1 João 5.1-6

Auxílio homilético

06/04/1997

Prédica: 1 João 5.1-6
Leituras: Atos 3.13-15,17-26 e João 20.19-31
Autor: Edson Edílio Streck
Data Litúrgica: 2º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 06/04/1997
Proclamar Libertação - Volume: XXII

 

1. Introdução

Antes de partir para um estudo mais detalhado dessas perícopes, em especial do texto-base da prédica, e bem antes de preocupar-se com detalhes da pregação, proponho que cada pregador/a torne-se, em primeiro lugar, um/a ouvinte do texto. Basta ler o texto, p. ex., em todas as versões que estiverem a seu alcance, para perceber o quanto ele fala por si. Para o cristão, para a Igreja, é tão óbvio o que o texto traz, que se torna difícil, desnecessário até, acrescentar-lhe algo. Mas não é sobre o óbvio que temos que falar a todo instante, sobretudo na Igreja, pelo simples fato de constatarmos o quanto é difícil o óbvio acontecer?

Esses textos estão previstos para o 2a Domingo da Páscoa. Ainda ecoa nos ouvidos, portanto, a recente informação de que Jesus foi ressuscitado por Deus. A morte, que mantinha a palavra final sobre a vida humana e ditava as regras no mundo, acaba definitivamente derrotada.
E daí? O que mudou, na minha vida, a partir dessa notícia? O que há de diferente na vida da comunidade, a partir da prédica do domingo que passou? Em que sinais na história da Igreja se percebe algo de novo, a partir desse fato? E o mundo em que vivemos: apresenta melhores condições de vida que atestem que a morte não tem a palavra final?

É difícil apontar, com tanta rapidez e com tamanha evidência, sinais da Páscoa no mundo em que vivemos. Mais do que perceber sinais de vitória sobre as leis que regem o mundo, é provável que essas perguntas nos levem a constatar cansaço ou estagnação em nossa vida pessoal e em nossa vida em comunidade.

E importante saber que esta carta se destina a uma comunidade cristã que vive no início da história da Igreja. É escrita, portanto, a uma comunidade bem mais próxima da notícia de que com a ressurreição de Jesus uma nova e definitiva luz irrompeu no mundo para transformá-lo. E esta carta traz o óbvio, porque já, e também, naquela comunidade o óbvio não acontece.

A comunidade à qual se dirige a carta está dividida por questões teológicas internas. Todas as pessoas que integram a comunidade confessam crer em Jesus. Todas confessam amar a Deus. Mas as consequências de sua fé são diferentes. O amor que brota dessa fé se revela de forma distinta. Como medir, pois, a fé autêntica? Como atestar, pois, o amor verdadeiro? Não é este um drama que nos atormenta ao longo da história da Igreja, até hoje?

Em vários momentos desta carta, inclusive neste texto, se lê que há critérios que apontam para a fé autêntica. Em seu início, esta perícope indica: (...) porque todo aquele que ama a quem o gerou, ama a quem dele/dela foi gerado (5.1b). Em outras palavras: quem tem amor por seu pai e/ou sua mãe, ama os filhos e as filhas por ele/ela gerados. Ama, portanto, seus próprios irmãos e irmãs; pois, pela ótica de Deus, que nos tem como filhos e filhas, somos irmãos e irmãs. Deus não nos trata como filho único ou como filhas que exigem exclusividade. Ele nos quer como a uma família, em que irmãs e irmãos se ajudam mutuamente.

Quando vemos um filho ou filha de uma pessoa conhecida, é comum comentarmos: É a cara da mãe!, ou: Tem as feições do pai! Assim Deus quer que vejamos refletida, no rosto de cada pessoa, a imagem do nosso Criador. Jesus nos ensina a nos dirigirmos em oração ao Pai nosso; não, ao meu Pai. Minha vida, meu relacionamento com as pessoas, a vida em comu¬nidade, tudo muda — se nós conseguirmos nos olhar e confessar: Mas é a imagem de Deus que se refle te em você! Você e eu somos filhos de Deus. O autor desta carta o confessa: Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, ao ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus.'' (l Jo 3.1a.)

Dar esse passo é decisivo. Não é o suficiente, porém, porque corremos o risco de permanecermos restritos à convivência com as pessoas que consideramos iguais. Amor aos amigos é fácil. Quem não o pratica? Amar o inimigo, ver na pessoa que é diferente a imagem de Deus, ver na pessoa que tem ideias e posturas opostas às minhas o rosto do Pai que nos é comum: este caminho é difícil. Mas este é o desafio trazido por Jesus, se quisermos — pela fé — vencer o mundo. A confissão de que somos irmãs e irmãos nos leva, portanto, para além de nossos relacionamentos habituais, nos encaminha às pessoas que nos estão mais próximas e passam por dificuldades.

A partir da Páscoa, a vida dos discípulos de Jesus ganha novo rumo. A partir de Pentecostes, com o envio do Espírito Santo (cf. a leitura do Evangelho), o testemunho dos apóstolos leva à formação de novas comunidades. Cristãos dão seus primeiros passos. A Igreja inicia sua caminhada. No antigo calendário da Igreja, o nome dado ao primeiro domingo após a Páscoa lembrava esse falo: Quasimodogenití. Os cristãos e a própria Igreja são quase como crianças recém-nascidas.

Em toda a existência, sobretudo no início da caminhada, a fé é essencial. Quando ensaia seus primeiros passos, a criança somente arrisca andai quando se amparada por uma mão ou até por um dedinho da mão da pessoa em que confia, li ela arrisca seus primeiros passos por conta própria, soltando-se das duas mãos que a encaixam, somente no momento em que tem — bem visíveis e próximas — as outras duas mãos à sua frente, que a esperam para o abraço. Ela parte de um espaço em que se sente segura, em direção ao novo e com os próprios pés, quando sente a confiança necessária na pessoa que a acolhe. Algo semelhante ocorre com a Igreja, com cada cristão, no início de sua caminhada: a fé é essencial. Com fé em Deus, que envia e aguarda, as pessoas cristãs e a Igreja se projetam no mundo. Crêem no Deus que era, é e será; no Alfa e Ômega, que estava no princípio, está ao longo de toda a História e estará no fim.

1. Crer

Tema central desta perícope — na delimitação que lhe foi dada — é a confissão de fé. O texto inicia com uma confissão de fé: Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo... (5.1a). Gira em torno das consequências práticas da confissão Jesus é o Cristo. E conclui com a afirmação (apesar de ser em tom de pergunta): Quem é que vence o mundo senão aquela pessoa que crê que Jesus é o Filho de Deus? (5.5.) A partir da confissão de fé, em torno dela e para ela, flui todo o texto.

Uma corrente se compõe de diversos elos: um elo se engancha no próximo; este se prende a outro, que se liga a um novo elo. E assim os elos se sucedem. Unidos, os elos de uma corrente se sustentam, formando uma unidade. Pois esta perícope é como uma corrente. Sua construção revela uma lógica interna: um tema conduz a outro; este, ao mesmo tempo em que se alimenta do anterior, já leva ao próximo. Todos os temas se sustentam mutuamente e formam um todo coeso.

A fé se encontra no início e no fim desta perícope. É ponto de partida para a ação da Igreja e de cada cristão. Está presente a cada momento de sua vida.

De que fé se trata? O autor da epístola volta-se contra posturas gnósticas que havia na comunidade: contra um amor sem consequências, contra um amor metafísico dirigido ao além. Em Jesus, o Verbo se fez carne. O texto não deixa dúvidas a respeito do aspecto essencial: a encarnação de Jesus.

Segundo Helmut Gollwitzer, confissões de fé que não têrn como consequência transformações terrenas e profundas na sociedade não passam de uma questão particular que traz satisfação pessoal; estas, se ainda são toleradas, é por serem irrelevantes e inofensivas. Aos gnósticos interessava separar Deus e o mundo, ao máximo. Por isso aceitavam Cristo como um ser espiritual. Não sabiam como lidar com o fato da encarnação. O Cristo que veneravam não tinha nada a ver, em princípio, com Jesus de Nazaré.

Vence o mundo, diz o autor da epístola, quem confessa que Jesus é o Cristo. O texto não afirma quem crê em Jesus Cristo, mas destaca: quem crêque Jesus é o Cristo. Este detalhe revela a importância da encarnação. Ao destacar o nome terreno de Jesus, aponta para sua humanidade: nascimento, vida e morte na cruz. Ligar este Jesus ao Cristo, como confissão de fé, significa crer nele como Filho de Deus, como o Messias tão esperado. Neste Jesus que nasceu, atuou e foi crucificado, Deus se revelou de forma plena. Este Jesus foi Deus entre nós. Nele o Verbo se fez carne. Foi nosso irmão, revelando que somos filhas e filhos de Deus.

Daí essa afirmação de princípio e de forma tão categórica. De acordo com H. Schröer, simplifica tudo aquele que aceita apenas o Jesus imaculado, que não apresenta manchas de sangue. Simplifica tudo aquele que tem Jesus apenas como uma linda imagem, uma boa ideia, um princípio manso e suave ou um símbolo harmonioso. Torna-se triste e melancólico, por outro lado, aquele que acentua apenas o Jesus manchado de sangue, o Jesus que não sorri, que não teve infância, que não praticou milagres.

Nesse Jesus de Nazaré que é o Cristo (5.1), que é o Filho de Deus (5.5), se concentra toda a ação de Deus. Nele se resume toda a nossa esperança. Não é por esforço próprio que venceremos o mundo, mas pelo poder que vem dessa fé.

2. Amar

Base e fonte de meu amor é o amor de quem me gerou: Deus nos amou primeiro (4.19). Quem determina meu amor é meu irmão e minha irmã, a quem, em sua necessidade (3.17), ele se destina. Amo a outra pessoa porque creio que ela, como eu, é nascida de Deus. Creio no amor de Deus que me criou e mantém. Esta fé me liberta para amar as pessoas como irmãs.

Amor ao amigo não apresenta riscos. Amar somente as pessoas de um círculo próximo traz poucos riscos. Amar num âmbito maior, como o da sociedade, com o objetivo de transformá-la, apresenta uma série de riscos. Amar sem a garantia das fronteiras que dão segurança expõe a quem ousa amar. E quem se expõe corre riscos. Amar apostando toda a esperança num mundo mais justo é arriscar. É arriscar-se. É dar nossa vida pelos irmãos (3.16).

A mitologia grega conta inúmeras histórias de amor. Uma é especial: a história de Narciso. Contam os antigos gregos que o jovem e belo Narciso rejeitou o amor de uma ninfa. A deusa Afrodite aplicou-lhe um castigo: despertou nele o amor próprio. Ao beber água de um riacho, Narciso se debruçou e viu sua imagem refletida na água. Apaixonou-se pelo que via: a si mesmo. Como ele jamais poderia ter o objeto de seu amor, Narciso — entregue à paixão por si mesmo — definhou lentamente à beira do riacho, até que dele nasceu a flor que conhecemos pelo nome de narciso.

Amor próprio é amor que faz definhar e leva à morte. Se o amor cristão também consome a vida, o faz por doação e traz possibilidade de vida para muitos. É real. Esse amor não exige que a outra pessoa venha a ser como eu quero que ela seja. Esta ainda seria uma forma de narcisismo, de amor próprio, porque eu amaria minha própria imagem refletida na outra pessoa. Ò amor cristão não leva a outra pessoa a ser o que ela gostaria de ser. Seria altruísmo praticado de forma acrítica. O amor cristão leva a outra pessoa a ser como Deus quer que ela seja: um ser humano criado à sua imagem.

O amor também se dirige à natureza, por ser criação de Deus, com o objetivo de vencer o caos que se instalou no mundo. O paraíso não é uma vaga lembrança do passado. É esperança que me atrai a partir do futuro e ao mesmo tempo para ele me projeta, levando-me a ações concretas e eficazes no presente. A integridade da criação, como projeto de Deus para o mundo, não está somente nos primeiros capítulos do primeiro livro da Bíblia; encontra-se também nos últimos capítulos do último livro. E perpassa toda a Bíblia.

3. Praticar

Não há amor a Deus que não se manifeste concretamente na vida das outras pessoas, em especial das mais necessitadas. Esta epístola registra este fato em vários momentos. Neste texto, o autor anima a praticar os mandamentos de Deus (5.2) e guardar os seus mandamentos (5.3). A palavra mandamento dificulta a interpretação correta, pois pode trazer a associação de que devemos obedecer a quem nos manda fazer algo. E se não obedecermos, receberemos castigo. Agimos, então, movidos pelo medo do castigo e pelo desejo de agradar a Deus. Esta compreensão nos leva a cumprir os mandamentos mais por amor próprio do que por amor ao próximo. Amar, assim, torna-se algo pesado, passa a ser um fardo penoso.

O texto afirma, porém, que os mandamentos de Deus não são penosos. Se está claro em nossa vida que Deus nos amou primeiro, toda a nossa ação será consequência deste amor. Os gestos de amor são, portanto, movidos pela gratidão a Deus. São atos de liberdade, em favor do próximo.

Os mandamentos de Deus não são lei, mas apontam possibilidades concretas de amar. Confissão de fé e prática dos mandamentos são inseparáveis: não há como dissociar dogmática e ética.

Não se trata de amar por amar. O cristão sabe por que ama. Este saber, que lhe dá um poder incomum, o leva à persistência na luta e lhe dá a esperança de vencer as adversidades.

4. Vencer

O que provoca nossas crises? Melhor: o que nos ajuda a vencer nossas crises? Estas perguntas, em especial a segunda, podem ser um bom início para a prédica. É importante que pessoas da comunidade tenham a possibilidade de relatar suas experiências: cabe a quem prega avaliar se convém colher relatos nas semanas anteriores e adaptá-los com o devido cuidado na prédica ou permitir que sejam expostos na hora da pregação.

De que vitória fala o texto? Não se trata da vitória que costumamos festejar, em jogos, disputas, campeonatos, eleições... Neste caso sempre se trata de vitória de alguns sobre outros, em geral de grupos minoritários sobre a maioria. Para que uma equipe vença o campeonato, várias amargam derrotas. Para que um partido se torne vencedor, em geral a maior parte do povo deve se conformar a perder. Essas vitórias trazem opressão de alguns sobre muitos. Este é um reflexo da vitória ao estilo do mundo. Nossa sociedade traz, com fartura, dados neste sentido. Basta analisar os dados da distribuição da terra e da renda em nosso país: minorias se julgam vencedoras, porque detêm a maior parte dos bens.

A vitória à qual o texto se refere fala justamente do oposto desse modelo de competição. A vitória é resultado da luta à qual Deus nos envia: ela provém da luta pela justiça, é fruto da luta pela paz, pela integridade da criação. Como alcançá-la? Os mandamentos indicam o caminho. Essa vitória, sim, será sinônimo de alegria para a maioria, porque traz vida, vida plena, vida em abundância.

O mundo que deve ser vencido, em João, é o poder que se coloca contra Deus e não permite que o cosmo siga o modelo da criação divina. Não se trata, portanto, de sair do mundo; pelo contrário, importa envolver-se nele, para transformá-lo. Trata-se de recriá-lo continuamente, com o poder que recebemos para tal do próprio Criador. Enquanto não vivermos o reino de Deus em sua plenitude, Deus nos anima a lutarmos por transformações, para que a vida não seja mais difícil do que o necessário, mas tão justa e bela quanto possível.


Autor(a): Edson Edilio Streck
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 2º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: João I / Capitulo: 5 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 6
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1996 / Volume: 22
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13073
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