1 Reis 17.17-24

Auxílio homilético

20/06/2004

Prédica: 1 Reis 17.17-24
Leituras: Lucas 7.11-17 e Gálatas 1.11-24
Autor: Elaine Gleci Neuenfeldt
Data Litúrgica: 3º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/6/2004
Proclamar Libertação - Volume: XXIX


1. Livro de Reis

1 e 2 Reis narram a história do reinado israelita, de 962 a.C., a partir da morte de Davi, até 560 a.C., com o exílio e a queda de Judá. Os dois livros fazem parte da Obra Historiográfica Deuteronomística (de Josué até Reis). Seu principal tema teológico está centrado na punição (militar) aos desvios de fé, ou seja, com a obediência conquista-se o favor de Deus, mas a desobediência traz rejeição e castigo. Com esta perspectiva o deuteronomista relê toda a história desde os tempos da tomada da terra até a queda da monarquia.

Os blocos narrativos se referem ao desenvolvimento da monarquia, tanto no sul como no norte, de forma sincrônica, trazendo informações sobre a duração e o julgamento de ambos os reinados. Há uma atribuição de culpa pelos pecados aos líderes do povo, reis e alguns sacerdotes. Mas há também uma vasta argumentação a favor da monarquia e da legitimidade dos reis, especialmente Davi e Josias. Essas tensões temáticas podem refletir que o produto literário é fruto do trabalho de várias autorias e tradições. Mas se deve levar em conta a forte influência do reinado de Josias com as suas propostas de reformas e defesas da centralização e unicidade do culto e do templo, garantindo assim a governabilidade baseada em cobranças de impostos e centralização do poder político em Jerusalém.

Nas narrativas dos livros de Reis, observamos o gradativo obscurecimento do protagonismo das mulheres e de setores populares. O processo de centralização dos poderes na monarquia restringe o espaço de setores sociais, como o campesinato, as mulheres e, entre estas, as viúvas, as crianças e outros grupos que são excluídos. O empobrecimento e o desempoderamento desses grupos sociais produzem igualmente o ímpeto ou a base para histórias sobre os milagres dos profetas. As histórias de milagres de cura, de restituição da vida ou de providência/multiplicação de comida têm seu lugar social ligado ao âmbito da casa e não do templo e aos espaços dos grupos excluídos pelos poderes dominantes da monarquia, tanto religiosos como políticos e econômicos.

Os capítulos 17 a 22 de 1 Rs tratam da luta de Onri, filho de Acabe, e de sua mulher fenícia Jezabel contra os profetas Elias e Micaías. Algumas temáticas são recorrentes neste bloco, como a idolatria do grupo ligado ao palácio (rei, rainha e elite), a perseguição aos profetas e os “milagres” na prática profética de Elias. Há uma simultaneidade de temas entre os relatos ligados a Elias e Eliseu (2 Rs). Parece que ambas as tradições influenciaram-se mutuamente, complementando e harmonizando conteúdos.

2. Comentando os detalhes do texto

v. 17-18 – Aqui está presente a idéia de que a doença é decorrente de punição divina por algum pecado obscuro. A manifestação da doença se daria por causa da incompatibilidade da presença do “Homem de Deus”, que representa uma expressão do sagrado, com outros poderes responsáveis pela enfermidade no corpo.

No Antigo Testamento, encontramos diferentes posições acerca da demarcação entre a vida e a morte. A morte pode significar uma forma frágil e fraca de vida, que se estende por um período mais prolongado, mas de onde é possível retornar à vida. Esta concepção pode estar evidente no v. 17, que diz que o filho da mulher ficou muito doente, tão doente que não permaneceu nele nenhuma força de vida, nenhum alento (neshama).

v. 21 – Elias se debruça três vezes sobre o corpo do menino. Em 2 Rs 4.34, com Eliseu, temos mais detalhes desse ritual. Lá diz que a boca está sobre a boca, olhos sobre os olhos e mãos sobre as mãos, ritual que volta a aquecer o menino. Parece tratar-se de uma prática mágica de contato, conhecida na Mesopotâmia e em Canaã. O ritual consistia em colocar um animal ou uma imagem de barro sobre o corpo da pessoa doente. Com essa performance esperava-se que a doença passasse do corpo doente para o objeto ou para o corpo sadio de outra pessoa. Há uma possível referência similar ainda no Novo Testamento, em At 20. 9-10, onde Êutico cai e parece morto. Paulo inclina-se sobre ele, abraça-o e diz que a vida está nele.

v. 22 – Diz que a nefesh do menino entrou nele de novo e teve vida ou reviveu da doença. Nefesh é traduzido aqui como alma; pode significar respiração, alento, força vital. O verbo que é traduzido como reviveu (wayehi) tem um campo semântico que significa viver, estar vivo, ter vida, viver bem/feliz, recuperar a saúde, ficar são. Situações análogas são encontradas em Jz 15.19, onde Sansão, depois de beber água, revive ou recobra alento. Também em 2 Rs 13. 21, o verbo significa pôr-se de pé. Em Ez 37.5, a situação é semelhante, pois Deus fará entrar o espírito em ossos secos, que irão reviver.

A profecia no cotidiano – corpos de crianças restabelecidos para a vida

O texto traz a história de uma mãe e de um menino que passam por dificuldades. Já no bloco anterior ao nosso texto, nos v. 8 a 16, temos a história com a viúva e sua situação de pobreza e falta de comida, mas que atende o profeta numa atitude hospitaleira e solidária. O milagre da farinha na panela e do azeite na botija, que não mais acabarão, é o que fecha esse momento de partilha entre a profecia e a casa, o cotidiano da mulher e do menino entrelaçado com a vida e a atuação do profeta.

O nosso texto fala de um novo momento. Até já há comida, mas o corpo debilitado adoece. A doença se manifesta na casa e no cotidiano do menino. O profeta atua mais uma vez nesse espaço a partir da realidade que se lhe apresenta. Não se desloca para nenhum outro espaço, a não ser dentro da casa. Os instrumentos que o “homem de Deus” utiliza estão juntos dele. Seu corpo toca o corpo frágil da criança. Neste toque é que acontece a manifestação do sagrado, do divino, da cura.

As palavras que a mulher profere ao ver seu filho com a vida restabelecida consistem numa confissão de fé (v. 24). Ela reconhece que o profeta é homem de Deus e que a palavra de Deus em sua boca é verdade. O testemunho e o reconhecimento se dão a partir do contato corporal, da cura, da restituição da vida, das relações na casa da mulher. Seu filho é o que lhe garante a continuidade da casa, do sustento e da proteção. A profecia é reconhecida quando responde às necessidades concretas das pessoas em seus corpos, em suas vidas. A fé é testemunhada em meio a panelas compartilhadas e corpos que recobrem vida.

O primeiro momento crucial do encontro do homem de Deus com a viúva é quando ela oferta a solidariedade. Ela compartilha o pouco para que todos tenham comida. Para que a palavra de Deus seja anunciada e reconhecida como verdade, a ação solidária da viúva é fundamental. Um segundo momento é a continuidade da falta em sua casa. Falta de saúde. Falta de vida em plenitude. Seu menino, a parte mais frágil, o mais exposto aos males da fome, sofre, padece em seu corpo.

A cura/restituição da vida no corpo do menino é o gesto do homem de Deus. A cura e o restabelecimento do menino são fundamentais para a continuidade da sobrevivência do grupo familiar. A lei proíbe o contato com os cadáveres por causa da impureza. A solidariedade impele aos contatos corporais entre vivos, de vivos com mortos. A vida está acima da lei. A vida em todas as suas relações é sinal da presença e testemunho da palavra verdadeira na boca do homem de Deus.

Estas faces da manifestação do divino nos corpos das pessoas é conformadora da religião e da profecia de Elias. Tocar os corpos doentes, restabelecer vidas, encher panelas vazias caracterizam um jeito de fazer religião na época de Elias. É uma religião que entra na casa, na cozinha, no cotidiano e se mistura com esses espaços.

É uma manifestação da experiência religiosa além dos limites do templo, do lugar único e centralizado onde o divino deve se manifestar. A profecia de Elias não se prende a limites institucionais (templo) nem geográficos: Sarepta pertence a Sidom, a mesma terra de onde veio a rainha Jezabel, acusada pelo deuteronomista de trazer a idolatria para Israel. O texto em estudo parece ser memória popular, em que os personagens representam os grupos excluídos pelo sistema monárquico. Uma mulher viúva, estrangeira, e uma criança, submergidas numa situação de doença/morte, são a base e a experiência que geram a conversão e o testemunho da fé. É uma religiosidade que se desenvolve nos gestos, nas coisas, nas pessoas e nos corpos. Uma religião experimentada no cotidiano, por gente simples, pobre, sem nome, excluída dos embates institucionais. É a luta contra a idolatria a partir do âmbito da casa, do cotidiano. É na casa, nos corpos de crianças doentes, morrendo, que os mecanismos de opressão econômica podem ser percebidos.

A profecia de Elias, seu encontro com a viúva e o abraço vivificador com o menino são alternativas de resistência gestadas nos grupos populares, com experiências religiosas variadas, misturadas com a vida e o dia-a-dia. O texto evidencia práticas religiosas de grupos populares que se articulam como resistência à monarquia (o rei Acabe) e à idolatria (a rainha Jezabel).

A proposta é ver essas práticas como costumeiras e habituais, inseridas nas diferentes formas de manifestar a fé naquela época. Ou seja, rituais ligados ao mundo doméstico, da casa, das mulheres, não consistem em algo de fora, tomado de outras culturas e religiões. Mas é um jeito de profetizar, de dizer a palavra de Deus, que é verdade na boca de quem a fala dessa forma. Não há um modelo uniforme de profecia. Há uma multiplicidade e pluralidade de jeitos e formas. A uniformização é, muitas vezes, pretensão e abordagem da pessoa exegeta, da teóloga, do teólogo, do pastor, da pastora.

Isso não significa adotar uma postura acrítica que relativiza tudo, que permite tudo. O que proponho é adotar uma postura de abertura para entender outras manifestações de fé, que não as costumeiras, as do nosso domínio, as que já conhecemos e sabemos de cor. Antes de emitir juízos de valor, é preciso entender, conhecer, ouvir e estar aberto para o diferente, o novo. E lembremos do que já é muito conhecido: o diferente não precisa necessariamente ser o contrário. Mas a diferença é o que dá novas possibilidades, é o que aponta outros caminhos aos já conhecidos e trilhados.

O desafio é re/ler essa história como memória/testemunho/orientação na caminhada. Se os livros dos Reis refletem, na maioria de seus textos, a versão da oficialidade, da elite religiosa, política, econômica e social, numa tentativa de homogeneização e harmonização da fé javista, o desafio é ler nas entrelinhas, nos vazios e nas contradições a memória dos grupos e setores excluídos da sociedade.

3. As leituras

Lc 7.11-17 – A ressurreição do filho da viúva de Naim. A semelhança com o texto de 1 Rs 17 é evidente. Uma mulher, viúva, perde o filho. Numa sociedade patriarcal, o filho é o que lhe garante proteção e vínculo de relações familiares. Jesus se compadece ao passar pelo enterro. Interessante é que o texto não registra nenhum apelo ou pedido da mulher. Jesus toca o esquife e pede que o jovem, que está morto, se levante. Este se levanta e começa a falar. O texto diz que Jesus restituiu o menino à sua mãe. E a notícia é divulgada por toda a circunvizinhança. Aqui a missão acontece com uma intervenção de Jesus numa situação-limite, de morte e exclusão do meio social que essa viúva e seu filho sofrem. A restituição da vida, em primeiro lugar, mas o restabelecimento das relações no grupo e na vida comunitária é o que estabelece o lugar da prática de Jesus. A notícia é divulgada, a boa nova é contada, o evangelho de vida é anunciado nos arredores.

Gl 1.11-24 – As boas novas anunciadas por Paulo não são segundo o anthropos, o ser humano, porque ele não o aprendeu de ser humano, mas mediante a revelação de Jesus Cristo. A partir dessa revelação Paulo prega não aos de Jerusalém, mas aos gentios nas regiões da Arábia e Damasco. A missão, segundo esse texto de Gálatas, acontece entre os que pensam diferente, os “gentios”, fora do âmbito da comunidade.

4. Pistas para contextualização/pregação

Sugiro enfocar a prédica a partir de dois aspectos, que foram levantados na reflexão: a solidariedade que cura, que promove o restabelecimento das relações e da vida, e a religião, a experiência de fé que é misturada/exercitada a partir do cotidiano, das realidades mais gritantes e presentes na vida, no dia-a-dia das pessoas.

Há várias possibilidades de praticar a solidariedade concretamente na comunidade: abraços, carinhos, afetos, visitas a pessoas doentes, deprimidas, enlutadas, mas também compartilhando alimentos e roupas, especialmente em campanhas, promovendo projetos diaconais concretos, participando e efetivando a cidadania. A cura é concretizada por meio de ações e intervenções humanas. Estas práticas podem ser efetivadas através de grupos de ajuda mútua, de visitação, de consolo a pessoas em dificuldades, enlutadas, depressivas – grupos que, como Jesus no caso da viúva de Naim, vão ao encontro, não esperam ser interpelados, convocados para agir.

Profecia implica estar atento às falas/expressões dos corpos de mulheres, de crianças, de grupos excluídos do poder econômico, político e religioso. Promover e testemunhar a fé, fazer missão e efetivar o compromisso, como comunidade cristã, implica acolher, gerar espaços de encontro, buscar saídas conjuntas para situações de crises, tanto individuais como coletivas, que são experimentadas na comunidade e na sociedade. Missão tem a ver com ações concretas no seio da comunidade e fora do âmbito da mesma.

Uma concepção da experiência religiosa vivida dessa forma mais uma vez comprova que a teologia (o falar sobre Deus) é ato secundário. Primeiro vêm a fome, a morte, a seca, a acolhida, a solidariedade, a panela, a farinha, enfim, a vida em suas mais intrincadas relações. Depois vêm o reconhecimento, o conhecer e dizer que sim, proferir e aceitar com fé. Converter. Transformar.

O que proponho é não seguir com alternativas que se excluem, do tipo: ou se faz ação social/diaconal ou se vivem a espiritualidade, a oração – mas que estas experiências sejam cada vez mais integradas. Que a oração, o momento de louvor e o culto estejam misturados ou brotem a partir das experiências concretas de ações solidárias que se vivem, se experimentam na comunidade. Nomear essas experiências já é um exercício de auto-estima na vida de fé da comunidade e dos grupos que trabalham nessas práticas. Cada gesto, por menor que seja, por mais cotidiano que pareça, pode ser um convite para a integração, para a convivência, para a acolhida. É com gestos que a profecia é efetivada. É com gestos que a fé é feita concreta na vida das pessoas. Dessa forma se promove a vivência de uma comunidade inclusiva. Comunidade inclusiva é aquela que acolhe outras formas de manifestar a fé. Formas não tão costumeiras, diferentes, que não precisam ser contrapostas, mas que ampliam as possibilidades da Palavra se fazer verdade e concreta no meio de nós.

Assim se concretiza a missão. Esta tem a ver com diálogo, com as palavras que saem da boca e são reconhecidas como palavras de Deus, com gestos e atitudes concretas. Missão tem a ver com relações, com o corpo a corpo.

5. Subsídios litúrgicos

Intróito – Salmo 146

Bênção e envio –
Deus, tu és nossa fortaleza;
A audácia do teu Espírito nos transforme;
A bondade do teu Espírito nos guie; os dons de teu Espírito nos fortaleçam e nos enviem ao mundo.
Por Jesus Cristo, teu Filho e nosso irmão. Amém.1

Notas bibliográficas

1 Extraído de: Sinfonia Oecumenica. Comunión con las Iglesias del mundo. Hamburg/Basel: Evangelisches Missionswerk in Deutschland und Basler Mission, 1999. p. 341.

Bibliografia

PEREIRA, Nancy Cardoso. Cotidiano sagrado e religião sem nome. Religiosidade popular e resistência cultural no ciclo de milagres de Eliseu. São Bernardo do Campo: IEPG, 1998. (Tese de Doutorado)
BAILÃO, Marcos Paulo. Profetas e curandeiros. Estudos bíblicos. v. 73, Petrópolis: Vozes, 2002. p. 20-25.
GRAY, John. I and II Kings. A commentary. Philadelphia: The Westminster Press, 1970.
CAMP, Claudia. 1 and 2 Kings. In: NEWSOM, Carol A. and RINGE, Sharon H. (ed.). The Women’s Bible Commentary. Louisville: Westminster/John Knox. p. 96-109.


Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Elaine Gleci Neuenfeldt
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 3º Domingo após Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Reis I / Capitulo: 17 / Versículo Inicial: 17 / Versículo Final: 24
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2003 / Volume: 29
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13184
REDE DE RECURSOS
+
Deve-se orar de forma breve, mas seguidamente e com convicção.
Martim Lutero
© Copyright 2024 - Todos os Direitos Reservados - IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Portal Luteranos - www.luteranos.com.br