Apocalipse 21.10-14, 22-33

Auxílio Homilético

20/05/2001


Prédica: Apocalipse 21.10-14, 22-33
Leituras: Atos 14.8-18 e João 14.23-29
Autora: Margarete Engelbrecht
Data Litúrgica: 6º. Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 20/05/2001
Proclamar Libertação - Volume: XXVI


1. Nossa cidade

O alicerce de nossa cidade é bastante fugaz. Encontramo-nos envoltas e envoltos por uma estrutura cheia de muros. Um dos muros que se ergue é o do preconceito racial e do preconceito sexista, da negação do que é diferente. Vem alicerçado em dificuldade de transformações, conceitos religiosos de eleição de grupos ou pesso-as.

Outro muro é o da economia baseada em atividades que não produzem vida: agricultura mecanicista, geneticamente transformada, atrelada a interesses de um mundo globalizado, cheia de insumos e pesticidas, por exemplo. Vivemos entre formas que afirmam que o melhor sempre vem de fora. Há conveniências e tratados que são fonte de exploração e dominação.

Ainda outro muro vai se projetando quando relações de comunidade, relações de vizinhança, relações de família vão se tornando raras e fora de alcance: a meta é a individualização, casal independente, família em modelo nuclear extremo, vizinhança alheia a qualquer contato, comunidade que se omite porque atende interesses individuais.

Há outros muros ainda. Alguns são construídos lentamente, outros surgem de maneira rápida e impositiva. Não se vê muita alegria na vida desta cidade: ou as pessoas são condicionadas e domesticadas a cumprir certas regras, ou há alternativas procuradas e experimentadas longe de tais regras que não favorecem saúde, solidariedade, vida.

A alegria, o brilho, a vida de toda a cidade é construída por propagandas depreciativas da cultura que emerge do próprio contexto (há que ser primeiramente legitimada e, só depois de trazer retorno econômico, ela se torna cultura). Piadas e linguagem favorecem o gênero masculino, a raça branca. Dor e denúncia viram fonte de humor, desarmam, alienam e não dão respaldo suficiente para reações.

Profissões liberais e urbanas são consideradas melhores em detrimento do trabalho em fábricas ou atividades rurais. Lutas e conquistas de gente simples são rechaçadas, glorificando e enaltecendo valores que perpetuam dominação, exploração e legitimam a exclusão.

Não há tempo para a vida em nossas cidades. Toda a gente precisa correr, crianças precisam ser educadas já desde o ventre materno, precisam aprender limitações e não limites, pessoas adultas precisam sempre justificar tempo livre ou de convivência, pessoas de todas as idades precisam ocupar seu tempo, mostrar trabalho, trazer luz que não atrapalhe a caminhada para a exaustão física, mental, espiritual. Há uma gama enorme de literatura, ideologias que podem fazer com que cada pessoa tenha seu pensamento, sua solução, privada e omissa, para que vários problemas sejam resolvidos.

2. Nosso texto

O livro de Apocalipse usa uma linguagem camuflada, que incentiva a resistência e dribla a marcação do poder opressor (Bortolini, p. 8). Mas a mensagem do Apocalipse é bem determinada. A ressurreição de Jesus Cristo não é meta para um futuro distante, mas define a vida de pessoas cristãs já agora, aqui neste mundo. Há toda uma proposta de reconstrução da consciência do povo, para que se identifique e se reconstrua como povo (Richard, p. 61). Para essa reconstrução há de se usar símbolos e mitos, que não determinem significados, mas que possam estar disponíveis a novas situações.

A proposta cultural do Apocalipse difere de forma extrema da helenização que dominou a maior parte da reflexão cristã (de forma elitista). A tradição apocalíptica sobreviveu na memória e consciência cristã popular do cristianismo (Richard, p. 43).

A imagem da Cidade Santa de Ap 21.10-14 é construída de uma forma bem diferente da denúncia do capítulo 17. Mas a imagem continua a denúncia, remetendo à sociedade que oprimira antepassados (Babilônia), que desmascara a violência de Roma, num tempo de aguda opressão política e extrema exploração econômica, sem dizer as coisas às claras (Bortolini, p. 8).

O v. 10 insiste na obra de Deus. Há valores transcendentes que extrapolam a vivência diária, a que as pessoas e a natureza são submetidas. Mas a obra de Deus vem para dentro da história. Há uma transformação inesperada e autêntica que acontece porque Deus quer, porque Jesus Cristo ressuscitou. E isso precisa ser anunciado, necessita ser vivenciado.

Os números perfeitos que delimitam e formam a Cidade Santa nos vv. 12-14 vão propondo valores solidários e de participação no bem comum (Gorgulho, Anderson, p. 12s). O uso de tais números perfeitos remete à tradição popular que sobrevivia na consciência da fé do povo de Deus (Richard, p. 43). A forma cúbica remete ao espaço dos Santos dos Santos do Templo de Jerusalém, mas este espaço toma outra dimensão nos vv. 22-23. Constata-se novamente a denúncia direta ao submeter-se a valores e vivências, projetando-se uma transformação que está já presente na vida de fé cristã e que não precisa desta submissão.

O v. 14, em ligação com os vv. 22-23, vai denunciar a corrupção vivida com os que se diziam mediadores entre as pessoas e Deus.

Mais uma vez, a novidade na mediação única e gratuita é confessada: a ressurreição de Jesus Cristo não impõe subordinação a estruturas que não permitam a identificação e a mobilização contra o sistema que oprime ou persegue. A ressurreição de Jesus Cristo, confessada e vivida, realiza o projeto de Deus na história, desmascara o projeto de opressão e morte.

3. Nossa confissão

A denúncia de estruturas, de valores e de sobrevida em nossas cidades é intrínseca à nossa vivência cristã. Ora percebemos e compactuamos, ora percebemos e denunciamos. Lembrando Lutero, somos simultaneamente pessoas justas e pecadoras.

Estamos em época pós-Páscoa. Celebrar ressurreição não é algo atrelado ao dia da Páscoa. Confessar ressurreição é vivência cristã.

No contexto brasileiro, de maioria reencarnacionista, há pessoas que unem as diversas etapas de doutrinas reencarnacionistas com uma etapa final de ressurreição, onde vida plena é fruto de castigo, culpa, mediação por obras e méritos próprios e... muito tempo. Toda a denúncia e indignação com as estruturas de nosso tempo perdem a urgência, incapacitam a resistência, individualizam, desmotivam para a revolta, a insubordinação e o desafio do novo.

Em nosso contexto de igreja que migra, há grupos que refletem maior preocupação com a manutenção de tradições, enquanto outros gostariam de buscar alternativas em práticas de outras igrejas muitas vezes bastante distanciadas da vida das comunidades. Novamente a denúncia e a indignação perdem espaço para a resolução de problemas individuais, soluções mágicas e manutenção de muros que não capacitam transformações.

A liberdade contida na proposta de Jesus Cristo como único mediador é, muitas vezes, aprisionada por propostas políticas, económicas, sociais, religiosas que não respeitam saúde, solidariedade, vida. Há culpa quando há disponibilidade de tempo para o convívio com crianças, para o convívio familiar, para o convívio comunitário.

Como pessoas chamadas por Deus a partir do Batismo -sacerdócio geral - temos grande dificuldade em unir três propostas para se tornar portão de entrada, e não valorizamos a possibilidade de outros portões (v. 13). Ainda temos dificuldade em refletir teologicamente conjunturas, propostas de trabalho e caímos na tentação de apresentar solução única para todos os problemas.

Mesmo assim, em nosso contexto cheio de alternativas religiosas, há possibilidade de diálogos ecumênicos e inter-religiosos, diálogos que surgem a partir de propostas comuns de anúncio de liberdade, de vida em comunhão. Talvez estejam aí as oportunidades de que muros tenham aberturas construídas em conjunto, favorecendo liberdade e vida, testemunhando a transformação que Jesus Cristo revelou.

Mas nossa confissão de fé, nossa reflexão teológica, nossa prática de fé podem manter seu perfil. Mostrar a urgência de nossa ação - porque o Reino de Deus já veio! - em vista da emergência de quem vivência exclusão e por isso nem mais afeta o sistema é nossa tarefa. Culpabilizar morte e descaso com toda a criação de Deus e reivindicar que poderes públicos, grupos/comunidades invistam em alternativas é nossa tarefa.

4. Nossa celebração

As portas que vão surgindo em nossos muros precisam ser celebradas.

De fato, a união de propostas e ideias de alternativas à vida vivida no mundo enfrenta barreiras já bastante conhecidas. Há um sem-número de dificuldades que vão mostrando experiências já vividas e já derrotadas por sistemas que criam palácios, barracos. Mas é justamente aí que experiências práticas em nossa Igreja unem pessoas diferentes, grupos diferentes. Mais portas vão aparecendo para romper muros de nossas vivências.

Em nível de Igreja, já há um bom tempo estamos discutindo e rediscutindo estruturas, documentos. A pergunta que sempre nos é levantada é se essa discussão toda traz respeito aos números perfeitos, de discípulos e discípulas - gente batizada - que terão voz e vez para mostrar seu jeito, ou elegerá novamente algumas portas.

A nível de sociedade, temos visto poderes alternativos que têm atuado em solidariedade. Sem serem do governo ou constituídos para isso, não têm se negado a serem mobilizados para a transformação da realidade. Muitas vezes atuando junto com as comunidades ou grupos, têm se engajado na diaconia geral de todos os santos.
Mas admitamos que nossa adaptação ao mundo (Jo 14.23-29) seja muito mais fácil.

Nossos preconceitos vão acondicionando as pessoas para que estejam em ambiente familiar ajustado, onde pessoas estejam ajustadas, onde grupos não extrapolem seus meios. Ou ainda, nosso impulso em ser reconhecidos/as como salvadores da pátria mostra nossa dificuldade em conviver não com a gratidão, mas com a glória (At 14.8-18).

Precisamos celebrar mais e mais essas portas, saídas que brotam a partir da experiência da própria comunidade, onde tempos de lazer e criatividade, de integralidade e comunhão, estão acontecendo e precisam acontecer, para graça nossa e glória de Deus.

Bibliografia

BORTOLINI, José. Como ler o Apocalipse : resistir e denunciar. São Paulo : Paulus, 1994. pp. 7-15 e 175-181.
GORGULHO, Gilberto S., ANDERSON, Ana Flora. Não tenham medo : Apocalipse. 5. ed. São Paulo : Paulinas, 1977. p. 9-13; 193-200.
RICHARD, Pablo. Apocalipse : reconstrução da esperança. Petrópolis : Vozes, 1996.


Autor(a): Margarete Engelbrecht
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 6º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: Apocalipse / Capitulo: 21 / Versículo Inicial: 10 / Versículo Final: 23
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2000 / Volume: 26
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17612
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