Apocalipse 7.9-17

10/05/1998

Prédica: Apocalipse 7.9-17
Leituras: Atos 13.15-16a, 26-33 e João 10.22-30
Autor: Antonio R. M. Oliveira
Data Litúrgica: 4º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 10/05/1998
Proclamar Libertação - Volume: XXIII
Tema:

1. Contexto

O texto insere-se, em sentido amplo, no bloco formado pelos capítulos 4-22, correspondentes à parte da tarefa confiada ao vidente de escrever o que ele viu, do que acontecerá depois (1.19). Em sentido mais restrito, o texto integra o bloco de 4.1-8.1, a visão dos sete selos. Na sala do trono celestial (4.1-11), o vidente vê a entrega do livro com sete selos ao cordeiro (5.1-14). À medida em que os selos vão sendo quebrados surgem em cena cavalos e cavaleiros trazendo desgraças. Ao abrir-se o quinto selo (6.9-11) o vidente vê e ouve o clamor dos mártires por vingança. Ao abrir-se o sexto selo, ocorre um terremoto e grandes cataclismas, que trazem trágicas consequências políticas e econômicas para os reis da terra, os grandes, os comandantes, os ricos, os poderosos, e todo escravo e todo livre... (6.15), a ponto de eles clamarem para que a natureza os oculte da ira do que se assenta no trono e da ira do cordeiro (6.17).

Os anjos retêm momentaneamente a fúria dos ventos para que o povo de Deus, nesse momento de calmaria, pudesse ser marcado com o selo do Deus vivo em suas frontes. É discutível se a finalidade desse selo era poupar o povo de Deus da destruição iminente (contra Hoch, p. 233), ou se era para estabelecer uma identidade distinta daqueles que seriam marcados pela besta (13.15-16). Como a cena transcorre na terra em processo de destruição, e justamente a abertura dos selos do Deus vivo é que a provocava, entendo que os portadores da marca do selo do Deus vivo seriam os agentes do juízo de Deus. O povo de Deus é agente de seu juízo sobre os reis da terra, os grandes, os comandantes, os ricos, os poderosos e seus aliados... O relato retoma o discurso deuteronomista da época da divisão da terra entre as 12 tribos de Javé, multiplicando esse número por 12.000, mostrando nesse desdobramento que o povo de Deus inclui agora o povo da nova aliança. Os outros 12 seriam o povo das comunidades fundadas a partir dos ensinamentos dos 12 apóstolos. Agora o povo de Deus não mais se restringe a um grupo étnico, como se observa no v. 9. O texto narra, depois, a abertura do último selo.

2. Interpretação

A visão passa a outra dimensão, desta vez ambientada na sala do trono divino. O vidente vê uma multidão tão numerosa que nenhum homem pode contar. Na terra, em 7.4, o anjo é que anuncia o número do povo de Deus. Na dimensão celestial, o ser humano não c capaz de determinar o número dos eleitos de Deus (Streck, p. 287). O povo de Deus é integrado por gente de todas as nações, povos, tribos e línguas. Supera-se a confusão ocorrida em Babel (Gn 11.1), a qual teve continuidade ao longo da história em guerras sem fim.

A multidão encontrava-se de pé, o que significa a aprovação no julgamento, diante do trono divino e diante do Cristo exaltado, o cordeiro de Deus. Recebeu as vestes brancas depois do seu clamor por vingança contra seus assassinos (6.11). A veste revela o interior da pessoa. Ao mesmo tempo que a cobre, também a revela. O branco tanto é sinal de pureza como de vitória. As pessoas foram purificadas, isto é, alvejaram suas vestes no sangue do cordeiro. Não é sua perfeição pessoal, portanto, que determina a brancura de suas vestes, mas sim o perdão conquistado graças ao sacrifício redentor do cordeiro. A multidão, mesmo antes da vitória definitiva, mas já na certeza desta, traz nas mãos as palmas da vitória, como as que eram dadas aos atletas vitoriosos nas competições.

A multidão cantava com entusiasmo: A nosso Deus (e não ao imperador e os relacionados em 6.15) e ao cordeiro pertencem a salvação. A multidão é constituída, pois, de pessoas que experimentaram essa salvação que tem a ver com a transformação de suas vidas (roupas alvejadas) e com a vitória sobre os poderes causadores de tribulação, fome, sede, sangue e lágrimas (vv. 15-17). Em que consiste essa salvação ficará claro no anúncio da nova vida desse povo.

Ao louvor da comunidade redimida associa-se o louvor dos anjos, anciãos e seres viventes. Eles se prostram e confirmam com um amém, no início e no fim, o louvor e o testemunho da multidão que veio da terra. E mais uma vez confessam o direito exclusivo de Deus ao louvor, glória, sabedoria, ação de graças, honra, poder e força. Assim, denunciam como usurpação o pretexto das autoridades e demais pessoas relacionadas em 6.15, que exigiam adoração e culto como se fossem deuses.

A pergunta retórica do ancião celestial ao vidente pela identidade e procedência das pessoas da multidão quer fazê-lo entender a realidade vivida por ele e suas comunidades na terra. Realidade esta ainda não plenamente compreendida, como se vê na resposta: Tu o sabes, que significa: não sei (Ez 37.3; Zc 4.5. Veja Lamparter, p. 63). Daí a dificuldade dessas comunidades permanecerem firmes na fé e resistir. A resposta do ancião não se limita a definir a identidade e procedência da multidão, mas também aponta para a esperança para ela reservada. A multidão purificada e triunfante é justamente o povo de Deus que vem da grande tribulação (será a maior realizada por Domiciano nos anos 97-98 a.D?). Era o povo das testemunhas de sangue (Lamparter, p. 63), embora não se possa deduzir que todos os que têm suas vidas purificadas pelo sangue do cordeiro sejam mártires de sangue, isto é, que pagaram com a vida o seu testemunho (1 Jo 1 .7). Esse é um elemento teológico central nas comunidades joaninas. Na multidão há heróis e heroínas que mantiveram-se fiéis, mesmo com o custo da própria vida.

Os vv. 15-17 descrevem em que consiste a bem-aventurança dos vitoriosos purificados. Eles não passarão a viver na ociosidade de um país das maravilhas (Lamparter, p. 64), mas vão encontrar-se, dia e noite, diante do trono divino, prestando culto e em contínuo serviço sacerdotal. Deus estenderá sobre eles a sua tenda, isto porque o cordeiro veio morar com eles (veja 21.2,22; Corsini, p. 172). Habitar na tenda do santuário celestial é privilégio que não teve outrora o povo libertado da escravidão no Egito, o qual ainda experimentou fome, sede e o sol causticante do deserto, no caminho à terra prometida. O lugar mais sagrado da tenda, o Santo dos Santos, era inacessível. Somente o sumo sacerdote podia entrar ali, uma vez por ano, para aspergir o sangue do sacrifício pelos pecados. Quando morreu na cruz, Jesus rasgou a cortina que separava o povo do ambiente mais sagrado. Agora Deus lança sua tenda sobre todo o seu povo em íntima comunhão com ele. Habitando na tenda sagrada, o povo de Deus não mais terá que experimentar as agruras da peregrinação terrena. Não mais terá que vaguear a esmo, desamparado e exausto como ovelhas que não têm pastor (Mt 9.36). O cordeiro, o Cristo exaltado, será o seu bom pastor (SI 23; Ez 34.23; Jo 10), que apascentará o seu rebanho guiando-o para as fontes de água da vida (Jo 4). Deus mesmo vai cumprir a promessa feita em Is 25.8 e enxugar todas as lágrimas, não mais haverá motivo de choro.

3. Meditação

A visão da multidão de mártires, purificados e vitoriosos, na sala do trono celestial é motivo de consolo, esperança, questionamento e desafio para a comunidade de Jesus hoje. Ela quer fortalecer os mártires do presente, que ainda convivem com suas fraquezas, culpas, temores e derrotas. Quer animá-los a perseverar, a continuar firmes no testemunho de que somente o verdadeiro Deus e o Cristo exaltado, o cordeiro, podem oferecer libertação, e motivar a todos, até mesmo os seres celestiais, ao louvor e ao reconhecimento do direito exclusivo de Deus ao louvor, glória, honra e poder para sempre. A visão quer fortalecer a esperança da superação das agruras da peregrinação na terra do sofrimento, quer dar ao rebanho exausto e desorientado que caminha como ovelhas que não têm pastor a certeza de que esta realidade vai mudar. A visão quer consolar os que choram.

Realmente, essa mensagem escrita com lágrimas só pode ser lida e entendida com lágrimas (Streck, p. 289). Ela se torna estranha para aqueles que vivem de bem com os poderes deste mundo (6.15) e preferem a comodidade ao invés da peregrinação, que estão satisfeitos com os seus pastores e não se importam com as lágrimas dos que choram.

A visão da multidão de mártires desafia a comunidade de Jesus a sair do papel de consumidora passiva de religião, de público a ser simplesmente atendido, para o papel de mártires, isto é, de testemunhas dispostas a arcar com as consequências desse testemunho, mesmo que isso signifique sofrimento, vergonha e morte. A visão corrige as concepções restritas que selecionam os bem-aventurados e os identificam a um pequeno grupo de heróis que preencheram determinadas condições. A multidão era tão grande que ninguém conseguia contá-la. Realmente, aqui a fé evangélica ajuda a corrigir o conceito de santo, entendido como aquele que foi santificado na fé em Jesus Cristo, em lugar da concepção católica romana de beatificação dos excelentes e milagrosos (Hoch, p. 230-231). A visão ajuda a desfazer o mito dos heróis na fé. As vestes da multidão estão brancas porque foram alvejadas no sangue do cordeiro. A multidão saúda com palmas a vitória do cordeiro e, somente assim, nela participam. De maneira alguma ocorre a divinização,da criatura (Lamparter, p. 64).

O testemunho dos mártires desmente e desmascara as falsas ofertas de salvação. Ela não depende da livre iniciativa do indivíduo, de religiões ou ideologias que defendem a necessidade de haver muitos perdedores para que haja alguns poucos vencedores.

Esse é o consolo (console = apoio) que desafia para a esperança. O futuro ilumina o presente.

4. A celebração

O domingo Jubilate (lamentavelmente as senhas trazem a designação genérica 4° Domingo da Páscoa, desprezando a riqueza do calendário litúrgico) é desafio para lembrar os motivos de júbilo que temos na fé, mesmo em meio às dificuldades e aos momentos difíceis. Nem sempre conseguimos entender a ação de Deus na história da maneira como a leitura de At 13.15-33 o sugere. Facilmente nos detemos nos capítulos mais tristes e deixamos de ver como Deus é capaz de superar o mal e alterar o curso da história. Jo 10. 22-30, a outra leitura sugerida para este domingo, vem nos mostrar que somente as ovelhas do rebanho são capazes de conhecer a identidade do seu pastor.

A mensagem de hoje nos conduz ao testemunho da multidão de mártires, de que somente o verdadeiro Deus e o cordeiro são capazes de oferecer salvação, e ao testemunho dos seres celestiais, quanto ao direito exclusivo de Deus de receber glória e honra e poder. A mensagem pode tematizar o testemunho de Jesus em meio a uma sociedade cheia de falsos deuses e salvadores, e de como é possível encontrar na esperança motivos de júbilo e força para resistir às agruras da peregrinação.

5. Bibliografia

BIEHL, João Guilherme. Auxílio homilético sobre Apocalipse 7.9-17. In: MALSCHITZKY, Harald, WEGNER, Uwe (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1987. vol. XIII, p. 110-115.
CORSINI, Eugênio. O Apocalipse de São João. São Paulo : Paulinas, 1984. 398 p. (Coleção Grande Comentário Bíblico; tradução de Ivo Storniolo e Carlos Vido).
HOCH, Lothar Carlos. Auxílio homilético sobre Apocalipse 7.9-12. In: KILPP, Nelson, WESTHELLE, Vítor (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1991. vol. XVII, p. 230-236.
LAMPARTER, Helmuth. Auxilio homilético sobre Apocalipse 7.9-12( 13-17). In: BORNHAUSER, Hans et al. Neue Calwer Predigt Hilfen : Vierter Jahrgang, Band A. Stuttgart : Calwer, 1981. p. 62-69.
STRECK, Edson Edílio. Auxílio homilético sobre Apocalipse 7.9-17. In: VAN KAICK, Baldur (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1978. vol. III, p. 284-292.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Antônio Roberto Monteiro de Oliveira
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 3º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: Apocalipse / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 9 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1997 / Volume: 23
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7266
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