Achados e perdidos: Experiências

Artigo

26/11/1991

ACHADOS E PERDIDOS: EXPERIÊNCIAS

Nancy Cardoso

Um grupo de mulheres da periferia de São Paulo, jovens da Igreja Presbiteriana Independente e religiosas de todo o Brasil num curso de atualização teológica... os três grupos se encontram com o texto de Lucas 15, em momentos diferentes. Fazem perguntas iguais e diferentes. Constroem respostas parecidas e contraditórias. Entre outras coisas... surge a questão da linguagem exclusiva, da linguagem que exclui a mulher. A partir do texto sobre perdidos e achados, os três grupos reconhecem perdas e se sentem convocados à procura e re-conquista de uma linguagem inclusiva. Falar de Deus a partir da concreticidade de cada grupo, sem controle pelos donos do poder.

As Experiências

1. Um grupo de 19 mulheres da Zona Sul de São Paulo encontra-se com o texto de Lucas 15. Estávamos reunidas numa das salas do Projeto Reconciliação do Menor, da IECLB. Éramos mulheres de diferentes idades e Igrejas (católica, a maioria, metodista e luterana).

Começamos com a leitura do texto e algumas impressões gerais.

O grupo se sentiu animado: as semelhanças entre as três parábolas começam a surgir. Uma ovelha que se perde, e o pastor que procura e encontra. Uma moeda que se perde, e a mulher que procura e acha. Um filho que se perde e o pai que aceita de volta e reencontra o filho. As diferenças também vão aparecendo: duas histórias são comandadas por homens; a história da moeda apresenta somente mulheres.

Relembrando o contexto das parábolas em Lucas, onde Jesus é questionado pelos fariseus por andar na companhia de pecadores... o grupo se pergunta pela resposta de Jesus. Contar histórias. Histórias que mostram a alegria pelo encontro daquilo que estava perdido. Alguém ressalta a preferência e a prioridade.

O pastor largou todas para buscar a ovelha perdida. A mulher fez todo o esforço para encontrar aquela uma que faltava. O pai abre mão de tudo para aceitar o filho perdido de volta... até mesmo causando problemas com o filho mais velho. Não é uma procura qualquer... é uma procura apaixonada de alguma coisa insignificante em termos de número... mas que mobiliza e leva à ação.

As mulheres já estavam ávidas pelas conclusões: Ueus é assim. Ele sempre prefere as coisas pequenas: as crianças, os pobres, os marginalizados.

O grupo se alegra com a descoberta. Esta era a resposta de Jesus aos fariseus: Deus prefere os desprezados. Deus prioriza o pequeno. As mulheres falam de sua realidade de sofrimento e luta. Afirmam a presença de Deus ali, na Vila São José.

O grupo já parecia satisfeito com as descobertas: Deus é o pastor que busca a ovelha perdida e cuida dela. Deus é o pai que aceita o filho de volta. E sem perceber... só a primeira e a terceira parábolas eram citadas e lembradas. Deus pastor. Deus pai. Provoco o grupo: mas são 3 parábolas! São três imagens: Deus pastor, Deus pai e Deus mulher! O grupo se assusta. É mesmo! Deus pastor é mais usado. Deus pai: é o que a gente mais usa. Na missa, no culto, na oração. Mas... Deus mulher... não aparece nunca. Alguém sugere: Não seria a Virgem Maria? O grupo reage. Conversas paralelas. Descobrem que o texto ainda tem muito mais para oferecer.

Destaco a habilidade de Lucas no registro desta conversa de Jesus com os fariseus daquele tempo. As três histórias estão reunidas ali e não há nenhuma indicação de a primeira e a terceira serem mais importantes do que a segunda. A parábola da mulher é menor... mas tem o mesmo esquema e conteúdo que as outras.

O grupo presta mais atenção à parábola da mulher e a moeda. Se maravilham com ela. Esta mulher sabe procurar o que perdeu. É inteligente, sabe trabalhar. Tem vizinhas e amigas...

Por que é que nós perdemos a segunda parábola? Por que é que não usamos também a imagem da mulher que trabalha como imagem para expressar o amor e o cuidado de Deus para com os pequenos e pobres?

As respostas são muitas: nós não lemos com cuidado. De verdade nunca lemos nós mesmas, só escutamos falar sobre estas histórias. Os homens é que controlam essas coisas. Eles fizeram esta história da mulher desaparecer. É... mas a gente nem percebia. Pra falar a verdade fica até esquisito dizer uma coisa dessas: Deus é como uma mulher que varre a casa... Lá na comunidade ninguém ia aceitar.

A conversa agora se estica: por que nós perdemos esta possibilidade? Por que parece esquisito... para Lucas e sua comunidade era natural poder falar de Deus a partir de muitas experiências. Alguém percebe que o uso de Deus pastor não é usado como Deus trabalhador. As pessoas usam Deus pastor como se fosse uma coisa abstraía... mas não trabalho. Então, esta parábola também está perdida: nós não falamos de Deus a partir do trabalhador.

Outra dispara: Então a terceira também está perdida porque pai como este que aceita de volta é difícil de se encontrar.

O grupo se pergunta pelas possibilidades de falar sobre Deus assim... a partir da vida, sem ter que usar só as palavras decoradas. Como é que a gente faz pra encontrar de novo a imagem de Deus como mulher, como trabalhador?

O grupo concorda que lendo a Bíblia em comunidade e em grupo assim de mulheres ajuda muito. A gente descobre as coisas. Temos que acender uma luz como a mulher da parábola... e varrer! pra encontrarmos o que perdemos.

Marcamos um próximo estudo bíblico. Terminamos o encontro com um exercício: numa forma de oração comunitária, cada uma procurava encontrar uma expressão da sua vida, do seu cotidiano para se referir a Deus. Água. Ar. Saúde. Mãe. Sol. Casa. Melhor amigo (alguém pergunta: por que não amiga? risos!).

2. No congresso de jovens da Igreja Presbiteriana Independente um dos laboratórios era sobre Teologia na perspectiva da mulher. Como assessora desta discussão, me pareceu melhor propor um texto para o grupo e a partir daí construir a reflexão. De novo Lucas 15.

Eram jovens de todo o Brasil. A maioria bem jovem (20 a 25 anos).

Por caminhos diferentes, acabaram se confrontando com a mesma descoberta das mulheres na Zona Sul de São Paulo: a possibilidade da linguagem inclusiva.

Reagem. Contam experiências. Um grupo tentou usar uma oração que dizia Deus nosso pai e nossa mãe. Foi a maior confusão!

Um rapaz afirma: Mas não fica bem! As mulheres do grupo reagem. Por que não? Quem é que decide? Aproveito a deixa: Quem é que decide qual a melhor maneira do processo para se falar sobre Deus? Falar sobre Deus é fazer teologia.

Assumem que os homens têm controlado todos os espaços tradicionais da teologia: os seminários, o púlpito, as músicas, os cursos. Ressaltam que na Escola Dominical as mulheres têm espaço. Uma mulher reage: Ninguém presta atenção no que acontece na sala das crianças.

Reconhecem que muitas mulheres também são exclusivistas: elas não gostam nem de pensar em novidades.

Pergunto pelo Deus pastor. Faz parte de nossa linguagem teológica falar de Deus como trabalhador? Todos concordam que não. Só na Igreja Católica. Afirmo o texto de Lucas como um texto inclusivo, fala de Deus a partir de diversas realidades e experiências, de modo especial, experiências dos que são esquecidos e desprezados.

Uma mulher lembra que o preconceito não está na Bíblia, mas na Igreja. Lembra que Jesus fala dele mesmo como galinha que queria reunir os pintinhos...

A turma ri. O mesmo rapaz diz: Mas não fica bem. Lembramos alguns animais que ficam bem na fala sobre Deus: leão, águia... mas galinha, não. O grupo se dá conta que é o mesmo processo: galinha é animal doméstico, ligado com a casa, coisa de mulher.

Alguém diz que a Igreja não mostra pra gente estas partes. A gente não conhece a Bíblia. A gente espera que eles ensinem direito pra gente.

A moca insiste: Ninguém vai descobrir nada pra nós.

3. Todo o mês de janeiro acontece um Curso de Atualização Teológica, em São Paulo. Entre os muitos cursos acontece um específico para catequistas das comunidades católicas. Maioria de mulheres. Maioria de religiosas (freiras, irmãs). Trabalhei com elas o tema Bíblia na Catequese. Tratei de colocar no programa uma discussão introdutória sobre linguagem exclusiva/inclusiva e o trabalho de Bíblia com as crianças. O tempo era curto e a turma muito grande (76 pessoas).

Apresentando o texto (Lucas 15 de novo!), pequenos grupos passaram a discutir as três parábolas, tratando de perceber a linguagem, os símbolos e as imagens usadas.
Depois de alguns minutos fizemos um mutirão com as descobertas dos grupos.
A mesma constatação: Deus pastor. Deus mulher. Deus pai.
A mais comum? Deus pai.
A menos usada? Deus mulher.
Confusão geral. Risos e conversas paralelas.
Aponto para a catequese e o trabalho com a Bíblia. Muitas vezes funcionamos como reprodutoras de mecanismos de exclusão. Nós censuramos o texto em sua liberdade e inclusividade.
O grupo reconhece vários fatores: o controle masculino em todos os espaços da Igreja. As catequistas não conhecem bem a Bíblia. Não há uma metodologia do trabalho com a Bíblia que seja sensível a outras perspectivas.
Destaco a importância da catequista no trabalho com a Bíblia na formação da criançada. Afirmo a Catequese como um lugar privilegiado para se redescobrir novas imagens e falas sobre Deus a partir dos pequenos e desprezados.
O tempo é curto. A conversa introdutória.
Hora do intervalo. Descemos para o cafezinho. Uma irmã me procura. Meio envergonhada admite que tantas vezes já trabalhou com as crianças a imagem do pastor e do pai. Nunca havia se dado conta da mulher. Diz da sua dificuldade muitas vezes em trabalhar com as fórmulas de espiritualidade pré-moldadas e formais. Ela e suas irmãs sentiam falta de alguma coisa para fortalecer o modo como viviam em comunidade. Terminou dizendo que com o texto de Lucas 15 ela tinha acendido uma luz: o que faltava era trabalhar o compromisso e a fé a partir da experiência de mulher. Faltava ainda varrer até encontrar a dignidade e o direito da mulher na Igreja e na teologia.

Conclusão

Estas experiências têm me desafiado a fazer um trabalho mais sistemático no que diz respeito à problematização da linguagem machista exclusivista, tanto na teologia, como no trabalho bíblico. Lutar por uma linguagem e metodologia inclusivas, significa fazer a crítica do controle dos homens na sociedade e nas igrejas. Significa também incorporar a superação deste controle como prioridade nas práticas e reflexões. Por muito tempo temos nos contentado com a nomeação e citação de algumas mulheres ilustres da Bíblia como forma de reparo da dominação e humilhação que sofremos por tanto tempo.

O movimento popular e ecumênico de Bíblia hoje precisa incorporar como parte de sua metodologia e conteúdo a superação da linguagem machista exclusivista como sinal da produção de uma experiência renovadora, fruto de relações fraternas.


Autor(a): Nancy Cardoso
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1991 / Volume: 17
Natureza do Texto: Artigo
ID: 17960
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