2 Coríntios 4.3-6

Auxílio Homilético

06/01/1989

Prédica: 2 Coríntios 4.3-6
Autor: Ari Knebelkamp
Data Litúrgica: Dia de Epifania
Data da Pregação: 06/01/1989
Proclamar Libertação - Volume: XIV

 

I — Introdução

O texto em questão está previsto para Epifania. A festa da Epifania e a festa da Páscoa são as duas comemorações mais antigas da Igreja Cristã. Epifania lembra a vinda dos três magos do longínquo Oriente para verem o menino Jesus de Nazaré e aponta para a luz que resplandeceu ao mundo na estrebaria de Belém. Epifania — a festa da revelação/luz — é comemorada no dia 6 de janeiro. Originalmente faziam parte desta comemoração o nascimento de Jesus, a adoração dos magos, o batismo de Jesus e o milagre de Cana. Ao transferir a celebração do Natal para o dia 25 de dezembro a Igreja Ocidental esvaziou a festa da Epifania.

Jesus de Nazaré é a epifania de Deus no mundo. É a palavra que se fez carne. Por meio da pobreza Deus se tornou manifesto aos homens. O Deus Criador se mescla com a miséria da existência humana. Deus entra na escuridão do mundo para que o mundo veja a sua glória e a sua luz. A criança que nasceu é a luz que irrompeu neste mundo. E isto para nos trazer a luz do conhecimento da glória de Deus, que brilha no rosto de Jesus Cristo. Que esta luz possa brilhar neste Domingo de Epifania, quando a palavra, em presença, se re-faz.

II — A Palavra em Corinto

Ao fundar a comunidade cristã de Corinto, Paulo lá permaneceu durante 18 meses (At 18.11). Penetrou num mundo agitado. Corinto, cidade cosmopolita, com dois portos e comercialmente movimentada, reunia uma população de origem grega, fenícia, egípcia, asiática, judia e romana. Tinha em torno de 600.000 habitantes, dos quais cerca de 400.000 eram escravos. O desnível social era acentuado. Paulo encontrou também uma cidade dominada pelo anseio do poder, formada por diversas religiões, culturas e filosofias. O pensamento estóico e o pensamento epicureu eram muito difundidos. Eram as duas escolas mais vivas da época, especialistas em ética, em busca da virtude e da felicidade humana.

A força do Evangelho de Jesus Cristo criou em Corinto uma comunidade cristã ativa, rica em carismas, mas sempre ameaçada pelo pluralismo teológico e por doutrinas que constantemente colocavam em cheque a unidade da comunidade cristã. Esta era formada, em sua maioria, por trabalhadores, pobres e escravos (l Co 1.26ss; 7.21; 12.13). O Cristo crucificado, a sabedoria e o poder de Deus que chegam a seu alvo na fraqueza (2 Co 12.9), anunciados por Paulo, valorizou, chamou e integrou muitos pobres e marginalizados na proposta de comunhão e vida abundante.

No ano de 57 d. C., Paulo escreveu a Segunda Carta aos Coríntios, motivado pelas informações que Tito havia trazido de Corinto sobre a situação que reinava naquela comunidade cristã. Foram notícias boas. Apareceram, entretanto, na comunidade, pregadores judeus-cristãos e evangelizadores gregos, os quais mantêm somente uma aparente ligação com a tradição judaica e misturam o centro do cristianismo com o judaísmo. Suas mensagens diferem do Evangelho anunciado por Paulo (11.4); apresentam-se à comunidade com cartas de recomendação (10.2; 10.18); reivindicam para si estarem falando à comunidade como apóstolos (11.5; 12.11); têm influência na comunidade (6.14-18); corrompem a mente (11.3); são mentirosos e se disfarçam de verdadeiros apóstolos de Cristo (4.2; 11.13); têm como base a lei escrita (3.6); impressionam pela aparência, são orgulhosos e usam argumentos falsos (5.12; 10.4); falam em forma de mandamento (8.8); mercantilizam o Evangelho na comunidade de Corinto (2.17); acusam Paulo de não ter exigido que a comunidade o sustentasse (11.8ss) e de ter roubado a comunidade ao recolher uma coleta para a comunidade primitiva de Jerusalém (12.6:

Importante é notar que, na representação que faziam de Cristo, não cabiam a cruz e o sofrimento. Como os espirituais da primeira carta, eles também são entusiastas da novidade do Espírito. Proclamam que neles fala o Ressurreto com demonstrações miraculosas (12.11ss; 13.3). Minimizam o valor da morte e da cruz de Cristo. Mesmo Paulo, que se apresentava fraco e sem grandes dotes de oratória, é para eles sinal de falta de legitimação por parte do Espírito e do Ressuscitado (11.21; 10.1-10). A esta compreensão de magnificiência e glorificação de Jesus, Paulo contrapõe a cruz e o sofrimento, a fraqueza e a morte de Jesus (4.10). Reconciliação, vida nova e salvação sempre acontecem quando o modo de existir e de viver de Jesus Cristo for assumido e também vivido pelos homens (5.18-20; 6.10). Paulo enfatiza que é necessário morrer com Jesus Cristo na cruz para, então, poder ser reassumido, reabilitado e plenificado, não por esforço próprio, mas por obra de Deus. Esta novidade já está presente, mas não totalmente, i pois ainda sofremos e penamos (4.3ss).

A partir deste contexto, marcado por tensões e conflitos religiosos, sociais e culturais, Paulo elabora em sua Segunda Carta aos Coríntios uma teologia engajada, pouco sistemática, mas funcional.

Por trás das diversas cenas, o tema da defesa de seu apostolado e trabalho missionário domina grande parte de sua carta (2.14-7.4; J 10; 11.1-13). A nossa perícope faz parte do primeiro bloco.

III — A cruz — ponto de referência e crítica

A comunidade de Corinto conhecia bem a Paulo. Mesmo assim, ela está impressionada com as pregações e as atitudes dessas pessoas que se infiltraram na comunidade. Paulo não está interessado somente na apologia do seu ministério. Quer reafirmar que o cumpre com fidelidade. Compreende o seu ministério como um prolongamento do ministério do próprio Cristo. Defende-o, pois não se trata de um ministério usurpado, mas da defesa do fundamento colocado por Jesus Cristo. A carta torna-se uma declaração de fidelidade (1.18-22) que, como discípulo, Paulo situa como continuidade da fidelidade do Cristo morto e ressurreto. Paulo coloca a cruz de Cristo como ponto de desequilíbrio, referência e crítica para a situação presente na comunidade de Corinto.

IV — Dialogando com o texto

2 Co 4.3-6 é um texto que emerge do contexto e da situação existentes na comunidade de Corinto. São muitos os tópicos de relevância hermenêutica e teológica. Senão vejamos:

Depois de mostrar a fidelidade e a primazia de seu ministério junto à comunidade de Corinto, Paulo, inicialmente, tenta explicar por que alguns rejeitaram o Evangelho por ele anunciado. Denuncia os que, na comunidade, procuravam transformar a mensagem do Evangelho em mera filosofia de vida e aqueles que faziam dele simples extensão do legalismo mosaico. Para estes o Evangelho está encoberto (v. 3). O v. 3 remete a 3.18. Encobrir o Evangelho é não levar em nossos corpos mortais a morte de Jesus e, assim, não sentir em nossos próprios corpos a manifestação de sua vida (4.10). Paulo nunca fechou os olhos diante do sofrimento. Paulo não somente sabe de sua fraqueza, mas a sublinha. Ele sabe que o seu meio de ação é a Palavra. Renuncia aos artifícios da sabedoria humana. A Palavra da cruz é poder. Dessa Palavra brota a liberdade. Encarar os problemas sempre fez parte de sua liberdade de vida. Não corporifica o sistema de poder e os méritos vigentes. Isto fazem os inimigos da cruz de Cristo. Estes não crêem neste Evange¬lho porque o deus deste século conserva a mente deles na escuridão (v. 4). Paulo denuncia o deus deste século que danifica e arruina a vida como Deus a quer. Este falso deus, um ídolo passageiro (deste século), age através da cegueira que implanta em seus adversários. Por isso estes não enxergam a luz do Evangelho da glória de Cristo (v. 4). A luz de Deus está presente em Cristo e é conferida aos homens através do Evangelho, pois Cristo é a imagem fiel de Deus (v. 4). Ele é Deus conosco na pessoa de Jesus. Jesus é a aparição de Deus no mundo. Para Paulo — Jesus Cristo, imagem de Deus —é uma fórmula de ensinamento e de fé. A pessoa retratada torna-se manifesta e visível na imagem. Em Cristo, o Deus eterno se manifestou ao mundo. É a Palavra encarnada do Pai (Jo 1.14). Na cruz, esta Palavra encontra o seu sentido mais profundo. Ilumina e alimenta a fé do escravo e do pobre (l Co 26-28; 7.21). No v. 5, Paulo coloca como conteúdo de sua pregação o Senhorio de Jesus Cristo. Repete a concisa profissão de fé da Igreja Primitiva. Por amor a este Cristo crucificado e ressurreto, Senhor da Igreja e do mundo, Paulo efetuou uma obra missionária pioneira junto aos coríntios, e lhes era o seu servo (v. 5). Traça, em seguida, um paralelo entre a luz que resplandece das trevas e a luz que brilha em nossas vidas para iluminação do conhecimento de Deus na face de Cristo (v. 6). A iluminação do conhecimento da glória de Deus acontece por ação da Palavra de Deus e não pela capacidade do raciocínio humano.

A luz é elemento vital para a vida. Foi a primeira obra de Deus. Em seu ministério, Jesus se apresenta como a luz do mundo. Na hora de sua morte houve escuridão e o templo se aniquilou. Todo mundo, até mesmo a natureza, foi liberto da opressão. Como cristãos somos filhos desta luz. E, a exemplo de Paulo, podemos enfrentar a cruz do apostolado, não por legalismo, mas por graça, por causa da plenitude de vida em Cristo, possível num mundo decadente e em trevas.

A luz torna-se funcional e eficaz quando vivida sob o Senhorio de Jesus Cristo e quando coloca a descoberto o que, aos olhos dos sábios e poderosos, inimigos da cruz de Cristo, deveria permanecer encoberto.

V - Meditação

Em Corinto nem todos aceitaram a pregação de Paulo (v. 3). Surgiram forças contrárias ao Evangelho por ele anunciado (v. 4). Paulo desmascara tais forças com a proclamação do Senhorio de Jesus (v. 5). Anunciar Jesus Cristo, crucificado e ressurreto, como Senhor, foi o tema principal de sua evangelização em Corinto.

Nas celebrações comunitárias também confessamos a uma só voz: Creio em Jesus Cristo, Filho unigénito de Deus, nosso Senhor. Aclamar e confessar Jesus Cristo como Senhor significa celebrar fundamentalmente a sua presença e a sua ação atual (Mt 18.20; l Co 12.3; Ap 22.20). Na aclamação do Senhorio de Jesus Cristo se refaz a promessa de sua presença e de sua ação. Com isto, estamos diante de um desafio: muitos outros senhores também estão incorporados à nossa vida. Neste contexto, contestar é preciso. A história da Igreja Antiga evidencia a força de contestação contida no título Senhor, atribuído ao Crucificado. Pois também imperadores reivindicaram tal título. Assim, ao aclamar Jesus como Senhor, a comunidade contestava o senhorio imposto pelos dominantes. O Senhorio de Jesus não é adaptável ao senhorio de déspotas. O Senhorio de Jesus questiona, desmantela os detentores do poder e da sabedoria em Corinto.

Em nossa realidade, o Senhorio de Jesus não se acomoda ao senhorio patronal. Como confessar que Jesus é Senhor sem colocar em cheque os senhores patrões, isto é, a acumulação baseada na exploração injusta do trabalho de outras pessoas? Neste contexto, a pregação não pode fugir da contestação. Há de denunciar este sistema econômico capitalista que prega a idolatria da riqueza individual, do acúmulo de bens às custas da exploração e da miséria de milhares de trabalhadores.

O anúncio da Palavra sempre vem com a força do Espírito. Produz, simultaneamente, a fé e a incredulidade. Traz a descoberto o que poderosos querem manter encoberto. Num mundo que só mente aos pobres e explorados, a Palavra mantém a esperança. Ela suscita, ilumina e alimenta a fé que já está no grito de gente sofrida. Requer o arrependimento do opressor. Propõe uma outra sabedoria. Somos portadores desta Palavra. O amor de Deus revelado em Jesus nos coloca a caminho. A Palavra provoca cheiro de morte para a morte e aroma de vida para a vida (2 Co 2.16). Esta é a crise que faz com que pregadores e ouvintes vivam e pratiquem a fé a partir de Deus, e não de si mesmos.

Como sol nascente, Cristo irrompe nas trevas deste mundo. Epifania aponta nesta direção. O Senhor Jesus é Deus presente. Deus conosco. A ação de Deus está na história, mas ela precisa ser mostrada pela Palavra. A cruz aponta o caminho que leva da justificação para a justiça. A piedade luterana experimenta o amor de Deus nos espaços desta vida e desta história, pois testemunha o Criador que dá vestes, calçado, comida e bebida, casa e lar. A piedade luterana anima para passos concretos. Não prepara para a fuga. Abre os olhos para enxergar os problemas e agiliza mãos e pés para superá-los.

VI — Prédica

A Palavra de Deus é qual água que penetra nas fendas do rochedo. Descobre os espaços para penetrar. Desperta forças desconhecidas e traz à tona a vida. Para tal, é necessário situar a Palavra. O pregador deverá ter tal cuidado. Como sugestão, a pregação poderá seguir os seguintes passos:

1. A força do Evangelho em Corinto.

2. O Senhorio de Jesus Cristo.

3. O Senhor Jesus é Deus conosco.

4. Senhorio de Jesus Cristo x senhores terrenos.

5. Luzes que se acendem (arrependimento, libertação, vitórias) são sinais de Reino vindouro de Deus. Convidam a celebrar.

VII — Subsídios litúrgicos

1. Intróito: Jo 1.14; l Jo 2.8.

2. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus! Pedimos perdão por não vivermos como filhos da tua luz. Em teu Filho tu irrompeste nas trevas deste mundo. Ainda estamos amarrados no mundo que está dentro de nós. E, assim, deixamos de ver as coisas. Não vemos que tu queres libertar os oprimidos. Esquecemos que a miséria resulta da opressão. Fechamos os olhos para o sofrimento. E, assim, agimos como se esta maldade ao redor de nós e dentro de nós não estivesse vencida na cruz de teu Filho. Liberta-nos, Senhor, para acreditar na tua promessa. É assim que nos colocamos diante de ti e dos irmãos para pedir: Tem piedade de nós, Senhor!

3. Perdão: Cl 1.13-15

4. Oração de coleta: Deus da vida! A tua Palavra nos reúne em comunhão fraterna. Somos gratos por isso. Sabemos que quem pratica a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as suas obras sejam mani¬festas, porque foram feitas em teu nome. Queremos ouvir agora a tua Palavra. Pedimos que ela nos renove e nos coloque em movimento. Amém!

5. Assuntos para a oração de intercessão: Pela evangelização, para que desperte vocações de serviço, abra os horizontes para a comunidade, torne as pessoas sensíveis ao povo de que fazem parte, proclame e anuncie a ação de Deus em favor da libertação, que a Igreja não tenha medo da evangelização e confie mais no Espírito Santo. Lembrar situações de doença, sofrimento e opressão no âmbito da comunidade e fora dela. Apontar para a liberdade que brota da Palavra.

VIII - Bibliografia

- LOHSE, E.. Introdução ao Novo Testamento, São Leopoldo, 1980.
- COMBLIN, J. A Força da Palavra, Petrópolis, 1986.
- QUESNEL, M. As Epístolas aos Coríntios, São Paulo, 1983.
- GONZÁLEZ, J. M. O Evangelho de Paulo, São Paulo, 1980.
- WENDLAND, H. D. Die Briefe an die Korinther. In: Das Neue Testament Deutsch Goettingen,1972. V. 7.


Autor(a): Ari Knebelkamp
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Epifania

Testamento: Novo / Livro: Coríntios II / Capitulo: 4 / Versículo Inicial: 3 / Versículo Final: 6
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1988 / Volume: 14
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17933
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