outros venham a ser salvos. Quando a minha compreensão de comer e beber ou não, determina o diálogo e a prática cristã, fica evidente que é o meu interesse que impera no convívio. Assim sendo, estou a subjugar o outro, impedindo a sua compreensão e salvação. Com isto muitos são impedidos, tropeçam e não conhecem o caminho da salvação. Esta não é a função da comunidade de Corinto. Paulo os quer diferentes. Para tanto os chama. Este chamado é para uma identificação. Para um agradar em todos os aspectos da vida. Nos aspectos negativos da controvérsia não podemos realizar julgamentos. Necessitamos preencher esses aspectos com o fundamento do ensino de Paulo, para a questão dos alimentos. Se dou graças a Deus por tudo..., qual o motivo da discórdia? Além disso, como cristão tenho a liberdade de fazer tudo para a honra e glória de Deus. Dentro destes dois ensinos, Paulo agradou e proporcionou meios de boa convivência a todos os grupos.

V. 11.1: Se Paulo os desafia para uma imitação de sua vida, podemos subentender que os parâmetros seguidos não eram de convergência, mas de concorrência. O modelo inspirador não visava o crescimento da comunidade, mas o sobressair-se individual ou grupai. Paulo os incentiva na busca de outro referencial, que é ele, em Cristo. Sua vida antes, durante e agora, com Cristo, o qualifica para tal. Lembra-os de que ele próprio é imitador de Cristo. O imitai, não é querer ser igual em número, gênero e poder. É ter um referencial que te autoriza a agir de modo diferente dentro de uma vida que massacra o mais fraco. Chegar a crer que isto é possível e praticar na própria vida. Assim, os diferentes grupos, partidos cristãos deveriam se entender como fermento na comunidade. O próprio pertencer a um grupo diferente deve servir para a honra e glória de Deus. O debate sobre a alimentação deve se tornar uma motivação para o crescimento comunitário, ainda mais se através dele podemos dar a honra e glória a Deus.

Assim, a imitação do jeito de tratar as controvérsias iria cooperar no crescimento dos salvos. Este jeito de Paulo estava fundamentado em Cristo. Não condenar, mas edificar.

3. Meditação

Eu sou de Apolo! Eu sou de Cefas! Eu sou de Cristo! Eu sou de Paulo! Isto caracteriza uma postura humana que se coloca acima da verdade e da ação de Deus. É um golpe no poder da liberdade cristã. Manifesta uma prática que perpassou e perpassa todos os aspectos da vida na Igreja de Deus. Inclusive no campo alimentar, conforme l Co 10.31-33. A obsessão pela verdade verdadeira, que é a minha, não a do outro, enfraqueceu o poder evangelizador que Cristo confiou aos seus seguidores. Através do poder das facções cristãs até mortes foram praticadas. Podemos historizar essa prática em lodo o milénio passado. Assim, eu sou do papa! Eu sou de Lutero! Eu sou de Calvino!Eu sou de Wesley! Eu sou de Spener! Eu sou sou da Assembleia de Deus! Eu sou da Quadrangular! Eu sou da Universal! Eu sou da teologia da libertação! Eu sou carismático! Eu sou da Luterana! Eu sou da Confissão Luterana! Eu sou da MEUC! Eu sou do Encontrão! Eu sou da PPL! Eu sou dos conservadores! Eu sou dos sem-terra! Eu sou feminista! Eu sou dos que rebatizam pelo Espírito Santo! Eu sou...! Este eu sou chega até nos pequenos pontos de pregação, não como uma bênção, mas sim com um forte poder desagregador, corrompendo, abusando e ofuscando o poder do evangelho que Deus confiou, em Cristo, no Espírito, a todos esses grupos e correntes. Essas correntes e grupos não vivem exclusivamente para ir em busca dos perdidos, glorificando assim o nome do Senhor. Antes, em muitos momentos, são como alimentos produzidos com excesso de produtos tóxicos. Não é qualquer exame toxicológico que identifica as doenças e causas que dali surgem. Os seus produtores são de renome e os produtos com embalagem de primeira e ótima aparência.

A doença do eu sou gera forças para poder subjugar o outro também através da alimentação. Ou melhor, da minha interpretação dos alimentos considerados bons e maus. A minha verdade em todos os aspectos é a verdadeira. Esta verdade, faço passar como sendo o evangelho de Cristo. Isto me dá poder diante do outro. Isto é poder. O fato de lutar pelo poder, ser o poder e estar no poder, desta forma, foi e é a deterioração das igrejas cristãs. Esse problema inclusive já faz parte das igrejas que surgem na atualidade.

Alicerço esta minha reflexão em 20 anos de convivência, quando muitas vezes também fui iludido e picado pelo vírus da luta pelo poder controlador dos mais fracos. Houve épocas em que a luta pela verdade verdadeira ocorreu em torno de questões chamadas fundamentais para a fé cristã. Contudo, na maioria das vezes, essas lutas mortíferas foram e são em torno dos olhos estomacais dos cristãos. Não foram e não são para buscar a unidade na propagação do evangelho. Não visam a salvação do próximo, mas passar avante a minha experiência e descoberta de fé. O que é verdadeiro é a minha fé, o meu jeito de ser e fazer Igreja. O jeito dos outros tem algo a ver com o espírito maligno. Na minha concepção o ser cristão do outro não edifica e não coopera para a salvação. O meu, sim. Nos concílios, nas assembleias paroquiais e comunitárias, nas assembleias sinodais de que participei, cada eu sou ainda vota e toma decisões conforme seu grupo e a barganha de poder necessária para ocupar o espaço no campo do poder. Não é por acaso que a violência física e a agressão espiritual estão crescendo ao nosso redor.

A comunidade de Corinto lutou no estômago e viu na matéria alimentar o mal. Não crescia nos meios de evangelização, missão e ação social. Paulo viu nisto uma causa de tropeço. Incentivou a comunidade e seus grupos a exercitar uma vida diferente. Desafio, e me incluo nisso, a buscar exemplos do passado distante e do presente, dentro de cada Igreja, para reverter esse quadro do ' 'eu sou, que está produzindo alimentação espiritual tóxica. Em cada Igreja, em cada grupo há milhares de vidas e exemplos que podem e devem ser imitados, pois foram imitadores de Cristo. São alimentos consagrados por Deus e que alimentaram muitas almas e vidas famintas. Para isto acontecer, precisamos incluir no cardápio de nossa prática cristã os elementos que Paulo ofereceu à comunidade de Corinto (vv. 31 -33).

Se em tudo o que faço, dou graças a Deus, qual o motivo de condenar e ser condenado pelo/a irmão/ã do mesmo Cristo? Ainda mais se tudo que faço é para a honra e glória de Deus. Esta é a parte mística de nossa fé e prática cristã que falta. O eu sou vive, pensa e fala como se apenas ele fosse o verdadeiro propagador de Cristo. Só o meu estômago é que se alimenta com a comida certa. A ação cristã, o pensar, o falar e o comer do outro são algo do demônio e para o demônio. Na minha verdade verdadeira, o outro não sabe fazer nada para a honra e glória de Deus. Enquanto vivermos e praticarmos tal fé, o mundo dos seres humanos continuará incrédulo. E o número dos/as salvos/as não aumentará. Sejamos, pois, imitadores dos que imitam a Cristo. Crescendo no dar graças e fazendo tudo para a honra e glória de Deus. Acreditando que a outra corrente, que o outro grupo e a outra Igreja também estão fazendo tudo para a honra e glória de Deus. Participamos assim da purificação de toda a criação de Deus, conforme nos sugerem os textos de 2 Reis 5.1-14 e Marcos 1.40-45.

Bibliografia

BOOR, Werner de. Der erste Brief des Paulus an die Korinther. Wuppertal : Brockhaus, 1979. (Wuppertaler Studienbibel, Reihe: Neues Testament).
GRUNDMANN, Walter, LEIPOLDT, Johannes. El mundo del Nuevo Testamento. 3. ed. Madrid : Cristiandad, 1971. v. 1.
SCHELKLE, Karl Hermann. Teologia do Novo Testamento. São Paulo : Loyola, 1977. v. l.

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Clemente João Freitag
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: 6º Domingo após Epifania
Testamento: Novo / Livro: Coríntios I / Capitulo: 10 / Versículo Inicial: 31
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999 / Volume: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 12794
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