1 Coríntios 9.16-23

Auxílio Homilético

06/02/2000

Prédica: 1 Coríntios 9.16-23
Leituras: Jó 7.1-7 e Marcos 1.29-39
Autor: Verner Hoefelmann
Data Litúrgica: 5º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 06/02/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Epifania

 

Um cristão é livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém.
Um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos. (Lutero.)

1. O contexto (l Co 8-10)

A perícope de l Co 9.16-23 é parte de um bloco temático que abrange os capítulos 8 a 10. Esse contexto será alvo de atenção especial, pois oferece perspectivas importantes para o texto e ajuda a concretizá-lo. Paulo responde nesse bloco a uma das perguntas que lhe foi endereçada por meio de uma carta (cf. 7.1 — textos sem indicação de origem são de l Coríntios). E possível reconstruir a pergunta a partir da resposta do apóstolo: podem os cristãos consumir a carne que foi antes dedicada a ídolos pagãos? Trata-se, portanto, do problema de como procederem relação a crenças e praticas religiosas que cercam a comunidade. Alguém tentou compreendei o problema com a seguinte comparação: é como indagar se os cristãos podem comer a carne de uma galinha encontrada num despacho de macumba. A comparação tem, evidentemente, alguns pontos de contato, mas a questão de Corinto é bem mais complexa.

A consulta procede de uma comunidade fundada há cinco ou seis anos, inserida num dos centros urbanos e mercantis mais importantes do Império Romano. Ela estava rodeada por numerosas religiões e templos pagãos. Escavações arqueológicas, feitas em torno da praça central da antiga Corinto, trouxeram à luz os restos de vários desses templos, como os dedicados a Apolo e Afrodite. Muitos deles ocupavam amplas instalações, com numerosas salas contíguas. Nelas se realizavam celebrações públicas e privadas: atos cívicos, reuniões de associações de classe, eventos sociais, como a comemoração do nascimento de um filho ou do casamento de um parente.

A celebração de tais eventos sempre tinha, simultaneamente, uma conotação religiosa, por via de regra vinculada a refeições e ao consumo de carne. Era impossível integrar-se plenamente á sociedade sem participar, de certa forma, também de seu aspecto religioso. Documentos da época mostram que anfitriões e convidados dessas refeições pertenciam geralmente à elite social e econômica Os pobres não tinham condições de patrocinar semelhantes ceias nos templos nem recebiam convites para participar delas. Eles consumiam carne apenas em festas religiosas de caráter público, quando se distribuía parte da carne dos sacrifícios para as pessoas em geral, como parte da celebração.

Na comunidade de Corinto havia posições conflitantes frente à questão. De um lado estavam os fracos (8.9) ou os de consciência fraca (8.7). Esses achavam que a participação em tais eventos era incompatível com a fé cristã, pois equivalia à prática da idolatria. Entre eles estavam alguns gentios, acostumados a participar dos sacrifícios nos templos antes de sua conversão (8.7; 10.32). Também alguns judeus faziam parte desse grupo (10.32). Mesmo depois de sua adesão a Cristo, não se tinham libertado do tabu relacionado à proibição de contato com religiões gentílicas.

De outro lado estavam as pessoas dotadas de conhecimento (8.1,2), que em outro contexto o apóstolo chama de fortes (Rm 15.1). Cientes e orgulhosas da liberdade gerada pelo evangelho, seu slogan preferido dizia: Todas as coisas me são lícitas (6.12; 10.23). Por isso não viam problemas em continuar participando de festas e solenidades onde se comia da carne consagrada a deuses pagãos. Não é difícil supor quem estava entre os fortes: os poucos cristãos sábios, poderosos e de nobre nascimento que se haviam convertido à fé cristã (1.26). Eles se sentiam livres para participar de tais eventos. O que pensa o apóstolo da questão? Ele constrói sua resposta igualmente sobre o tema da liberdade, mas busca para ela uma nova definição a partir do evangelho.

1.1. O que convém ou não convém à liberdade cristã

A grosso modo se poderia dizer: teologicamente Paulo está com os fortes, mas pastoralmente se coloca do lado dos fracos. Ele distingue, ao que parece, ires situações distintas ligadas ao consumo de carne consagrada, dando a elas um tratamento diferenciado. Uma delas é tomar parte na mesa dos demônios (10.14-22). E provável que a expressão indique uma participação ativa na oferenda de sacrifícios aos muitos deuses e senhores do panteão greco-romano (8.5).

A posição de Paulo nesse caso é radical: não se pode participar ao mesmo tempo da mesa do Senhor e da mesa dos demônios. Participar em tal ato compromete a pessoa com uma força espiritual alheia a Deus, violando a lealda¬de exclusiva que brota da participação na mesa do Senhor. Tais deuses e senhores não têm existência real (8.4-5), mas a adoração a eles os constitui em poderes espirituais. Como entender isso? O fenômeno religioso no mundo greco-romano estava integrado ao sistema de dominação imperial. Devia funcionar como uma espécie de garantia transcendental para a política do Estado. A preocupação dos fracos, nesse aspecto, se mostra, portanto, plenamente justificada. Ao proibir a participação ativa em tais eventos e proclamar a adoração a um crucificado pelo Império (2.2), a fé cristã denuncia a idolatria e se converte em adversária do sistema com a sua pax deorum, a paz dos deuses.

Hm 8.1-13 e 10.23 33 se pressupõem situações diferentes. No primeiro caso se fala de uma refeição à mesa em templo de ídolo (8.10). Talvez se trate de um desses eventos sociais realizados em salas contíguas ao templo, onde se utiliza a carne consagrada excedente, não utilizada nos banquetes sagrados, ou mesmo uma participação passiva em tais banquetes. Parte dessa carne era vendida nos mercados para ser consumida em casas particulares (10.25-27). Como responde Paulo a essas duas situações?

Ele concorda teologicamente com os fortes que não há problemas em participar de tais eventos. O panteão greco-romano possui muitos deuses e senhores, mas em verdade existe apenas um Deus e um só Senhor. Por isso ninguém ganha nada se come tal carne nem perde nada se deixa de comê-la (8.4-8). Até esse ponto Paulo parece estar reforçando o conceito de liberdade sem limites defendido pelos fortes.

Em seguida, porém, introduz a marca da liberdade evangélica. A filosofia estóica encorajava as pessoas a orientar-se por sua própria consciência, sem se deixar influenciar por opiniões alheias. Paulo, diferentemente, pede que o conhecimento dos fortes seja limitada pelo amor (8.1-3). O conhecimento enche de orgulho e auto-suficiência o indivíduo que o possui. Distancia-o dos ignorantes. O amor procura os interesses coletivos e a edificação da comunidade (10.23-24,32-33). Ou seja, Paulo propõe que o bem comum seja o critério a nortear a conduta do cristão, mesmo que isso signifique uma limitação ou renúncia de sua liberdade. Por isso ele pede aos fortes: renunciem ao seu direito legítimo e à sua liberdade, caso isso se torne motivo de tropeço para os demais.

1.2. Faça o que eu digo e o que faço

Visto desta perspectiva, o capítulo 9 está plenamente integrado à argumen¬tação. Se antes Paulo exortava os fortes de Corinto a limitar seu direito e sua liberdade em consideração aos fracos, agora ilustra o seu pedido com o próprio exemplo. Quer que os coríntios o imitem, assim como ele imita a Cristo (11.1).
Sua qualificação apostólica serve como um primeiro exemplo (9.3-15). Como apóstolo, diz Paulo, tem plenos direitos de receber o sustento das comunidades. Argumenta com cuidado em favor desse direito (9.9-12a,13-14), porque sua autoridade está sendo contestada: seu trabalho como fabricante de tendas poderia estar sendo visto como uma prova de que ele mesmo reconhece sua indignidade e inferioridade. Mas Paulo mostra que a razão do seu trabalho é outra (9.12b,15). Seu trabalho constitui uma renúncia ao direito de ser sustentado pelas comunidades. Assim procede para não criar obstáculos à pregação do evangelho. Renuncia a um direito individual porque é movido por uma causa maior, qual seja, a pregação do evangelho que cria e edifica a comunidade.

Em seguida Paulo recorre a um segundo exemplo, desta vez derivado de sua prática missionária (9.16-23). Ele é livre, mas se torna voluntariamente servo de todos, para ganhar o maior número possível de pessoas. Mas com isso já entramos de cheio na perícope deste domingo.

2. O texto (l Co 9.16-23)

Também a sua prática missionária é expressão da liberdade evangélica assim como Paulo a entende. O pensamento da perícope é desdobrado da seguin¬te forma:

1. O fundamento da liberdade: A liberdade evangélica não inclui a opção entre pregar ou não pregar o evangelho (vv. 16-17).

2. A liberdade como renúncia: A liberdade evangélica se expressa no fato de poder renunciar a um direito pessoal (v. 18).

3. A liberdade para fazer-se servo de todos: A liberdade evangélica se expressa no fato de poder adaptar-se a circunstâncias distintas em função do alvo que a orienta (vv. 19-23).

2.1. O fundamento da liberdade (vv. 16-17)

Paulo inicia sua exposição dizendo o que a liberdade evangélica não significa: ela não significa a possibilidade de escolher entre pregar ou não pregar o evangelho. Sobre o apóstolo pesa uma obrigação. À semelhança dos profetas veterotestamentários, ele foi tomado por um chamado irresistível de Deus, do qual não consegue se desviar (cf. Gl 1.15). Esquivar-se dele seria o mesmo que atrair sobre si a desgraça e o juízo de Deus.

Ao falar em obrigação, porém, o apóstolo não se refere a um destino cego ou a uma fatalidade determinista. Fala do resultado de uma experiência fundamental: a experiência com o poder da graça veiculada pelo evangelho. Apesar de sua aparente fragilidade, expressa na figura de um crucificado, o evangelho transmite o poder e a sabedoria de Deus para a salvação dos que crêem (1.18-25). Esse crucificado esvaziou-se para assumir a forma de servo, sendo por isso constituído como Senhor (Fp 2.5-11). Ele é o fundamento da liberdade. Liberdade cristã se origina nele e por ele se orienta. Não há como renunciar a esse anúncio nem deixar de viver a partir dele sem recair em escravidão (Gl 5.1).

Paulo se sente de tal forma comprometido com esse anúncio, que o ia/ de modo constrangido ou involuntário. Compara-se a um despenseiro (ecônomo, no grego), ou seja, a um escravo encarregado de administrar unia propriedade em nome de seu senhor, sem direito a exigir qualquer forma de retribuição. Se fosse livre para aceitar ou rejeitar a tareia que lhe foi destinada, poderia reclamar um salário. Mas não é o caso, pois faz o seu trabalho como se fosse um escravo. Não significa isso que não esteja convicto do que faz ou que o faça sem alegria. Ao contrário, está de tal forma convicto e alegre, que não quer e não tem como fugir da responsabilidade que lhe foi confiada. Foi totalmente conquistado para a causa que representa.

2.2. A liberdade como renúncia a um direito (v. 18)

Paulo não pode expressar a liberdade deixando de pregar o evangelho, porque nesse caso estaria renunciando ao fundamento de sua liberdade. Mas pode expressá-la no fato de renunciar ao direito que a proclamação lhe assegura, qual seja, receber o sustento das comunidades. O apóstolo diz que essa renúncia é o seu salário. Estranho salário esse que consiste em renunciar ao salário merecido!

Como entender esse paradoxo? Ao referir-se ao salário que consiste em desistir do próprio salário, o apóstolo não está manifestando algum traço sutil de orgulho pessoal ou alguma forma de compensação por ter perseguido a Igreja, muito menos reivindicando alguma forma de mérito ou recompensa junto a Deus. Essa liberdade de renunciar não vem em benefício próprio, mas está a serviço do evangelho. Paulo renuncia à subsistência para não criar qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo (9.12). Que tipo de obstáculo? Há várias respostas possíveis:

1. O apóstolo quer afastar a suspeita de que possa estar transformando a evangelização em comércio lucrativo (2 Co 2.17). Sua postura pastoral, nesse sentido, seria uma expressão eloquente da própria gratuidade do evangelho.

2. Não quer sobrecarregar as comunidades com o seu sustento, dificultando de antemão o acesso dos pobres e fracos ao evangelho (l Ts 2.9), ou discrimi¬nando-os por não poderem colaborar. Isso viria contra o seu propósito de ganhar o maior número possível de pessoas para o evangelho (cf. 9.19).

3. Quer ser um exemplo corretivo para aqueles que tiram falsas consequências do evangelho, deixando de trabalhar em face da parúsia de Cristo e passando a viver às custas de outros (2 Ts 3.1-13).

4. Quer sugerir aos ricos que não vivam às custas dos pobres e escravos. Embora Paulo não o diga em parte alguma, a hipótese faz sentido num mundo em que se despreza o trabalho manual e braçal como coisa de escravos e indigna de pessoas livres.

5. Quer preservar a autonomia para anunciar o evangelho. Esse parece ser o caso específico de Corinto: caso se deixasse sustentar pelos poderosos da comunidade, Paulo sente que poderia comprometer sua liberdade para ensiná-los ou repreendê-los. Onde essa ameaça não existe, ele aceita a ajuda de bom grado (Fp 4.10-20).

2.3. A liberdade para fazer-se servo de todos (vv. 19-23)

Nesse trecho Paulo apresenta uma nova face da liberdade: ela se expressa como capacidade de adaptação a circunstâncias distintas em função do alvo que a norteia.

O v. 19 contém a tese fundamental, elaborada nos versículos seguintes. Ela afirma:

1. O que Paulo é: livre de todos.

2. O que ele faz com sua liberdade: faz-se servo de todos.

3. O que pretende com sua servidão: ganhar o maior número possível de pessoas.

1. A liberdade de Paulo não é uma conquista pessoal. Buscou-a durante muito tempo com esforço próprio, e o que encontrou foi a desilusão a respeito de si mesmo (Rm 7.28), respectivamente a escravidão. Sua liberdade lhe foi presenteada no confronto com o amor libertador de Deus. Paulo é livre porque Deus assim o tornou. Ele é um livre libertado. Trata-se, portanto, de uma liberdade que ele possui em Cristo (Gl 2.4), que vigora onde predomina a lei de Cristo (9.21), respectivamente onde o Espírito do Senhor atua (2 Co 3.17).

Em nosso texto, a liberdade da qual fala o apóstolo também se refere, evidentemente, à independência econômica que ele possui em relação à comunidade. Livre dos laços que poderiam comprometer a pregação do evangelho, ele pode dirigir-se a todos e realizar sua estratégia missionária flexível em relação aos distintos públicos. Mas também essa iniciativa não confere méritos ao apóstolo. Ela é mero reflexo da liberdade que lhe foi outorgada por Deus, assim como a luz da lua é mero reflexo da luz solar.

2. Da liberdade experimentada por Paulo resulta a disposição de tornar-se servo de todos. Esse serviço se concretiza no esforço por considerar o lugar histórico e cultural das pessoas que são alvo do evangelho. Três exemplos servem de ilustração: quando está entre os que vivem sob a lei de Moisés (= os judeus), ele procede como se fosse um judeu e estivesse debaixo da mesma lei, embora em realidade não esteja (cf. Rm 10.4). Ele assim pode proceder porque está sob a graça e livre da lei como meio de salvação (Rm 6.14). Quando está entre os que vivem sem a lei mosaica (= os gentios), ele procede como se vivesse sem lei, embora sua conduta seja determinada por outra lei, a lei de Cristo. Esta consiste em levar as cargas uns dos outros (Gl 6.2) e se resume no amor ao próximo (Gl 5.13-15; Rm 13.8-10). Finalmente, ele se torna um fraco para com os fracos. Hm suma, torna-se tudo para com todos.

Nesse esforço por adaptar-se às circunstâncias, alguns detalhes merecem atenção:

1) Paulo valoriza o lugar vivencial dos que recebem o evangelho. Este eleve encarnar-se na realidade dos destinatários, assim como Deus mesmo, em Jesus Cristo, encarnou-se numa história e cultura concretas. Por conseguinte, não são as pessoas que devem adaptar-se ao evangelizador, e, sim, o contrário.

2) Paulo não se torna um judeu ou gentio, e, sim, como um judeu ou gentio. Valoriza seus costumes e princípios, mostra-se solidário com eles, mas não renuncia à própria identidade. Está entre eles como cristão, como pessoa sujeita à lei de Cristo. A partir disso define a contribuição que tem a dar. Diferente c o caso com os fracos: não só se adapta a eles, mas se torna um deles. O serviço ao evangelho que parece fraqueza, escândalo e loucura o leva a tornar-se um fraco junto aos fracos (2.3; 4.10). K nessa fraqueza que o poder de Deus se faz forte (2 Co 12.9).

3) A adaptação as circunstâncias possui limites. Paulo não diz, como a lógica do texto poderia sugerir, que ele se tornou para os fortes como um forte. Essa adaptação não é possível, porque no entender do apóstolo eia seria uma negação do evangelho, como indica a polêmica com os fortes de Corinto, que em sua arrogância fazem tropeçai- os fracos pelos quais Cristo morreu (8.11). Quando coisas essenciais estão em jogo, Paulo não só não se adapta, como provoca publicamente o conflito em defesa da causa do evangelho (Gl 2.11-21).

3. Cinco vezes Paulo destaca o que pretende com a sua livre servidão: ganhar o maior número possível de pessoas, ou seja, salvar (9.22). O termo ganhar, como em l Pe 3.1, é linguagem missionária. Ele faz lembrar que ninguém é cristão por natureza ou herança e que é necessário confrontar as pessoas com o amor divino. Deus não tem netos — só filhos e filhas. A fé não surge do nada. Ela é fruto da pregação (Rm 10.17), do ensino, do exemplo da testemunha, da solidariedade, da comunhão e de tudo aquilo que possa dar credibilidade ao evangelho. Ganhar as pessoas não significa aliciá-las ou subjugá-las, como muitas vezes se entendeu na história da Igreja. Significa proporcionar a elas a experiência do poder salvador e libertador de Deus por meio da palavra da cruz (1.18). Significa ajudá-las a fazer a magnífica experiência da fé e a fortalecê-la através de uma vida em comunhão, na forma do culto a Deus e do serviço solidário de uns aos outros.

O versículo conclusivo (v. 23) desvia a vista dos que recebem o evangelho em direção àquele que o proclama. Ao adaptar-se às circunstâncias, Paulo não age em benefício próprio, e, sim, a serviço tia aceitação e da efetividade do evangelho, do qual esperar tornar-se participante (e não cooperador, como traduz Almeida). Ao salvar por pura graça, Deus mantém preservada a sua soberania. Ninguém pode dispor da salvação como posse segura. Apenas enquanto dádiva permanente e não domesticada é que o evangelho se torna instrumento do poder salvador e libertador de Deus.

3. Reflexão a caminho da prédica

O texto oferece excelentes possibilidades para a pregação. Corre-se com ele o risco de preparar muito mais comida do que a fome das pessoas é capaz de desejar. Vamos por isso limitar-nos a duas perspectivas centrais.

3.1. A liberdade cristã

A liberdade tornou-se uma das aspirações mais profundas da civilização moderna. Qual a pessoa ou qual a sociedade que não quer viver ou conviver em liberdade? Olhamos, por isso, com ares de indignação e revolta para tempos antigos e recentes de nossa história. Como foi possível que ao longo de séculos a sociedade brasileira tivesse convivido de consciência tranquila com o regime econômico da escravidão? Como foi possível que durante décadas tivesse aceito regimes políticos calcados em ditaduras civis e militares? Como puderam as pessoas conformar-se com regimes que cerceavam sua cidadania, impingindo-lhes o medo, a repressão, a censura, a perseguição, a tortura e a morte?

Entrementes parece que esses terrores e fantasmas foram afugentados de volta para os seus túmulos, de onde nunca poderiam ou deveriam ter saído. Propostas e slogans liberais se multiplicam, oferecendo receitas para que a sociedade finalmente se emancipe e se liberte dos cárceres que durante tanto tempo a mantiveram prisioneira. Estamos experimentando, finalmente, os sabores e benefícios da liberdade.

Será mesmo? Que tipo de liberdade experimenta um pai ou mãe desempregados ou sub-empregados? Quão livres se sentem as pessoas que não têm acesso aos postos de saúde, aos hospitais nem aos recursos mínimos da medicina? Que chances de viver a liberdade possuem as crianças que não podem desenvolver o seu potencial humano e formar uma consciência participativa e crítica? Que condições tiveram os negros de reconstruir suas vidas a partir da abolição da escravatura?

Os exemplos mostram que existe uma condição para o exercício da liber¬dade: a garantia de direitos fundamentais. A liberdade só pode ser plenamente exercida na presença do direito e da justiça. É o que pensava o apóstolo Paulo ao batalhar em favor de seus direitos junto à comunidade de Corinto. É esse também o compromisso da Igreja que vive da mensagem por ele proclamada. Pregação cristã não é legítima e não convence sem o simultâneo empenho em favor dos direitos das pessoas.

Mas de onde se deriva a legitimidade desse direito, que é o pressuposto para o exercício da liberdade? Por sua afinidade com a palavra de Deus revelada na Bíblia, merece lodo o respeito um código humanista como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas a fé cristã deriva esse direito de uma fonte específica: Deus mesmo é a fonte do direito e, por consequência, da liberdade. Fomos criados à sua imagem e semelhança. Pela obra redentora e libertadora de Jesus Cristo fomos resgatados dos poderes que nos escravizam É ele quem da razão, dignidade e sentido à nossa existência. Quem se coloca sob o seu raio de ação é amparado pelo direito que dele deriva e presenteado com a liberdade que dele provém.

O primeiro efeito dessa liberdade presenteada é a libertação de si mesmo. O ser humano é curado de sua miopia que lhe permite enxergar apenas até o próprio umbigo. A pessoa se descobre como membro de um corpo ao qual está solidariamente vinculada. A tristeza de um passa a ser sentida por todos. A alegria de outro contagia os demais. Descobre-se a alegria do serviço espontâneo e voluntário e se é amparado pela solidariedade de outros. Não existem mais escravos para servir e senhores para ser servidos. Existem apenas pessoas que se servem mutuamente, cada uma conforme o dom que recebeu.

Quando se tem o direito assegurado, a experiência da liberdade é capaz de libertar o ser humano da necessidade de utilizá-lo em benefício próprio. Foi o que se verificou com Paulo: renunciou voluntariamente ao sustento merecido para que uma causa maior, o evangelho, seguisse seu curso com maior eficiência. Disso nada entendiam os fortes de Corinto. No momento em que escrevo essa reflexão ouço falar de uma iniciativa interessante que vem sendo exercitada numa cidade do centro-oeste brasileiro: estimulam-se pessoas a solidarizar-se com uma família concreta das periferias, compartilhando com ela parte do tempo, do conhecimento ou até dos rendimentos. As pessoas que participam de tal progra¬ma não sabem dizer quem recebe ou dá mais. Como constatou o apóstolo, há salários, frutos de renúncia e abnegação, que não se podem medir na forma de bens materiais.

3.2. A liberdade na missão

Paulo exercitou a liberdade cristã no campo da evangelização e da missão. Trata-se de tema espinhoso e delicado. Talvez em nenhum outro âmbito se tenha que contar com tanta prepotência, intolerância, preconceitos e exclusivismos. Que o diga a própria história da missão cristã. Como viver a liberdade na missão ou a missão na liberdade? O texto ajuda a definir alguns critérios.

1. O ponto de partida é insofismável: assim como Pedro e João diante do Sinédrio (At 4.20), também Paulo não pode deixar de falar das coisas que viu e ouviu. A tarefa para a qual foi convocado e a mensagem da qual é portador são de tal monta, que ele se sente constrangido e obrigado a falar. A experiência da liberdade produzida pelo evangelho lhe é tão significativa, que ele também não quer silenciar. Realiza sua tarefa com voluntariedade e alegria. Pelas mesmas razões, também a Igreja não tem o direito de escolher se deseja ou não participar da missão de Deus. Assiste-lhe apenas o direito de indagar sobre a maneira mais adequada e legítima de fazê-lo.

2. Que maneira é essa? A obrigação de anunciar o evangelho não significa que se possa ou deva impô-lo às pessoas. O cristão realiza sua tarefa como testemunha, não como comandante de um exército invasor. O evangelho é poder de Deus, não nosso. Não se ajuda ninguém a experimentar a liberdade por meio da imposição. Por isso o testemunho legítimo acontece através da fala que procura convencer, da escuta que procura entender e aprender, do exemplo que procura comunhão, da parceria que cria solidariedade. Podemos aprender muito do modo como Paulo se apresentou em Corinto (2.1-5).

3. Para que o evangelho se torne realmente boa nova de grande alegria, a palavra anunciada não só pode como deve considerar com seriedade o contexto em que é proclamada. Paulo foi capaz de adaptar-se a circunstâncias distintas. Tinha sensibilidade e bom senso para perceber que Deus também se manifesta de outros modos na história (Rm 1.20; 2.13-16). Mas nem por isso renuncia ao testemunho de Cristo. Serve-lhe como critério para discernir onde se pratica verdadeiro culto a Deus e serviço autêntico ao próximo, e onde Deus é degradado a ídolo a serviço de interesses humanos. Onde Deus atua, ali se cria um espaço de liberdade capaz de libertar as pessoas para o amor, o serviço mútuo e o bem comum.

4. Subsídios litúrgicos

Hinos: Hinos do povo de Deus: 176, 196; O povo canta: 56, 58, 70, 146, 154.

Intróito: Vocês foram chamados, irmãos, para serem livres. Mas não deixem que essa liberdade se torne uma desculpa para se deixarem dominar pelos desejos humanos. Ao contrário, que o amor faça que sirvam uns aos outros (Gl 5.13).

Confissão dos pecados: Amado Deus: Tu enviaste a nós o teu Filho para que ele nos libertasse e nos conduzisse pelo caminho da liberdade. Nós, porém, à semelhança de teu povo a caminho da terra prometida, muitas vezes queremos voltar às panelas de carne da terra da escravidão. Tememos o risco da liberdade e os desafios que ela nos propõe. Ou abusamos da liberdade em prejuízo de outros e em benefício próprio, tomando-nos novamente escravos de nós mesmos. Preenche-nos com o teu Espírito, para que ele realize permanentemente em nós a obra de nossa libertação e nos disponha para o serviço em favor de todo o teu povo. Por Jesus Cristo, nosso libertador e Senhor. Amém.

Palavra de graça: O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para salvar muita gente (Mc 10.45).

Oração de coleta: Tua palavra, Senhor, é como a chuva que rega a terra, faz germinar a semente e brotar as plantas que servem de alimento para o leu povo. Permite que ela caia de mansinho sobre nós, penetrando em nossa vida e renovando a fonte de nossa existência. Amém.

Bibliografia

BRAKEMEIER, Gottfried. Os princípios missionários do apóstolo Paulo conforme l Co 9.19-23. In: DREHER, Martin (Ed). Peregrinação. São Leopoldo : Sinodal, 1990. p. 64-74.
FOULKES, Irene. Problemas pastorales en Corinto. San José : DEI, 1996.
SCHRAGE, Wolfgang. Der erste Brief an die Korinther. Solothurn/DüsseldortTNeukirchen-Vluyn : Henziger/Neukirchener, 1995. (Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament).
THEISSEN, Gerd. Os fortes e os fracos em Corinto. In: ID. Sociologia da cristandade primitiva. São Leopoldo : Sinodal, 1987. p. 133-147.
TREIN, Hans A. Auxílio homilético sobre l Coríntios 9.16-23. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1988. v. XIV, p. 264-274.

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


 


Autor(a): Verner Hoefelmann
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: 5º Domingo após Epifania
Testamento: Novo / Livro: Coríntios I / Capitulo: 9 / Versículo Inicial: 16 / Versículo Final: 23
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999 / Volume: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 12122
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