500 Anos de Reforma Protestante e as mulheres

29/09/2014

500 Anos de Reforma Protestante e as mulheres

Ir. Ruthild Brakemeier

 

Introdução

“Sem o apoio das mulheres, a Reforma não teria acontecido”. Esta é a convicção de Martin H. Jung1, após fazer uma pesquisa sobre mulheres da época da Reforma. Ele escreve ter feito descobertas muito interessantes. A primeira foi que, para encontrar algo sobre as mulheres da época da Reforma, teve que vasculhar arquivos de difícil acesso, enquanto as informações sobre os reformadores masculinos eram abundantes e há muito tempo conhecidas. A segunda descoberta foi que as mulheres não foram apenas esposas que apoiavam seus maridos e cuidavam da família, mas também conheciam bem a Bíblia e foram destemidas na divulgação das ideias da Reforma. Por causa do seu empenho e sabedoria, territórios inteiros tornaram-se protestantes. Não obstante a imagem depreciativa que se tinha das mulheres na época, havia aquelas que, por causa da sua fé evangélica, não temeram nem gozações, nem perseguição.

Com a proximidade do jubileu dos 500 anos, estão se multiplicando, na Alemanha, os livros que destacam a contribuição das mulheres. Além disso, é possível encontrar amplo material na internet, em língua alemã. Em dois livros, de edição recente2, encontramos um total de 15 biografias de mulheres da época da Reforma. Elas nos levam a diferentes partes da Europa, principalmente Alemanha, e nos mostram a grande influência que tiveram, apesar de sua condição de mulheres. É importante conhecer algumas mais de perto.

Mulheres que participaram do processo da Reforma Protestante

Mulheres de todos os grupos sociais participaram do processo e do movimento reformatório, desde o início. Motivadas pela nova doutrina que incentivava cada cristão a ler a Bíblia e expressar sua fé, elas também se sentiram livres para estudar as Escrituras e defender suas convicções. Algumas delas divulgaram sua fé evangélica por meio de poesias e músicas;

Esposas de Reformadores

As esposas dos assim chamados Reformadores são exemplos de engajamento pela causa. A mais conhecida é, certamente, a esposa de Martim Lutero, Catarina de Bora (1499-1552). Devido à sua personalidade forte e suas qualidades administrativas, Lutero a chamava por vezes de “meu senhor Käthe”, ainda que ela o chamava respeitosamente de “senhor Doutor”. Catarina teve que ser forte, considerando que teve seis filhos, dos quais dois não alcançaram a idade de adultos. Mas além dos próprios filhos, o casal chegou a criar mais oito filhos de parentes próximos. No grande convento, em que a família morava, sempre havia estudantes de teologia que alugavam quartos. Também eram acolhidas pessoas idosas e doentes, além de muitos visitantes dos mais diversos lugares que vinham a Wittenberg, para conversar com o Reformador. Lutero prezava a forma como Katharina gerenciava a casa, mas ele também a amava como educadora dos filhos e, não por último, como esposa que o animava em momentos de dificuldade e depressão. Catarina foi a primeira “esposa de Pastor” luterana (Pfarrfrau – Frau Pfarrer), e a “casa pastoral evangélica” o modelo para as próximas gerações.

Mas há outras mulheres que se destacaram, como Wibrandis Rosenblatt (1504-1564), que esteve casada consecutivamente com três reformadores: João Oekolampad, na cidade de Basileia, Suiça, Wolfgang Capito e Martin Bucer na cidade de Estrasburgo. Somando os filhos do primeiro matrimônio, deu à luz a onze filhos. Contudo, sua tarefa não foi apenas a criação dos filhos, mas também a gerência da casa com os muitos hóspedes, os quais não raras vezes eram refugiados, perseguidos por não terem “a fé certa”.

Mulheres da nobreza

Sabemos de mulheres da nobreza que se empenharam em favor da causa protestante, como a princesa Elisabeth de Calenberg (1510-1558). Como regente de Braunschweig-Lüneburg, introduziu a Reforma em seu território. Merece menção também Ursula de Münsterberg (nasceu entre 1491 e 1495 e faleceu após 1543). Ela se recusou a voltar ao convento de onde havia fugido. Quiseram levá-la a força para lá. Sua argumentação escrita sobre o motivo de sua resistência foi publicada, acompanhada de uma palavra de Lutero. Ela ajudou no processo de dissolução de muitos conventos, onde mulheres eram enclausuradas contra a sua vontade.

Uma das mulheres mais corajosas foi Argula de Stauff Grumbach (1492-1554). Ela se manifestou publicamente contra a condenação do professor da Universidade de Ingolstadt3, de nome Arsacius Seehofer. Ele havia defendido ideias da Reforma, apesar da proibição estrita dos duques da região, que não quiseram nem permitir que estas ideias fossem discutidas. Argula, então com a idade de 31 anos, já havia estudado a fundo a Bíblia, pois recebera um exemplar do seu pai quando tinha 10 anos de idade4. Seus argumentos no manifesto estão baseados em palavras bíblicas. Justificando sua manifestação como mulher, ela se baseia em Joel 2.28, onde o profeta prediz que chegará o dia em que também as filhas receberão o Espírito de Deus e profetizarão. Ela escreveu aos professores da Universidade, desafiando-os a argumentar teologicamente com ela – na presença das autoridades políticas. Por não ter aprendido latim, pediu que a disputa, para a qual viajaria a Ingolstadt, fosse em alemão.

Ela não recebeu nenhuma resposta por parte dos professores, mas seu marido perdeu o emprego. Este, infelizmente, continuou católico até o fim de sua vida, o que complicou muito sua vida familiar. Um dos argumentos que sustentava Argula foi At 5.29, onde o apóstolo Pedro diz que importa obedecer mais a Deus do que aos homens.

Sua carta foi publicada e amplamente divulgada, sendo reeditada treze vezes dentro de dois meses. Outros sete panfletos de Argula foram publicados, que, somados, alcançaram o número de 30.000 exemplares.

Mulheres da burguesia

Entre 1517 e 1525, quando então iniciou a Guerra dos Camponeses, uma forma comum de divulgar as novas ideias da Reforma era mediante manifestos (Streitschriften). Eram amplamente lidos por quem sabia ler. Travava-se verdadeiros combates por meio destes manifestos, às vezes recheados de insultos. Uma mulher da burguesia que ousou manifestar-se via imprensa foi Ursula Weyda (c. 1504-1570). Quando um abade do mosteiro de Pegau lançou um manifesto, acusando Lutero e seus seguidores de todos os males da época, como revoltas, decadência das universidades e ruína das cidades, ela reagiu com um outro manifesto, argumentando contra as acusações com seus conhecimentos bíblicos. Num dos seus textos encontram-se 79 referências bíblicas.

Elisabeth Cruciger (c. 1500 a 1535) é considerada a primeira poetisa do Protestantismo. Ela escreveu vários “hinos de Igreja”. Um deles ainda hoje faz parte do hinário da Igreja Evangélica da Alemanha5. Ela e o marido eram amigos do casal Lutero e moravam em Wittenberg. Lutero havia realizado o ofício de casamento do casal Cruciger.

Catarina Zell6 : Uma das mulheres mais extraordinárias, cuja vida queremos descrever com mais detalhes, foi Catarina Zell, nascida Schütz (c. 1497 a1562). Ela pregou publicamente e também foi uma diácona. Tem quem a chama de “Reformadora”.

Catarina foi filha de um marceneiro respeitado de Estrasburgo. Com boa formação intelectual, leu escritos de Martim Lutero e foi tocada pelo seu conteúdo. Escreveu que sentiu-se “como se alguém me puxasse da terra, do inferno atroz e amargo para o lindo e doce reino dos céus”7 .

Ela casou com Mateus Zell, que viera como sacerdote para a catedral de Estrasburgo. Mas logo começou a pregar no espírito de Lutero. Catarina era 20 anos mais nova do que ele. O casamento de um sacerdote ainda provocava muita revolta por parte das autoridades católicas. Por isso, Mateus Zell foi excomungado da igreja pelo bispo de Estrasburgo. Havia quem o defendesse e a própria Catarina começou a argumentar contra esta decisão, mandando “cartas fumegantes”8 ao bispo. Numa delas diz que ela vive numa comunhão harmoniosa com o marido e que não concorda com a suposta vida celibatária dos religiosos, “dos quais, não raro, sete mulheres estão grávidas ao mesmo tempo”9.

Argumentando contra a afirmação de que as mulheres devem permanecer caladas nas comunidades (1 Co 14.34), ela cita Gálatas 3.28 e Joel 2.2810 . Seu marido aceitava sua colaboração no anúncio do evangelho e a chamava de “auxiliar”.

Catarina deve ter sido uma mulher muito caridosa e prática. Quando, certa vez, 150 homens protestantes vieram refugiar-se em Estrasburgo, ela hospedou 80 deles na casa pastoral, cuidando de sua alimentação por quatro semanas. Estes 150 homens tinham sido expulsos de sua cidade, Kenzingen, e haviam deixado para trás suas esposas. Catarina escreveu-lhes uma carta de consolação.

Quando iniciou a Guerra dos Camponeses, Catarina foi com seu marido e o reformador Wolfgang Capito aos acampamentos dos revoltados, para convencê-los a tentarem um caminho sem violência. Não tiveram êxito. Numa batalha perto de Estrasburgo os camponeses foram vencidos e uma multidão de 3.000 refugiados invadiu a cidade. Catarina ajudou a dar-lhes abrigo durante meio ano.

Em 1529, Catarina hospedou os reformadores Zwingli e Oekolampad de Basileia, que se dirigiam a Marburg para um encontro com Lutero, a fim de buscar um entendimento sobre a Santa Ceia. Quando Catarina soube que não chegaram a um acordo, intrometeu-se na briga, escrevendo uma carta a Lutero, na qual ela o censura de não ter observado o amor que era mais importante do que todas as disputas doutrinárias. Catarina também se correspondia com outros reformadores e, certa vez, 30 deles se hospedaram na casa dos Zell. Com seu marido também empreendeu viagens, e até visitou Lutero em Wittenberg. Em 1534 editou um livro de canto, em cujo prefácio incentiva os cristãos a cantar durante o trabalho.

Aos 51 anos de idade faleceu seu marido. Na hora do seu sepultamento, Catarina também usou a palavra, dirigindo-se à comunidade. Visto que a sua prédica deu motivo para polêmica, escreveu uma justificativa, dizendo que não pretendia o ministério do pregador ou do apóstolo; mas, assim como Maria Madalena tornou-se uma apóstola, por ter sido enviada pelo próprio Senhor a testemunhar a ressurreição de Cristo, assim aconteceu com ela11.

Um ano após o falecimento de Mateus Zell, em 1548, Catarina escondeu, durante algumas semanas, os reformadores Martim Bucer e Paulo Fagius em sua casa, antes do seu exílio para a Inglaterra. Também acolheu um sobrinho que estava com sífilis. Quando não pôde mais cuidar dele em casa, encaminhou-o para uma instituição. Vendo as condições catastróficas desta instituição, escreveu um relatório ao Conselho da Cidade, sugerindo, entre outros, que deveria haver um acompanhamento espiritual para as pessoas ali internadas. Argumenta que entre os pacientes havia pessoas que nem sabiam orar o Pai-Nosso. Aí temos um exemplo de como ela havia trabalhado para melhorar as condições sociais da cidade.

Seus últimos anos de vida estavam marcados por doenças e pelo diálogo com a nova geração de pregadores protestantes. Uma ala de protestantes queria reformas mais radicais e condenava pessoas que divergiam de suas convicções. Catarina defendia que o amor cristão deve estar acima de todas as divergências e que não se deveria usar nenhuma violência. Por isso visitou na prisão um pregador protestante da linha radical e enviou cartas a Ludwig Rabus que difamava outros pregadores como Zwingli e seus seguidores. Ela lhe escreveu que assim ele estaria destruindo a Igreja em vez de edificá-la. Rabus lhe devolveu a carta sem tê-la aberto. Mas Catarina lhe enviou outra carta, recomendando que ele parasse de condenar, para não ser condenado. Na resposta a esta carta Rabus declara que ela tem uma “boca desavergonhada” (unverschämtes Maul). Não obstante, ela escreve mais uma vez, expondo-lhe também sua compreensão de Batismo e Santa Ceia. A fim de conseguir apoio para suas ideias apaziguadoras, publicou sua correspondência com Rabus.

A última publicação de Catarina é uma carta de consolo a Felix Armbruster. Este homem tinha sido um alto magistrado da cidade, mas havia contraído a lepra. Ele vivia fora dos muros da cidade, como “morto vivo”. Em sua carta de consolo Catarina interpreta para ele o Salmo 51 e o Pai-Nosso.

Catarina pregou mais duas vezes publicamente na sepultura de mulheres. Por terem sido seguidoras de anabatistas (Wiedertäufer), nenhum pregador quis sepultá-las, sem dizer que tinham se desviado da Igreja de Jesus Cristo. Uma delas foi sepultada de madrugada, às escondidas. O Conselho da Cidade quis processá-la por isso, mas ela faleceu, antes que isso acontecesse.

Em Catarina temos um exemplo de testemunha do evangelho em palavra e ação. Nas suas concepções teológicas encontramos pontos de vista defendidos hoje pela teologia feminista, quando, por exemplo, diz na sua interpretação do Pai-Nosso que Deus também pode ser comparado a uma mulher, que conhece as dores de parto e a alegria de uma mãe que amamenta.

Martim Lutero e sua visão da mulher

Com a doutrina do “sacerdócio geral de todos os crentes”, deduzido principalmente de 1 Pedro 2.9, Lutero contribuiu para a reabilitação e valorização da mulher. Mas, para esta valorização também ajudou o conceito de Deus: “Deus é o Deus que se dá aos seres humanos quando uma mulher fica grávida e dá à luz ao Filho de Deus.12” E ainda: Homem e mulher fazem parte da boa criação de Deus e ambos foram criados à imagem de Deus (Gn 1), e, pelo Batismo, vale o que o apóstolo Paulo escreve em Gálatas 3.26-28: homem e mulher são um em Jesus Cristo.

Baseando-se no testemunho bíblico, Lutero pôde formular: “Todos nós somos conjuntamente consagrados sacerdotes pelo batismo.13 Lutero prezava a mulher como educadora dos filhos, pois considerava esta tarefa “a obra mais nobre e preciosa do mundo”14. Ele diz que pai e mãe são responsáveis pela educação. Consequentemente, o pai não deveria esquivar-se de também participar de tarefas “insignificantes”, que fazem parte da criação dos filhos, como embalar o bebê e lavar as fraldas. Visto que a educação era importante para meninos e meninas, Lutero empenhou-se pela criação de escolas para ambos os sexos.

No entanto, Lutero também estava “profundamente preso à estrutura patriarcal de seu tempo”15. Por isso, não conseguiu ser coerente na sua posição de igualdade dos sexos. Segundo algumas afirmações, o homem ainda tinha um status mais elevado do que a mulher, porque a mulher, no seu entender, tem uma índole e inteligência mais fraca. Seu argumento: Foi por causa da fraqueza da mulher que o diabo tentou a Eva, em forma de cobra, e foi bem sucedido, o que não teria acontecido assim com Adão. E Lutero continua: “Mesmo que Eva tenha sido uma criatura excelente, e foi igual a Adão, no que diz respeito à justiça, sabedoria e salvação, ela não deixou de ser uma mulher. Pois, assim como o sol é uma criatura mais nobre do que a lua (se bem que a lua também é excelente e magnífica): assim a mulher não foi igual ao homem em honra e dignidade, ainda que tenha sido uma obra de Deus muito linda”16.

Lutero foi contraditório na sua posição referente às mulheres. Por um lado, afirmava que, como castigo pelo seu pecado, a mulher ficou subordinada ao homem, tendo como tarefa principal gerar e criar filhos. Seu meio de influência ficaria restrito à sua casa, e não caberia a ela intrometer-se em questões políticas ou eclesiásticas. Em virtude de sua menor capacidade intelectual, teria apenas competência para as tarefas domésticas. Não ficava bem para a mulher usar palavras eruditas, porque “não há saia que fica tão mal para a mulher, casada ou solteira, do que querer ser inteligente”17.

Por outro lado, sabemos das cartas à sua esposa Catarina, que ele também pedia sua opinião sobre questões político-eclesiásticas. Um exemplo foi o relatório que lhe mandou sobre a conversa com Zwingli, Oekolampad e Bucer, informando-a sobre pontos de vista teológicos divergentes, referentes à Santa Ceia, escritos em latim. Um outro exemplo é a sua correspondência com Argula de Grumbach, na qual não se encontra nenhuma palavra de repreensão, por ter desafiado os professores da Universidade de Ingolstadt a discutir com ela. Pelo contrário, ele a chama de “discípula de Cristo” e “um instrumento especial de Cristo”. O mesmo se observa na correspondência com Catarina Zell. Lutero sugere que ela assuma a tarefa político-eclesiástica delicada de ajudar a estabilizar a unidade entre os teólgos de Wittenberg e Estrasburgo. E, não obstante ser de opinião que uma mulher não é capaz de exercer liderança poítica ou eclesiástica18, ele escreveu a algumas mulheres regentes, como Maria da Hungria e Catarina da Saxônia, que continuassem a promover a Reforma em seu território.

Consequências imediatas da Reforma para a vida da mulher e os ministérios19

O conceito da Igreja medieval sobre a mulher estava marcado por um dualismo acentuado. De um lado estava a mulher celibatária nos conventos, cujo status religioso era considerado o mais elevado e perfeito. No lado oposto estava a mulher casada, considerada quase que um ser de segunda ordem. Numa procissão, por exemplo, as mulheres formavam o último grupo, e, durante certos períodos, como da menstruação e da gravidez, não podiam participar da ceia da comunhão, nem frequentar a igreja.

A Reforma mudou estes conceitos. Lutero defendia que Deus instituiu o matrimônio, enquanto o status da monja, bem como o do monge, eram invenção humana. No matrimônio, homem e mulher teriam a mesma dignidade, ainda que a mulher deveria ser submissa ao homem. Gestações muito seguidas não deveriam ser problema, uma vez que a tarefa da mulher era gestar filhos.

Assim, o lugar de atuação da mulher ficou restrito ao da família e sua casa. O que não foi considerado neste novo conceito foi que, por causa do excedente numérico de mulheres, nem todas teriam a oportunidade de constituir uma família20. As mulheres que deixaram os conventos e não conseguiram casar, foram as mais prejudicadas, porque ainda perderam o que estas instituições lhes haviam garantido: uma certa formação, proteção e amparo religioso.

Nos princípios teológicos da Reforma havia, desde o início, um potencial muito alto para a emancipação e participação da mulher na Igreja protestante. O sacerdócio geral de todos os crentes também poderia ter aberto um espaço para o sacerdócio da mulher. Uma outra porta poderia ter sido a doutrina da justificação pela fé e a consequente igualdade de homem e mulher em Cristo. Estas portas também foram usadas por algumas mulheres. Mas houve estagnação das iniciativas, porque, a partir da ambiguidade de posições de Lutero, predominou, enfim, a visão da inferioridade e da falta de inteligência da mulher.

A Reforma não criou ministérios para a mulher. Talvez, até por motivos práticos. Um deles era o número grande de homens que se candidatava ao ministério pastoral. Pois muitos monges, egressos dos mosteiros, queriam ser pregadores. Na busca por emprego, os homens, naturalmente, levariam vantagem sobre as mulheres. Um outro motivo pode ter sido o receio de que a aceitação de um sacerdócio da mulher pudesse levar consigo muito dinamite às já numerosas disputas reformatórias.

A diaconia teve um lugar importante na teologia da Reforma de Martim Lutero. Isto mostra uma frase no prefácio ao Regulamento da caixa comunitária em Leisnig, onde Lutero diz que não conhece “maior culto a Deus do que o amor cristão que ajuda e serve aos carentes”21. Para fazer frente à pobreza e eliminar a mendicância, Lutero via nas “ordens da caixa comunitária”22 uma solução. Caixas de dinheiro para ajudar pessoas empobrecidas, até que pudessem sustentar-se a si mesmas, foram introduzidas em todas as cidades grandes e pequenas, no curso de poucas décadas. Para administrar estas caixas, ao lado de outras tarefas, foram instalados diáconos. Diz Strohm: “O ministério dos diáconos tornou-se uma instituição óbvia nas ordens eclesiásticas e assistenciais da Reforma”23. Nesta estrutura eclesiástica, porém, não havia espaço para mulheres. Também não durou muito, e os diáconos desapareceram outra vez das igrejas luteranas, porque o cargo do pastor impôs-se como ministério eclesiástico decisivo. A maior parte das atribuições dos diáconos foi transferida para as instâncias da autoridade civil24.

Foram necessários 300 anos para criar um diaconato feminino e 400 anos para um pastorado feminino em Igrejas Luteranas.

Diaconato e educação cristã no século XIX

A fixação da atividade da mulher ao ambiente doméstico trouxe sofrimento para muitas mulheres no decorrer dos séculos. Pois com isto não foram atingidas somente as mulheres solteiras, mas também aquelas que se sentiram chamadas para contribuírem com seus talentos para o bem da sociedade. A Reforma luterana incentivou a criação de escolas também para meninas, para que pudessem ler a Bíblia e educar bem seus filhos. Mas não lhes foi permitido avançar para o ensino superior e exercer uma profissão fora de casa.

No século XIX, algumas mulheres se opuseram a este enclausuramento, transgredindo as regras. Houve vitórias. Em 1890, a primeira mulher recebeu a licença para estudar Economia Política, Política Social e Estatística Social, na Universidade em Berlim. Foi Elisabeth Gnauck-Kühne25. Para a maioria das pessoas da sociedade de então, esta atitude foi um escândalo, porque mulheres que estudavam eram “monstruosidades”, pois, segundo opinião difundida, a atividade intelectual prejudicava as funções biológicas da gestação e criação de filhos. Oficialmente, mulheres na Alemanha só puderam estudar numa Faculdade a partir de 1909.

No ano de 1800 nasceram Theodor Fliedner e Friederike Münster, que, mais tarde, casaram. Este casal reconheceu o potencial da mulher para um trabalho diaconal e catequético. Reconheceram também que isto exigia formação. Assim, mulheres foram preparadas para as profissões de enfermagem e educação infantil. Até então só havia professores homens. Theodor Fliedner se auto-denominou de “o renovador do ministério apostólico das diaconisas”. As mulheres que se dedicariam ao cuidado de doentes, foram chamadas de diaconisas. As primeiras foram consagradas em 1844, em Kaiserswerth.

Fliedner havia descoberto, não só duas ocupações e profissões que deram realização profissional para inúmeras mulheres no decorrer da história, mas também um ministério eclesiástico para elas. Infelizmente, Fliedner não conseguiu integrá-lo na estrutura eclesiástica. No entanto, ao assumirem uma responsabilidade permanente e pública na Igreja, as diaconisas sempre se entenderam como mulheres que exercem um ministério eclesiástico. No auge do desenvolvimento, na virada do século, o número de diaconisas foi uma vez maior do que o dos pastores, na Alemanha.

O diaconato masculino foi resgatado na Igreja Luterana na Alemanha por Johann Hinrich Wichern (1808-1881). Este formou diáconos e também os consagrou para o ministério eclesiástico. Mulheres foram aceitas, mais tarde, como diáconas. No Brasil, as primeiras assumiram o ministério em 1976.

Notas:

1. JUNG, Martin H.. Keine Reformation ohne Unterstützung der Frauen. Disponível em: www.buero-fuer-chancengleichheit.elk-wue.de. Jung é Professor para Teologia Histórica e História Eclesiástica em Osnabrück, Alemanha.

2. KOCH, Ursula. Die gelebte Botschaft: Frauen der Reformation. Hamburg: Agentur des Rauhen Hauses. 2010.
DOMRÖSE, Sonja. Frauen der Reformationszeit. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2011, 2010.

3. A cidade está situada às margens do rio Danúbio, no sul da Alemanha.

4. Antes que Lutero traduzisse a Bíblia para o dialeto, que se tornaria a língua oficial na Alemanha, havia traduções para outros dialetos.

5. A primeira linha deste hino é: “Herr Christ, der einig Gotts Sohn”.

6. DOMRÖSE, 2011, p 45-58.

7. DOMRÖSE, 2011, p. 46-47.

8.  DOMRÖSE, 2011, p. 47.

9.  DOMRÖSE, 2011, p. 47.

10.  Escreveu também que nem espera que a ouçam como a Isabel, ou João Batista, Natã ou um outro profeta, mas como Balaão escutou a jumenta (Nm 22). Pois seu desejo era que juntos fossem salvos.

11.  DOMRÖSE, 2011, p. 51

12. DREHER, Martin. Sexualidade: Matrimônio - Bigamia - Divórcio - Prostituição, Introdução ao Assunto. In: Comissão Interluterana de Literatura São Leopoldo, Martinho Lutero. Obras Selecionadas. 5. v., São Leopoldo e Porto Alegre: Co-Editoras Sinodal e Concórdia, 1995. p. 154.

13. DOMRÖSE, 2011, p. 144.

14. DOMRÖSE, 2011, p. 143. Esta posição foi defendida por Lutero no seu escrito “An die Ratsherren aller Städte deutschen Landes, dass sie christliche Schulen aufrichten und halten sollen”.

15. DREHER, 1995, p. 158s.

16.  DOMRÖSE, 2011, p. 139.

17.  DOMRÖSE, 2011, p. 141. Um dos seus argumentos foi que a inteligência e a tarefa são dedutíveis da constituição física. O homem, por ter o peito mais largo, é também mais inteligente, e a mulher, por ter os quadris mais largos, está predestinada a ficar em casa, para criar os filhos.

18.   DOMRÖSE, 2011, p. 143.

19.  DOMRÖSE, 2011, p. 145-148.

20.   DOMRÖSE, 2011, p. 146. Calcula-se que nas cidades havia um excedente de 10% de mulheres.

21.   STROHM, Theodor. “Theologia da diaconia” na perspectiva da Reforma”. In: NORDSTOKKE, Kjell (Org.) A diaconia em perspectiva bíblica e histórica”. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2003. p. 163.

22.  NORDSTOKKE, 2003, p. 165.

23.  NORDSTOKKE, 2003, p. 166.

24.  NORDSTOKKE, 2003, p. 167.

25. BUSSMANN, Magdalene. “Elisabeth Gnauck-Kühne oder Der Mut zur Veränderung”. In: WALTER, Karin (Org.) “Sanft und Rebellisch”. Basel.Wien: Ebner Ulm (Hersteller) 1990. p. 88-100. Aos 14 anos de idade, Elisabeth quis estudar, a fim de preparar-se para uma profissão. A única permitida foi a de professora. Estudou num Seminário para professoras e exerceu a profissão. Quando decidiu casar, perdeu a licença de lecionar. Após muita luta, conseguiu a vaga na Universidade de Berlim.


 


 

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