1 Coríntios 14.1-3,20-25

Auxílio Homilético

20/06/1982

Prédica: 1 Coríntios 14.1-3,20-25
Autor: Bertholdo Weber
Data Litúrgica: 2º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 20/06/1982
Proclamar Libertação - Volume: VII


l — A perícope e seu contexto

A pericope prevista para o 2° Domingo após Trindade compõe-se de dois trechos descontínuos, escolhidos do cap.14, que tem por tema geral o culto, mais especificamente, a profecia e a glossolalia (falar em línguas). A partir desta temática comum, a delimitação da perícope e exegeticamente justificável, sem que com esta escolha seja dispensável recorrer oportunamente ao texto restante do capitulo. Os vv 20-25 formam um conjunto harmonioso que objetiva mostrar o efeito diverso dos dois dons mencionados sobre os ouvintes visitantes, incrédulos e indoutos. Os primeiros três versículos do cap.14 são colocados à frente para pôr em evidência a primazia da profecia sobre a glossolalia, contribuindo desta maneira para a melhor compreensão da segunda parte.

O contexto maior trata dos dons do Espírito na comunidade (cap.12) e da necessidade de ordem no culto em função da edificação da comunidade inteira (cap.14), com o sub-tema apresentado em nossa perícope: o dom da profecia é superior ao de falar em línguas. No centro deste contexto encontra-se o cap.13: o dom supremo é o amor. Sem ele todos os demais carismas e funções na comunidade, seja o dom de falar em línguas ou o dom da profecia, nada valem e um dia desaparecerão (13.1). O amor é o critério último para tudo o que acontece na comunidade, inclusive no centro de sua vida comunitária, no culto, que em Corinto, aliás, era extraordinariamente vivo e variado.

II — Considerações exegéticas

Vv.1-3: A exortação inicial, segui o amor, não é apenas uma frase de ligação entre os caps. 13 e 14. O apóstolo estabelece logo de saída uma certa ordem de valores: a) O amor é medida e padrão para avaliar todos os dons espirituais, b) Entre estes, a profecia é superior ao dom das línguas, c) No culto tudo deve servir à edificação da comunidade toda.

O falar em outras línguas, a glossolalia, consiste no falar incompreensível do crente extasiado, em espírito, com Deus, sem, entretanto, trazer proveito para os outros participantes, particularmente os de fora do culto da comunidade. Isto, porque ele fala coisas misteriosas que ninguém entende sem interpretação e que só servem para a edificação de si mesmo. Paulo mostra-se, como vemos, muito critico contra a glossolalia, porém, não a proíbe (v.39); mas ele, que também possui o dom de línguas (v.18), só vê sentido em seu uso quando alguém é capaz de interpretar os sons desconexos pronunciados.

No inicio desta sua carta aos coríntios, o apóstolo atesta à comunidade que nela não havia falta de nenhum dom de graça (1.7); pelo contrário, espiritualmente muito rica, nela os múltiplos dons chegaram a transbordar desordenadamente, obrigando o apóstolo a intervir com firmeza e prudência para restabelecer a ordem. A riqueza de carismas não deve degenerar em anarquia e desordem, nem tampouco favorecer a autoprojeção do indivíduo, em detrimento da comunidade inteira. Os diversos dons e serviços existem em função dos outros e da edificação de toda a comunidade, e não para a edificação religiosa do membro individual. Todos são chamados à mesma fé e agraciados pelo mesmo Espírito. Cada qual, porém, deve colocar o seu dom especifico, por mais modesto ou espetacular que seja, a serviço de toda a congregação, frutificando e fortalecendo o testemunho, a missão e o serviço dela no mundo. Por isso a profecia tem a prioridade sobre a glossolalia, pois se dirige em linguagem compreensível a todos os presuntos no culto, edificando, exortando e consolando (v.3).

Vv. 20-24: Dando assim preferência ao dom profético, sem desprezar qualquer outro, desde que exercido em função da edificação da comunidade, Paulo repreende a atitude infantil (PAIDIA) dos coríntios. Para estes, a glossolalia era sinal evidente de sua espiritualidade superior, costumavam chamar-se de PNEUMATIKOI, e sentiram-se arrebatados, já agora pelas forças pneumáticas para o mundo do além. O apóstolo chama esses fanáticos, extasiados e fascinados pelo encanto arrebatador da glossolalia, à razão, a tornar juízo, à sobriedade. Diante deste infantilismo em questão de fé, Paulo apela ao juízo como é próprio de homens amadurecidos e adultos na fé. Espírito Santo e razão, Espírito Santo e juízo não se excluem mutuamente. Entretanto, não a razão como tal é a norma a que tudo o mais deve ser sujeito, mas a razão renovada pela palavra e a serviço da palavra. Paulo não pretende apagar o Espírito e reduzir todas as manifestações da vida comunitária o cultual a um intelectualismo racional. Se apela ao juízo e à inteligibilidade é porque tenciona que todos, também o incrédulo e o forasteiro, possam entender a palavra anunciada, a profecia, no culto. O objetivo do anúncio profético não é, propriamente dito, a convicção teórica da exatidão de uma doutrina (ortodoxia), mas que o ouvinte, diante desta palavra, sua verdade e realidade, seja manifesto e descoberto no mais intimo de seu coração. Somente assim se realiza a edificação da comunidade e, por causa dela, o anúncio que atinge o ouvinte existencialmente é tão importante. Porque só onde a palavra de Deus é pregada de maneira compreensível, os ouvintes todos entenderão, juntamente com a palavra divina, a si mesmos e a sua situação humana perante Deus. (A prova escriturística — v.21 — não coaduna bom com o que Paulo quer dizer. Em Is 28.11ss Deus falará em outras línguas para endurecer o coração do povo de Israel; aqui o problema é que os incrédulos não podem entender o falar em outras línguas. Também o silogismo seguinte — v.22 — é um exagero retórico que não deve ser pressionado em seu sentido literal mas que, dentro do contexto, que dizer: fé e profecia pertencem juntas.)

Nos vv 23-25 o apóstolo tem em vista a situação da comunidade reunida em culto: se entrarem indoutos e incrédulos e encontrarem todos falando em outras línguas, vão julgar que estão loucos. O indouto (IDIÔTÈS) é um que vem de fora, um estranho ou marginal. Ele deve julgar se a palavra pregada é clara e compreensível ou apenas um “falar ao ar (v 9). Isto é válido também para a oração! O verdadeiro falar no culto, portanto, não é tão-só um conversar com Deus para edificar-se a si mesmo (v.4), mas um serviço mútuo, e por isso exige a linguagem compreensível. A insistência de Paulo na compreensibilidade da palavra (profecia) — que não permite ao orador o direito de endereçar sua mensagem exclusivamente àqueles que estão conformes com ele na mesma experiência espiritual e nos mesmos conhecimentos de doutrina — demonstra sua preocupação e seu interesse pelos outros que ainda estão à margem (IDIOTAI) ou além (APISTO!) da comunidade (v.23). Também eles devem entender e ser convencidos, para se tornar manifesto o esconderijo secreto do seu coração e para, detectados e arguidos pela verdade incontestável do Evangelho, serem levados a confessar: Deus está realmente entre vós!

Esta é a função e o objetivo primordial da profecia bíblica. Ao ouvir a palavra profeta ou profetizar, a maioria, hoje, pensa logo numa pessoa que prediz o futuro, num vidente que adivinha as coisas do porvir. Mas o profeta bíblico é chamado para ser mensageiro, arauto e boca de Deus, enviado para anunciar ao povo, dentro de suas circunstâncias históricas concretas, a palavra e vontade de Deus, a ameaça do seu juízo bem como a oferta de salvação, chamando seu povo de volta do caminho errado para seu legítimo Senhor e Criador. Também no Novo Testamento o testemunho profético procura atingir o ouvinte em sua consciência e expor à luz da verdade e da presença de Deus as profundezas de sua existência humana. Porque, segundo Hb 4.12, a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, penetra ... e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração. É disto que se trata também em nosso texto quando o apóstolo dá tão elevada importância à profecia para a edificação da comunidade.

III — Meditação

A situação da comunidade de Corinto, no tempo do apóstolo, não é a das nossas comunidades de hoje e aqui. Em comparação com os nossos cultos habituais, que tradicionalmente obedecem ao esquema litúrgico oficial e no qual costuma falar uma pessoa só, as reuniões de culto da comunidade de Corinto eram extremamente vivas, caracterizadas por uma participação espontânea e vibrante de todos os membros. Em face da riqueza de vida carismática destas primeiras comunidades, os nossos cultos realmente parecem pobres e monótonos. Quem não desejaria que o Espírito Santo, qual um vento impetuoso, avivasse a vida comunitária e despertasse entre nós seus dons de graça? Quem não almejaria a renovação e atualização do nosso culto e sua liturgia e uma participação mais intensiva e responsável dos leigos? Por outro lado, o nosso texto nos adverte sobre fenômenos espirituais ambíguos, como o falar em outras línguas, hoje mais frequente entre congregações de crentes” ou grupos carismáticos do que na IECLB.

Diante da explosão pneumática em Corinto, que levou a incidentes tumultuários e desordenados no culto, Paulo estabelece uma norma fundamental a que tudo deve servir: a edificação da comunidade. A palavra edificação, em nossa linguagem eclesiástica tradicional, foi deformada e privada do seu sentido original. Para Paulo, este termo não visa a edificação pessoal e subjetiva do indivíduo, como foi mal-entendido em certos círculos pietistas. O apóstolo fala de maneira irônica e crítica deste tipo de edificação de si mesmo (14.4: cf. 8.10) e reconhece como verdadeira só a edificação da comunidade inteira, para ela ser templo de Deus, a cidade no monte, construída para participar da missão de Cristo no mundo.

Se a glossolalia não constitui um problema para nós, não obstante há uma espécie de falar em outras línguas também em nossa Igreja, ou seja, um linguajar de Canaã, estranho e incompreensível para a pessoa de fora, não iniciada na terminologia teológico-eclesiástica usada na liturgia e na prédica. É falta de amor ao próximo e desobediência ao Senhor que mandou pregar o Evangelho a toda a criatura, se no culto é visado só o homem homilético, o piedoso e crente, com uma linguagem religiosa edificante, mas descarnada da realidade do dia a dia, em que vive o nosso povo.

Não será este um dos motivos por que muitos que vivem fora ao recinto sagrado, que falam uma linguagem diferente e têm problemas não abordados no culto, não se sentem atingidos pela palavra e deixam de frequentar a igreja e de ser integrados na comunhão e na missão da comunidade? (Operários, jovens, marginalizados, pessoas de outro am-ImiMte cultural.) Também entre nós existe o perigo de as comunidades se tornarem círculos fechados, com uma linguagem litúrgica solene, mas pouca pregação profética que anuncia a boa nova de salvação e denuncia egoísmo e injustiças, sem temer as consequências. Com isto não nos esquecemos dos nossos limites: o que palavras humanas, por mais claras e compreensíveis que sejam, não conseguem, o Espírito Santo realiza por um testemunho encarnado no contexto concreto, edificando, exortando e consolando os ouvintes e equipando assim a comunidade para a sua missão no mundo em que ela vive.

Pode-se dizer isto dos nossos cultos e de nossas prédicas?

IV — Sugestões para a prédica

A prédica poderia tomar por ponto de partida um caso ou problema concreto da vida da comunidade ou a pergunta por que muitos não vêm (mais) ao culto. Ou poder-se-ia comparar o nosso culto tradicional com o culto de outras comunidades e igrejas. No centro, porém, deve estar o testemunho profético do Evangelho de Jesus Cristo, a edificação de sua comunidade no culto e sua participação na missão de Deus em nosso povo. O culto, centro da vida comunitária, tem por objetivo, através de uma linguagem compreensível e adaptada ao nível dos ouvintes, equipar a comunidade inteira para esta missão. No culto, portanto, não deve prevalecer a edificação subjetiva e individualista, como aconteceu na comunidade de Corinto, mas sim, o anuncio profético do Evangelho relacionado com os problemas e desafios do nosso povo.

É recomendável que o culto seja preparado por um grupo de gente lá de fora, juntamente com o pastor, para profetizar, isto é, anunciar o Evangelho da presença atuante e salvífica de Deus em Jesus Cristo e denunciar, à luz de sua verdade e por amor aos irmãos oprimidos, o egoísmo explorador e um sistema de injustiças e violências que é desumano e antievangélico. Isto sempre envolve o risco de machucar sentimentos, costumes e ritos sagrados, o risco de mexer com as consciências e manifestar os segredos do coração. É certamente mais fácil e menos incômodo falar uma linguagem angelical e transformar a palavra de Deus, mais cortante do que uma espada de dois gumes, em água açucarada ou bálsamo celestial para as almas, do que dizer a profecia, a clara pregação do Evangelho do Crucificado e Ressurreto, aplicada à situação do homem de hoje e do povo. Só esta pode realmente edificar a comunidade e convencer os de fora, os incrédulos.

O nosso texto nos faz perguntar até que ponto nós, em nossas comunidades e em nossa vida, obscurecemos o Evangelho: por nossa linguagem, por formas litúrgicas e tradições eclesiásticas ou por estilos de vida religiosa introvertida. A igreja profética deve tornar clara a sua solidariedade com os lá de fora, e trazer à presença de Deus e para dentro de sua vivência comunitária todas as alegrias e tristezas, os anseios, as reivindicações justas e as esperanças do nosso povo.

A respeito da questão de indigenização, isto é, acomodação e expressão do Evangelho em termos da cultura local, J.G.Davies, no livro Culto e Missão, escreve sobre o nosso texto: Assim esses versículos não só levantam a questão da inteligibilidade, mas também dirigem a atenção ao possível papel a ser desempenhado por quem está ao lado de fora na crítica às formas de culto existentes e na criação de novas formas. Se culto e missão estão ligados e se a 'pessoa de fora' é um dos que devem julgar se o culto é inteligível ou não, então os encarregados da revisão litúrgica devem pedir a 'pessoas de fora' que critiquem todos os elementos do culto. Pode ser que a 'pessoa de fora' fale pelos muitos cristãos que não compreendem e não têm a coragem de confessar sua falta de compreensão. Certamente criadores seculares de liturgias poderão ajudar a igreja a descobrir formas e expressões relevantes, que ela pode nunca produzir se sua revisão litúrgica é a atividade de um grupo das 'pessoas de dentro'. Uma igreja para os outros deve procurar a 'pessoa de fora' em seu trabalho de elaborar formas de culto significativas hoje em dia.

VI — Subsídios litúrgicos

1. Confissão dos pecados: Senhor, nosso Deus, tua palavra esta em nossa frente qual espelho, e nela conhecemos toda a verdade a nosso respeito. Descobrimos a nossa situação real: somos egoístas e acomodados. Em vez de participarmos ativamente na edificação e na missão da comunidade no mundo, procuramos até no culto a nossa própria satisfação religiosa. Em vez de servirmos com nosso testemunho e amor aos que estão lá fora ficamos indiferentes e só queremos ser bem servidos e atendidos. Mas descobrimos em tua palavra também o teu perdão e teu amor. Por isso, pedimos confiantemente, em nome de Jesus: tem piedade de nós, Senhor.

2. Oração de coleta: Muito obrigado, Senhor, que estás presente entre nós, neste culto, nos falas e nos escutas, embora não o tenhamos merecido. Desperta entre nós os dons do teu Espírito Santo, para que toda a comunidade seja edificada e preparada para o testemunho claro do teu Evangelho e possa transmitir o leu amor a todos os homens. Dá-nos o Espírito dos apóstolos e profetas para podermos denunciar o pecado e a injustiça e anunciar, em amor, a liberdade, a justiça e a paz. Amém.

3. Sugestão para a oração final: Após uma breve introdução, coligir súplicas e preces de intercessão espontâneas dos membros, que expressam preocupações, anseios e esperanças relacionadas com a situação e a missão da comunidade em seu contexto e sua vivência de dia a dia.

VII — Bibliografia

- BEARE.F.W. Speaking in Tongues. In: Journal of Biblical Literature. Caderno 83. 1964.
- DAVIES.J. G. Culto e Missão. São Leopoldo, 1967.
- KLEINKNECHT.H. PNEUMA. In: KITTEL.G., e FRIEDRICH.G., ed. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Vol.6. Stuttgart, 1959.
- LIBANIO.J. B. Reflexões teológicas sobre a salvação. In: Síntese. N°1. Vol. 1. São Paulo, 1974.
- PEISKER.C. H. / SCHMIDT.L Meditação sobre 1 Coríntios 14.1-3,20-25. In: Homiletische Monatsheft. Ano 52. Caderno 9. Vol.7. Göttingen, 1977.


Autor(a): Bertholdo Weber
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 3º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Coríntios I / Capitulo: 14 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 3
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1981 / Volume: 7
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14627
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Martim Lutero
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