1 João 4.1-11

Auxílio Homilético

04/05/1997

Prédica: 1 João 4.1-11
Leituras: Atos 11.19-30 e João 15.9-17
Autor: Mauro A. Schwalm
Data Litúrgica: 6º. Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 04/05/1997
Proclamar Libertação - Volume: XXII

 

1. Introdução

O texto sugerido para este auxílio homilético contempla dois enfoques temáticos do cap. 4 de l Jo já estudados em separado nos volumes V (4.7-16), IX (4.1-6) e XI (4.7-12) de Proclamar Libertação. Pela primeira vez, portanto, ele é apresentado em PL como texto para pregação integrando parcialmente (1-11) ambas as partes. Os vv. 12-16 (abordados em PL V) na verdade continuam desdobrando o tema do amor, já iniciado no v. 7. Assim, apesar do corte no v. 11, no caso desta proposta (PL 22), a temática do amor (7ss.) é claramente mantida com vistas à pregação. Em PL IX a perícope 4.1-6 é abordada sob a perspectiva de Pentecostes; há uma ênfase na pergunta pela ação do Espírito Santo, além de refletir acerca da problemática relação entre diferentes espíritos. Em PL V (4.7-16) e XI (4.7-12) o enfoque está naturalmente colocado no tema do amor. Em cada um desses estudos também há informações importantes sobre a temática geral da carta e suas motivações.

2. Alguns Aspectos da Pesquisa sobre l João

Há considerável uniformidade entre os pesquisadores na área do Novo Testamento em relação ao fato de que l Jo não se caracteriza propriamente como uma carta, uma vez que estão ausentes aspectos típicos, como introdução e despedida (Lohse, 198; Cullmann, 106). l Jo parece mais ser um tratado dirigido a toda a cristandade, uma espécie de manifesto.' (Kümmel, 574. O grifo é meu.) Já a questão da autoria e do local de redação de l Jo é bem mais complexa. De qualquer forma existe muita proximidade entre a epístola c o Evangelho de João, o que leva a aceitar-se que l Jo tenha se originado no grupo existente em torno do autor do evangelho (Cullmann, 106), à semelhança do que aconteceu com cartas de Paulo (Lohse, 205). Não há como comprovar se Jo é o autor do evangelho quem a escreveu ou não, mas há uma nítida relação de interdependência com o Evangelho de João. Uma rápida olhada nas referências de pé de página, na versão de Almeida, já indica essa interdependência!

A polémica levantada na epístola contra os falsos mestres tem por objetivo alertar a comunidade cristã contra a influência dos mesmos — que ainda persistia —, cujo erro consistia em negar a humanidade de Cristo: deve ter sido um movimento gnóstico entusiástico que oferecia uma cristologia docética (Kümmel, 579). Para este movimento a relação com Deus se dava mediante o conhecimento da doutrina e o afastamento espiritual dás pessoas da dimensão material da existência. Partia-se da ideia dualista de inadequação entre espírito e corpo. Tratava-se de uma espiritualidade desvinculada da vida. Se o sofrimento de Cristo havia sido apenas aparente e não real, conforme afirmava o docetismo, não havia razão para envolver o corpo nas questões espirituais, pois o corpo dizia respeito a questões inferiores, tipicamente humanas. Portanto, bastava amar a Deus; e este amor a Deus seria suficiente para evitar e superar — automaticamente — o pecado (Champlin, 218). Os falsos mestres ensinavam que o mais importante era amar o invisível; que o visível era secundário. João procura destacar que nisto precisamente reside uma incongruência: o amor ao invisível (Deus, a quem não se vê) passa pelo amor ao visível (aquele/aquela que podemos ver, mas que comumente nos negamos a enxergar)! Ursula Krüger chega a falar da 1a Epístola de João como um documento para a Igreja acerca dos limites entre heresia e auto-suficiência em termos de fé (237).

Kümmel sintetiza assim a questão em torno da qual se move a 1a Carta de João:

Os falsos espíritos foram excluídos da comunidade (2,19), mas sua perigosa influência ainda não foi totalmente afastada (4,1 ss). Os traços e os dados que João destaca mostram o que eles desejam e pretendem: ostentam o conhecimento que julgam ter de Deus (4,20), e sua amizade com Deus (1,6; 2,6.9); alegam possuir experiências pneumáticas únicas (4,lss); e pensam estar isentos de pecar (1,8.10). Negam que Jesus é o Cristo (2,22s), o Filho de Deus, tal como é considerado pela primitiva fé cristã (4,15; 5,5.10ss). Rejeitam a confissão de que Jesus veio em plena humanidade histórica, de que ele veio cm carne (4,2), e que sua obra na terra começou com seu batismo c terminou com sua morte (5,6). (Kümmel, 579.)

3. Panorama do Conteúdo da Carta

Ao se fazer uma leitura da 1a Carta de João, alguns aspectos do seu conteúdo merecem destaque, pela sua relevância tanto para a compreensão do todo quanto do trecho que aqui será analisado. No que se segue serão destacados alguns elementos centrais da epístola com vistas à preparação da prédica:

a) Deus é descrito como luz e nele reside a possibilidade do perdão. Também é dito que o principal engano de qualquer pessoa consiste em supor que não tenha pecado (1.5-10). Uma das razões pelas quais João escreve, portanto, e para prevenir do pecado. Mas a sua mensagem não se limita à exortação a respeito do que não deve ser feito (imperativo); muito mais significativo é o fato de que ele comunica também a mensagem graciosa de que em Cristo há a possibilidade de libertação do pecado (indicativo) (2.1-6)!

b) João não pode dar um mandamento novo e diferente, senão apontar para o mandamento que os leitores de sua carta já conhecem, ou seja, que o critério para a vida na comunidade é o amor, o qual implica coerência e adequação entre as palavras e a vivência (2.7-11).

c) João se dirige a pessoas que, ao que tudo indica, estavam conseguindo se manter fiéis ao conteúdo que lhes fora anunciado (2.12-14), mas que precisavam evitar o amor ao mundo (2.15-17). Assim, ele alerta contra os anticristos que surgiram, os quais haviam se apartado da comunidade e procuravam envolvê-la em ensinamento enganoso. A mentira desses anticristos consistia em negar que Jesus é o Cristo (2.18-26)! Segundo João, a comunidade não precisava de outro ensinamento além do que já recebera e com o qual fora ungida pelo Espírito Santo. Permanecer nele é permanecer na verdade; e o critério da vinculação ao Espírito é a prática da justiça, com a explicação de que deve ser assim porque Deus é justo (2.27-29).

d) João sublinha que as pessoas que fazem parte da comunidade cristã devem saber-se filhas de Deus, não idênticas ao mundo nem a ele conformadas (3.1-6; cf. também Ev. de Jo 17.14-21). A recomendação joanina acima destacada de que o cristão não deve amar o mundo precisa ser entendida neste sentido: sem se deixar determinar por suas tendências. Ou seja, o amor do crente em relação ao mundo não é de dependência ou apego, mas de serviço. Em outras palavras: ama-se o mundo enquanto realidade concreta sem, no entanto, se deixar guiar por sua essência (Krüger, 238): trata-se de um amor de doação e não de dependência. É possível depreender isso do contexto das afirmações de João, pois o critério de discernimento entre os filhos de Deus e do Maligno é calcado (mais uma vez) sobre a prática da justiça e sobre o amor (3.7-10). Para João, seguir os caminhos da fé em Cristo implica uma espiritualidade de envolvimento com a vida que se leva neste mundo: doutrina e vivência bebem uma da outra! Para exemplificar, o autor escreve sobre Caim e Abel: odiar o irmão é sinónimo de ser assassino. Apontando para a exigência de relação entre o espiritual e o material, João lembra que é preciso lançar mão dos recursos deste mundo para servir a quem padece necessidade (3.11-24).

e) O amor não é fruto de esforço próprio. Se amamos, é porque Deus nos amou primeiro e nos capacitou para isto pelo seu Espírito. E nisto consiste a proposta de espiritualidade presente no texto: dispor-se a amar o visível como sinal de amor pelo invisível— Aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. (4.12-21.) Outra vez é mencionado um critério para poder considerar-se filho/a de Deus: reconhecer que Cristo é nascido de Deus! Crer nele possibilita a vitória sobre o mundo (5.1-5). E com isto retornamos ao tema apontado no item c), acima.

1) João deseja que seus leitores saibam que têm a vida eterna, e por isso lambem escreveu a carta. Se antes ele escrevera que Deus é justo e que em decorrência seus/suas filhos/as também precisam ser justos/as, mais para o final da carta diz o mesmo pela via negativa: Toda injustiça é pecado! (5.13-17.) Os versículos finais da carta destacam que o mundo jaz no maligno (5. 18-19) e exortam para que os/as integrantes da comunidade cristã se afastem dos ídolos (5.20-21).

4. Deixando o Texto Falar, ou: Ouvir

Um critério de discernimento espiritual — é isto o que os dois primeiros versículos de l Jo 4 nos oferecem! Dirigindo-se aos leitores de sua carta como amados, o autor bíblico propõe: Provai os espíritos! Duas perguntas me ocorrem de imediato: valerá esta ordem também para nós, hoje? E se vale, como e quando devemos realizá-la?

O v. 2 já indica caminhos de resposta: apenas procede de Deus aquele/a que é capaz de confessar a humanidade de Jesus Cristo, a sua encarnação (veja 3., c)/e)). Não reconhecer isto, não crer que Cristo é Deus encarnado no homem Jesus, é sinónimo de afastamento de Deus; é sinónimo de afastamento da verda¬de. Para João, revela-se aí o espírito do anticristo, que vem e que já está no mundo (v. 3). Ele aprofunda e amplia ainda mais essa afirmação (v. 6): quem nos ouve, escreve, tem conhecimento de Deus; mas quem não nos ouve, não é da parte de Deus; está envolto pelo espírito do erro.

Um aspecto problemático vem à tona neste ponto: dependendo do enfoque usado ao fazer a leitura, essa afirmação pode ser aproveitada para legitimar o autoritarismo eclesiástico ou a arrogância pastoral, catequética, doutrinária; pode levar a uma atitude de julgamento prévio daqueles/as que não estão dispostos/as a ouvir o que lhes está sendo comunicado, ou que concedem a si mesmos/as o direito de ouvir criticamente. Não creio que seja este o sentido que João dá à sua recomendação de provar os espíritos (Krüger, 239)! Independentemente das motivações do autor, é fundamental ter presente que ele se referia a circunstâncias muito específicas e concretas! Portanto, é conveniente que nos perguntemos, de maneira autocrítica, pela tendência da pregação que realizamos: é ela libertadora ou opressora? Se as pessoas perdem a vontade de ouvir o que dizemos, é por causa de sua rejeição à mensagem cristã ou por causa do modo como a apresentamos? Obviamente há muitas pessoas que, de fato, não querem ouvir o que o evangelho lhes tem a comunicar. Mas decerto há outras tantas pessoas que não se sentem verdadeiramente animadas por causa de nossas próprias limitações e falhas na comunicação da Palavra, a qual sempre vem embrulhada com nossas próprias preferências. Provar os espíritos, portanto, não nos autoriza a qualquer tipo de atitude arrogante mediante a qual nos sintamos no direito de determinar se o/a outro/a é digno/a — ou não — da promessa revelada pela boa nova do evangelho. (Algo que facilmente acontece quando rotulamos uma pessoa e não conseguimos mais nos libertar do rótulo sob o qual olhamos para ela.)

Os vv. 1-6 dão-nos a sensação de ter sido colocada sob nossos pés uma boa base, um bom alicerce, um referencial cristalino para a espiritualidade. O critério oferecido é claro: a autêntica compreensão de Cristo não pode ignorar que ele foi e é Jesus, Emanuel, Deus conosco (Mt 1.23). A ênfase do autor neste ponto evidencia as dificuldades encontradas pela pregação do evangelho em seu tempo, e que ele pretendia combater. Mas convém que nos perguntemos se este é um problema com o qual nós mesmos nos defrontamos em nossas atividades. Será esta uma questão que deva ser polemizada em nosso trabalho pastoral, catequético, poimênico?

Independentemente de nossas respostas, penso que um aspecto continua muito atual: existe uma tensão entre diferentes tendências espirituais, que não pode ser subestimada. E não só entre cristãos e não-cristãos. No âmbito do próprio cristianismo nos defrontamos com muitas propostas de caminhos, com as quais temos dificuldades de lidar. Mas nesse campo estamos determinados pelos óculos que usamos ao ler a Bíblia... O critério apontado em nosso texto foi suficiente para a problemática com a qual o autor se defrontou. As águas se dividiam mediante a pergunta: quem admite que Cristo veio em carne? Conforme a resposta, sabia-se de que lado cada um/uma estava. Mas os dilemas atuais me parece que vão além. Exigem de nós discernimento ainda mais lapidado! De qualquer forma, a questão não ocupa da mesma maneira as mentes da maioria dos membros das comunidades nos nossos dias, e a simples formulação da pergunta (e a subsequente resposta) não resolveria a questão. Refletir acerca do porquê disto certamente ajudaria a encontrar caminhos para a nossa tarefa homilética! Talvez se deva pregar mais insistentemente acerca do milagre da encarnação enquanto elemento da fé (2o artigo do Credo Apostólico)!

Na sua continuação o texto proposto (vv. 7-11) ajuda a burilar o discernimento ampliando o horizonte do critério: além de confessar claramente a Cristo como Filho de Deus feito carne, a pessoa que a ele está vinculada ama (v. 7)! Parece pouco, mas na verdade sintetiza tudo... Assim, ao mesmo tempo que resolve, dificulta: quem consegue conhecer exatamente todas as significações concretas e práticas do verbo amar?

O autor do texto lembra que Deus é amor, e que todo esforço meu, teu, nosso por amar apenas é possível porque ele nos amou (v. 10) (e nos amou primeiro, v. 19). Reconhecer que Cristo veio em carne (v. 2) e amar na verdade são elementos de um mesmo critério, porque o Cristo encarnado foi dado como propiciação pelos nossos pecados (v. 10), testemunho máximo do amor de Deus por mim, por nós (não apenas pelos outros! Parece-me importante lembrar aqui que Lutero fazia questão de frisar que cada cristão precisa ser capaz de reconhecer a relevância do evangelho em sua própria vida!). O compromisso daí decorrente é: Se Deus nos amou de tal maneira, também nós devemos amar uns aos outros (v. 11). Resta saber como entendemos este uns aos outros. Neste sentido as leituras previstas para o culto no 6Q Domingo da Páscoa contribuem de forma muito significativa para completar a amplitude do evangelho a ser anunciado, revestindo de profundidade ainda maior os dois aspectos temáticos apontados pelo autor da epístola.

No Evangelho de João 15.9-17 encontramos palavras de Jesus Cristo que descrevem o maior sinal de amor concreto e material: dar a vida pelo irmão (sem o condicionar à pergunta a que grupo o/a outro/a pertence)! Neste caso as palavras de Cristo são ainda mais radicais do que as palavras destacadas em l Jo. Ser amigo de Cristo implica fazer o que ele ensinou e vice-versa. Mas não são seus seguidores que o escolhem; é Jesus mesmo quem os escolhe e os envia para dar frutos, frutos marcados pelo amor recíproco (vv. 16-17)! Com esta leitura a comunidade é orientada no sentido de que o principal mandamento é o amor e que a vinculação com Cristo está relacionada com a sua observância (v. 10). Em outras palavras: não há espaço para uma espiritualidade abstrata ou etérea.

Em Atos 11.19-30 é descrita a pregação realizada pelos companheiros de Estêvão, que se dirigiram a várias localidades (Fenícia, Chipre, Antioquia) após o seu martírio, suscitando muitas conversões na dispersão (v. 21). Essa atividade missionária mereceu especial atenção de Barnabé e Paulo, através dos quais os discípulos enviaram ajuda material aos irmãos da Judéia, em face de uma situação de fome generalizada (vv. 29-30). Uma relação importante com o texto da pregação pode ser estabelecida justamente neste último aspecto: a mensagem dos discípulos não ficou unilateralmente presa ao discurso, mas fez-se acompanhar do gesto concreto que sinaliza o cuidado para com quem está carecendo de ajuda (l Jo 4.7-11). Comunica à comunidade que as palavras de Cristo (Jo 15.9-17) estavam sendo guardadas, não num baú, mas na observância prática e concreta!

Não por último, convém destacar elementos estruturais do texto, os quais evidenciam sua intencionalidade. A articulação segue uma sequência de passos argumentativos que compõem uma estrutura na qual elementos distintos estão concatenados de tal maneira que conformam um todo coeso e muito bem emoldurado, apesar de os elementos aparecerem em sequência diferente em ambos os blocos:

a 4.1 — exortação ao discernimento
b 4.2-3 — critério para o discernimento (encarnação)
c 4.4 — rememoração do passado (experiência na fé)
d 4.5-6 — ser de Deus ou do mundo

a 4.7a — exortação ao amor
d 4.7b-8 — ser ou não de Deus
c 4.9-10 — rememoração dos fundamentos da fé (ensino)
b 4.11— critério para a vida cristã (amor)

5. Para a Prédica

1. Obviamente convém explicar para a comunidade um pouco acerca do contexto do surgimento da passagem bíblica em questão: como estava(m) a(s) comunidade(s) e o que João pretendia? Que tipo de problemas estavam sendo enfrentados?

2. Poder-se-ia estabelecer uma relação com a mensagem do texto apontando para semelhanças e diferenças entre aquela(s) comunidade(s) e a nossa situação. O maior peso poderia ser concentrado na questão da convivência de diferentes doutrinas, de diferentes enfoques e compreensões do que é importante ou não no contexto da fé cristã. Uma pergunta muito natural das pessoas nesta situação comumente é: o que é falso e o que é verdadeiro? Como discernir? Certamente deveria aparecer na pregação também a reflexão acerca da nossa própria fé (pregador e comunidade) em relação ao mistério da encarnação! Não por causa do docetismo com o qual João polemizou, mas por causa da nossa compreensão em termos de espiritualidade e vivência cristã!

3. Conforme se procurou articular acima, poderia-se destacar que o texto apresenta dois critérios:

a) reconhecer que Cristo veio em carne, que seu ministério salvador não se limita ao universo da alma, mas inclui o corpo e suas necessidades. Neste ponto lembraria a leitura bíblica de Atos dos Apóstolos: a fé implica diaconia, tanto a nível comunitário como a nível pessoal, individual. Reconhecer a encarnação (v. 2), portanto, não é apenas uma questão de adequação à doutrina da Igreja; é um aspecto constitutivo da fé, cujas repercussões se fazem sentir na vida cotidiana e prática da comunidade de Jesus Cristo. Como lidamos com a confissão do 2o artigo do Credo Apostólico? Confessar a encarnação é apenas hábito dominical ou está integrado na nossa fé cotidiana? Por outro lado, certamente também encontramos muita gente que admite e aceita sem maiores dificuldades o ensinamento bíblico da encarnação de Cristo, mas que não consegue admitir derivações para a sua própria vivência cristã, escondendo-se numa fé de abstrações espiritualizantes. Precisamente quando e onde há carência de noções teológicas claras acerca da encarnação e suas consequências para a existência cristã, se articula uma fé rica em palavras e sentimentos, mas que raramente encontra efetividade nos relacionamentos humanos. Aí torna-se fundamental o segundo critério.

b) O amor de Deus por nós não é um amor distante e meramente teórico; 6 um amor de envolvimento e doação. Pois este amor é modelo e critério para a vida das/dos integrantes da comunidade que lhe pertence (v. 11). Falar sobre o amor é fascinante e simultaneamente problemático, pois é um tema que exige concretizações. Dizer para a comunidade que é preciso amar, diz tudo e não diz nada, pois trata-se de mensagem facilmente domesticável. Justamente ao falar sobre o amor se dividem as ênfases de muitas comunicações da palavra de Deus. Para alguns é amor apenas o êxtase espiritual da fraternidade cristã intracomunitária. Obviamente que esta é uma dimensão do amor. Mas para Jesus Cristo o amor ia além; tinha a ver com as contradições e conflitos da vida. Também não era um estado de espírito que pairava indiferente por sobre as vidas dos eleitos. Era isto o que pensavam os gnósticos-docéticos em relação aos quais João alertava a comunidade; e eles achavam que não tinham pecado, apesar de não derivarem consequências do amor para a sua práxis. Estar no amor também não é sinónimo de pureza moral: quem ama corre o risco de se sujar, pois não seleciona a quem amar (ama para além do universo da lei). Por esta razão o ato de provar os espíritos nunca pode ser absolutizado: Deus pode derrubar de seus tronos os poderosos e exaltar os humildes (Lc 1.52); pode desprezar os doutos e eleger os (supostamente) ignorantes (l Co 1.18-29). Dizer as mesmas palavras não garante que se esteja pensando a mesma coisa, por isso é importante provar os espíritos, mas é preciso evitar que a briga em torno da verdade leve a absolutizações perigosas do próprio ponto de vista. Neste sentido, o ato de provar os espíritos não pode deixar de lado a misericórdia, pois não estamos obrigados a decidir sobre o valor de tudo de forma absoluta; em outras palavras, estamos libertos da necessidade de sermos arrogantes. Assim, além de provar os espíritos dos outros, precisamos provar a nós mesmos, se estamos imbuídos do espírito do amor (Krüger, 236-241). Todos nós precisamos deste ensinamento: nós nunca conseguimos acesso a Deus se junto com esta busca não venha a busca pelo nosso próximo. (Orth, 194.)

4. Ambos os critérios mantêm uma relação de interdependência e mútuo condicionamento: crer na encarnação implica necessariamente agir de forma semelhante; ou seja, o amor não poderá nunca se limitar a um estado de gozo espiritual, mas precisa ser encarnado, precisa ter forma, corpo. Palavras, senti¬mentos, gestos não são grandezas dissociáveis, mas precisam compor uma mesma harmonia. Obviamente que nós não conseguimos sempre associar às palavras os melhores gestos, ou aos gestos as palavras mais adequadas; também nem sempre estamos imbuídos dos melhores sentimentos... E justamente por causa disto podemos contar com a possibilidade do perdão dos pecados! E este é um aspecto importante da mensagem da epístola: sem justificar o pecado, ela não ignora a sua realidade e aponta para a perspectiva libertadora do mesmo (l Jo 2.1; 4.9). li isto diz respeito não apenas ao/à outro/a; diz respeito a mim/nós! A predica deverá cuidar para não passar aos ouvintes a noção de que fé e amor se resumem a certos estilos preestabelecidos de piedade, como se pudéssemos eliminar o pecado e supostas impurezas morais de nosso cotidiano. Antes, deve¬ria sublinhar a possibilidade de renovação advinda do perdão, a ser experimentado no dia-a-dia. Ou seja, enfatizar o convite para viver a partir do anúncio da redenção e não a partir do medo da condenação!

6. Subsídios Litúrgicos

a) Para o intróito sugiro a leitura do Salmo 62.5-8.

b) A confissão de pecados poderia tematizar, entre outros aspectos, nossas limitações e dificuldades em dar concreticidade à exortação ao discernimento; poderia lembrar nossa facilidade em discernir a respeito dos outros e não a respeito de nós mesmos (Mt 7.3). Poderia confessar nossa fraqueza em perseverar diante de falsos mestres (l Jo 4.4), até mesmo porque nem sempre estamos bem fundados sobre as bases da fé para saber discernir (l Jo 4.9-10).

c) Como louvor para após a absolvição poderia-se ensaiar com a comunidade a canção baseada em l Jo 3.1:
/Vede que grande amor nos tem concedido o nosso pai,/
 /de sermos chamados filhos de Deus!/

d) As leituras para o dia são as já indicadas no corpo deste auxílio homilético.

e) Uma forma plástica de convidar a comunidade para refletir acerca da necessidade de exercitar-se no discernimento poderia ser obtida trazendo para o culto garrafas e latas de rótulos diferentes. Poder-se-ia dialogar alguns minutos acerca da influência dos rótulos nas nossas decisões no supermercado ou na loja. (Este diálogo também poderia ser encenado, antes da prédica.) O aspecto positivo dos rótulos reside em permitir que busquemos logo o que pretendemos. O aspecto negativo consiste no fato de eles nos bloquearem para outras possibilidades e opções. Poder-se-ia lembrar que rótulos bonitos não garantem bons produtos, e que um rótulo nem sempre é garantia de que o produto permaneça inalterado em sua qualidade. Pessoas também têm rótulos, marcas peculiares de sua identidade. Assim também é com as diferentes confissões cristãs e as diferentes tendências religiosas. Como lidamos com esses rótulos? Em que medida eles nos ajudam e/ou atrapalham? Em que medida facilitam ou dificultam o diálogo e o respeito mútuos? Em que medida precisamos deles? Os resultados desse diálogo/reflexão poderiam ser usados para aprofundar a mensagem do texto, cujos critérios apontam para a coesão interna da comunidade (confissão e amor) c sua relação para fora (confissão e amor). Ambos, no entanto, são indissociáveis!

f) Na oração final se deveria poder expressar gratidão pela oferta sempre renovada de perdão através de Jesus Cristo (l Jo 2.1; 4.9), apesar do nosso pecado. Poderia-se interceder pelos obreiros da Igreja, para que atuem como fiéis orientadores da comunidade e não como falsos profetas (l Jo 4.1). Poderia-se interceder também pela comunidade local, para que possa inspirar-se no modelo de Jesus (Jo 15. 9-17) e dos apóstolos (At 11.19-30), dando concreticidade ao amor. Outra possibilidade seria interceder pela ecumene, pedindo por tolerância c respeito mútuos em meio ao pluralismo em que vivemos, sem perder de vista a necessidade do discernimento.

7. Bibliografia

CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo, Milenium. vol. VI, p. 215-221.
CULLMANN, Oscar. A Formação do Novo Testamento. 3. ed. São Leopoldo, Sinodal, 1982. p. 106-107.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 1982. p. 571-585. (Nova Coleção Bíblica, 13).
KRÜGER, Ursula. 1. Johannes 4,1-8: Auf dem Prüfstand. In: KRUSCHE, Peter et al., eds. Predigtstudien zur Perikopenreihe VI; 2. Halbband. Stuttgart, Kreuz, 1978. p. 236-241.
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo, Sinodal. p. 197-206.
ORTH, Gerhard. 1. Johannes 4,7-12: Brücken. In: KRUSCHE, Peter et al., eds. Predigtstudien zur Perikopenreihe II; 2. Halbband. Stuttgart, Kreuz, 1980. p. 191-197.


Autor(a): Mauro Alberto Schwalm
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 6º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: João I / Capitulo: 4 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 11
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1996 / Volume: 22
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17664
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Mal tenho começado a crer. Em coisas de fé, vou ter que ser aprendiz até morrer.
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