1 Reis 8.(22-23,27-30) 41-43

Auxílio Homilético

21/06/1992

Prédica: 1 Reis 8.(22-23,27-30) 41-43
Leituras: Gálatas 1.1-10 e Lucas 7.1-10
Autor: Evaldo Luís Pauly
Data Litúrgica: 2º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21/06/1992
Proclamar Libertação - Volume: XVII


Observação: Mühlhäusser, no PL, vol. XII, já comentou sobre esta perícope.

Sua pregação, no entanto, foi pensada para a Ascensão de Cristo. Aqui, estará centrada na questão eclesiológica.

 

1. O templo de Salomão

As informações que obtive apontam que o templo salomônico fazia parte do programa centralizador de Salomão que

ao assumir o controle real direto da taxação e do recrutamento do exército, e mais, aumentando ao máximo a corvéia, completou-se pela sua apropriação do culto de Jerusalém como um culto real (Gottwald, p. 379).

Ao transformar sua capela real em santuário estatal (Metzger, p. 71), Salomão derrota finalmente o modelo de administração tribal, bastante combalido, mas ainda vigente sob Davi (Cardoso, p. 66). Salomão pode assim, pela centralização administrativa (tributária essencialmente) e cultual, implementar seu projeto imperialista. Conforme Metzger, a partir de l Rs 4.7-19, constam cidades-estado cananéias ao lado de tribos outrora puramente israelitas (p. 69), sob o domínio do rei do impe rio. Lembro que, por acordo de fronteiras, Salomão casou-se com a filha do Faraó (l Rs 2.14-46). O projeto arquitetônico do templo foi talvez elaboração dos fenícios (Millard, p. 254), com certeza, porém, houve participação de estrangeiros nas tarefas especializadas (l Rs 5.6), a um custo aparentemente alto. Todos esses indícios demonstram o projeto imperialista, do qual o templo era apenas um dos elementos. A centralização do culto vai a reboque da centralização da dinastia. Até a arquitetura do templo lembra disso:

Diante da entrada do templo se encontravam duas colunas de bronze(...) que lembram as estrelas dos antigos santuários cananeus; os seus nomes yakin (ele erige) e bo'az (com força) fazem pensar no pilar egípcio chamado djed, que em todo o Oriente era usado e conhecido como símbolo da durabilidade (do templo e da dinastia). (Kornfeld, p. 1084).

Outro elemento é a perseguição sistemática aos santuários regionais como Gilgal, Silo, Mispá...

Salomão não se distingue de seus colegas orientais. Curiosamente no terreno teológico o que chama a atenção na comparação do javismo com outras religiões antigas são as diferenças, no aspecto do culto no templo o que se destaca são as muitas semelhanças (Cardoso, p. 69). O javismo, apesar da centralização do templo, não permitiu que Salomão, à maneira de seus colegas, se transformasse ele mesmo numa encarnação de Deus. Permanece, mesmo sob o domínio da corte salomônica, que Javé é antes de tudo o Deus da História, e não tanto um Deus local (Westermann, p. 163).

Apesar do poder da corte salomônica o templo de Javé superou as funções de estabilização de dinastia. Todo o movimento profético, mormente seu messianismo pró-Davi e pró-Sião, mantém uma posição crítica com relação ao reinado. A própria redação deuteronomista, no exílio, retoma a tradição cultual do templo contrapondo-a criticamente ao reinado, com exceção de Davi.

2. Alguns pontos para contemplação do texto

Além das boas indicações do auxílio de PL, Vol. XII, agrego estas:

2.1. A redação da oração, realizada séculos depois, deixa transparente um conflito: Deus mora no templo e também não cabe no templo. Apesar das dimensões razoáveis do templo, era impossível que contivesse o Altíssimo, mas mesmo assim era ali que Deus tinha seus olhos abertos permanentemente (v. 29). (Sobre isso veja Homburg, p. 98.) Intriga-me essa transparência! Onde Deus nos ouve e acode? No templo ou em qualquer lugar deste imenso mundo, com seu céu e para além do céu? Este Deus parece mesmo meio obscuro, envolto numa nuvem (8.11), que afasta os sacerdotes. Nós preferimos as coisas claras: preto x branco, bom x mau, salvo x perdido, operário x patrão... e tantas outras relações que reduzimos ao simplismo dualista.

2.2. As coisas são mais complicadas, mais nebulosas, mais enuviadas, mais relativas (inclusive o relativo!). Aqui me socorro do querido Lutero:

Por isso a fé propicia um conhecimento assim: Embora tudo esteja escuro e nada possa ser visto, ela tem certeza e sabe que verdadeiramente recebe e tem Cristo nesta escuridão. Da mesma forma como o Senhor nosso Deus habitou em meio a trevas no Monte Sinai e no templo. (Castelo Forte 83, dia 11.06)

Vale a pena ler toda a meditação deste dia!

2.3. No templo de Salomão Deus não deveria morar! Este templo não é seu lugar. O templo é o lugar da exploração salomônica! Mas é aí que Deus ouve e tem os olhos abertos, exatamente por estar com ouvidos e olhos abertos em todos os lugares obscuros. Onde as coisas estão misturadas, confundidas, atrapalhadas. Nestes lugares Deus se apresenta e os tem por moradia.

2.4. Uma ressalva! Acho uma tentação sairmos direto do templo de Salomão para o templo espiritual de que fala Cristo. Assim vejo no auxílio de Mühlhäusser:

Por ocasião da ascensão de Cristo (...) ele (...) trouxe a profanização total: o fim do lugar sagrado, o fim do templo, o fim da distinção entre profano e sagrado.

Assim também argumenta uma das teses centrais da Teologia da Libertação, de Gutierrez. Ele afirma que Deus se fez homem, a humanidade, cada homem, a história, é o templo vivo do Deus vivo. Não mais existe o 'profano', o que está fora do templo (p. 162). Ora, se tudo vira templo, então, nós sacerdotes voltaremos a ser o centro do mundo. Uma das conclusões deste pensamento se impõe: Através da justiça inter-humana é que se conhece o Deus da revelação bíblica (p. 163). Pessoalmente, como luterano, acho o profano bom demais para ser anulado pela presença assim tão clara e direta de Deus. As relações de justiça entre as pessoas consigo mesmas, com as outras e com a natureza, têm unicamente a capacidade de revelar a sociedade que essas pessoas estabelecem para si ou na qual estão submetidas. Ou seja, no campo destas relações temos apenas a razão humana, não a revelação divina. Exatamente por isso é um escândalo irracional a existência da injustiça nas próprias pessoas em sua intimidade, nas relações delas com as outras e com a natureza, evidentemente, em meu aporte, estas relações todas são estabelecidas pelo trabalho humano, fruto objetivo da razão.

2.5 — Deus não se manifesta tão claramente assim no templo. Prefere a nuvem que afasta os sacerdotes. Prefere a vacilação do rei que tenta colocá-lo no templo, mas não consegue. Acho que com os estruturalistas chegamos mais perto desta dimensão: a revelação de Deus deixa sempre uma reserva de sentido, ou como Lau¬ro formulava: permanece sempre, na revelação clara de Deus, o mesmo Deus absconditus.

3. Pensando na prédica

Eu vou pregar fazendo uma comparação entre a pregação proferida quando da inauguração do salão paroquial de São Marcos, em Porto Alegre/RS e o templo salomônico. Farei isto por duas razões: tentarei criticar Salomão assim como o texto deuteronomista o critica (quer limitar a ação de Deus ao prédio real); tentarei recuperar a dignidade das pessoas que se reúnem num salão insignificante na região sudeste de Porto Alegre. Pois elas valem mais que Salomão com toda a sua glória (Lc 12.27).

Pretendo recuperar um pouco da memória da comunidade e mostrar que pela graça de Deus (que se revela de forma diferente daquela esperada pelos poderosos como Salomão) somos parte da história da revelação de Deus. Introduzindo também um conceito confessional muito importante: Para a verdadeira unidade da Igreja cristã não é necessário que em toda a parte se observem cerimónias uniformes instituídas pelos homens (Confissão de Augsburgo VII). Ou seja, vou tentar mostrar, a partir do texto bíblico e da tradição eclesiástica, que Deus está aqui conosco: no templo que temos e na vida que levamos adiante, do jeito que podemos. O culto não precisa ser igual em todo lugar, nós podemos ser criativos para fazê-lo com a cara da gente, sem perder a unidade da Igreja.

Eu não insistiria naquilo que hoje é senso comum: a vida religiosa a gente leva no dia-a-dia, não só dentro da igreja no domingo pela manhã. Acho que todo leigo minimamente ligado à Igreja espera ouvir essa cantilena do seu pastor. O pastor pode dizer isso porque ele, na verdade, não vive o dia-a-dia. O povo sabe que dentro da fábrica não dá para ter uma vida cristã. Dentro da fábrica é um salve-se quem puder. É um chora mais quem pode menos. O povo sabe que não dá para ser cristão neste mundo que é do cão! Por isso, para poder viver nesse mundo do cão, sem que nos tornemos a nós próprios cães raivosos, precisamos do refrigério que o templo oferece. Não somos diferentes dos oprimidos que adentravam o templo alegres (Sl 100). Acho que igrejas tristes, liturgias e pregação feitas de cara amarrada, não conscientizam ninguém. A sede de beleza dos oprimidos é que os manteve atrelados ao templo de Salomão, porque este era belo. Aprendi isso de Trotski, revolucionário russo, assassinado por Stalin. Ele pretendia destruir o poder da Igreja Ortodoxa russa, não pela repressão (como Stalin), mas com beleza.

A fé não existe ou quase não existe... O divertimento e a distração representam um enorme papel nos ritos da Igreja. A Igreja age por métodos teatrais sobre a vista, o ouvido e o olfato (o incenso!) e, através deles, age sobre a imaginação (p. 71).

O revolucionário propõe, então, que os bolcheviques usem o cinema para tirar as massas da influência eclesiástica. Ele reconhece que, para uma verdadeira emancipação política, não basta apenas sólida formação política. O templo de Salomão atrai pela beleza para impor dominação. Na releitura do deuteronomista, ele deve continuar atraindo para reorganizar o povo após o exílio.

Deus, sendo maior que o templo, atende a oração do dinasta e vem visitá-lo. Assim ele também, por sua graça, vem nos visitar nesta igreja que construímos, vem nos visitar dentro das fábricas, das casas cada vez mais pobres dos brasileiros. Vem visitar, vem ver, vem ouvir nossa súplica mesmo onde não o esperamos: na miséria humana, seja ela objetiva (favela, desemprego, recessão, falta de democracia e de cidadania...), seja ela subjetiva (doença, abandono, solidão, falta de alegria na vida...) Este é o verdadeiro templo, porque Deus assim o decidiu!

Tentaria injetar ânimo nos paroquianos. Se nossos antepassados foram capazes de nos deixar como herança este templo, nós também somos capazes disso. E seremos capazes de ir mais além. Não somos apenas capazes de manter o templo, o que já é extremamente difícil, mas seremos capazes de ir além dele: indo buscar Deus naqueles lugares onde não imaginamos que o Altíssimo possa se revelar: entre o povo pobre, entre os descrentes, entre nós mesmos. Aqui é o momento de sonhar desafiadoramente; se recebemos este templo sem que o merecêssemos, apenas pela graça de Deus que agiu pelas mãos dos antigos, seremos capazes de muito mais. Se¬remos capazes, por Deus, de transformar o mundo do cão num verdadeiro templo, se Deus quiser!

4. Liturgia

Eu não encontrei a liturgia da inauguração do salão paroquial. Se a encontrasse, repetiria a mesma, fazendo com que a comunidade revivesse aquele momento importante da vida comunitária. Por isso, seguirei o Manual de Ofícios tradicional, relembrando que isto nos identifica como povo de Deus, com história, com uma clara perspectiva de futuro e de passado.

5. Bibliografia

MILLARD, A. Os Templos'. In: D. e P. ALEXANDER (ed.). O mundo da Bíblia. São Paulo, Paulinas, 1985.
CARDOSO, C. F. Antiguidade Oriental. Política e Religião. Contexto, 1990.
WESTERMANN, C. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Paulinas, 1987.
METZGER, M. História de Israel. São Leopoldo, Sinodal, 1978.
GOTTWALD, N. K. As Tribos de Javé. São Paulo, Paulinas, 1986.
KORNFELD, W. Verbete Templo. In: BAUER, J.B. Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo, Loyola, 1978.
HOMBURG, C. Introdução ao Antigo Testamento. 2. ed., São Leopoldo, Sinodal, 1976.

TROTSKY, L. A Vodka, a Igreja e o Cinema. In: —. Questões do Modo de Vida. Antidoto, 1979, pp. 67 a 72.


 


Autor(a): Evaldo Luis Pauly
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 2º Domingo após Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Reis I / Capitulo: 8 / Versículo Inicial: 41 / Versículo Final: 43
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1991 / Volume: 17
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17982
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Martim Lutero
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